Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam mas não dizem.
Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios de informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão a serviço das coisas.
(“O Sistema” – Eduardo Galeano)
12 de maio de 3660
Nossa história será divida em dois tempos. Acredito que essa seja a primeira coisa que você deve saber sobre tudo o que acontecerá daqui para frente. Recomendo que você deixe na porta todas as suas crenças, seus conceitos morais e filosóficos, pois dependendo da época em que você vive, algumas coisas podem parecer turvas, confusas, erradas. Não pense que ninguém está errado, essa não é a natureza da guerra. A guerra é uma arte como outra qualquer, complicadíssima para ser definida, mas com critérios específicos conhecidos por aqueles que a dominam. Eu não fui uma dessas pessoas. Mas pelo mundo onde vivi, pelas pessoas que conheci, pela sociedade em que me criei, entendo o suficiente para guiá-lo.
Há uma diferença de vozes e de épocas entre as duas vertentes da mesma história que você conhecerá. Mas as duas se passam no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, embora o lugar já não seja mais o mesmo e as pessoas não sejam mais as mesmas. Confuso? Tornar-me-ei mais claro, então: serei seu primeiro narrador, e é assim que quero ser tratado por ora. Ainda que eu vá relatar situações que presenciei pessoalmente, manter-me-ei em terceira pessoa para não comprometer o seu julgamento. Em dado momento, contarei minha identidade, estamos combinados? Pois bem. A história se passa em South Park, uma cidade pequena e montanhesa no Colorado, Estados Unidos, hoje conhecidos como Antiga América. O ano é 3660. Existem diversos registros de como as pessoas do passado visualizavam o mundo no futuro, retratando cenários tecnológicos, robôs, carros voadores, todo tipo de bobagem. E talvez fosse esse o caminho que o mundo tomasse, até 2900. Segundo os livros de história, esse foi o ano da eclosão da terceira guerra mundial. A população mundial foi significantemente reduzida. É engraçado como ler a respeito desses acontecimentos em livros de história (e sim, os livros persistem, sempre persistirão) torna-os tão banais, como se tivesse sido muito simples. Mas eu não sou um livro de história, e tentarei ao máximo fazê-los entender que nada, absolutamente nada, foi simples. Não vou cansá-los sobre detalhes acerca do mundo em que vivo, pois eles naturalmente aparecerão com o desenrolar dos acontecimentos.
O segundo tempo, que na realidade é o primeiro, será contado por Kyle Broflovski. Mas quando Kyle lhes contar a história, ele não terá conhecimento da presença de vocês, não como eu tenho. Pois os relatos de Kyle são extraídos dos registros que ele fez naquela época; o ano de 3646, quando ele era apenas um rapaz de dezenove anos. Tais registros são primordiais para o entendimento da história. Não vou lhes mostrar coisas que Kyle tenha escrito, mas sim ideias relacionadas intimamente ao pensamento e à sua visão de mundo. Gosto de passear pelas lembranças dele. Acredito que Kyle seja a pessoa que eu mais ame nesse mundo.
Mas ele mudou. Deixe-me apresentá-lo.
O homem do qual falo hoje continua com os cabelos mais vermelhos que já existiram, que combinam perfeitamente com o tom idêntico do casaco surrado de mais de dez anos, já desfiando nos cotovelos. A camisa branca é revelada por baixo, desleixada em seu corpo como se ele tivesse usado-a para dormir. Era possível que tivesse. Uma mecha dos fios ondulados caía por cima dos olhos de leopardo, as pupilas dilatadas do escuro do escritório, e a íris verde manchada de amarelo brilhando curiosamente à luz fraca da lamparina. A mesa à sua frente está completamente bagunçada, pilhas de papéis manchados com o formado de uma xícara de café, canetas espalhadas e escondidas nas dobras dos livros abertos; deixe-me lhe contar, houve um tempo em que esse tipo de coisa causava urticária em Kyle. Ele era a pessoa mais organizada que já conheci. Mas naqueles tempos, as prioridades eram outras, e não havia mais tempo para se preocupar com a ordem alfabética dos livros na prateleira. De qualquer forma, gostaria de atentar para os detalhes importantes na pele dele; a começar pelo rosto. Marque bem o rosto de Kyle Broflovski. É inesquecível, sinto dizer, pela cicatriz que marca logo abaixo do olho, na pele fina e escurecida por olheiras cansadas, e desce até metade da bochecha macia. Não era uma cicatriz nova, foi feita com caco de vidro há mais de dez anos. Deixarei que ele mesmo lhe conte sobre como a cicatriz aconteceu, mas é importante que você saiba que ela está lá, deformando-se toda vez que ele oferece um sorriso preocupado. Kyle não está sorrindo agora. Ergue um pouco mais o queixo, descansando as palmas para baixo sobre uma folha amarelada com palavras datilografadas em francês. Ele é fluente.
Kyle está com trinta e dois anos, caso você não tenha feito as contas. Fará trinta e três em duas semanas, e Gregory fez uma espécie de piada naquela manhã sobre ser a idade de Cristo, mas esse tipo de coisa está muito longe da mente de Kyle agora.
É noite. Em 72 segundos, um homem importante entrará na sala. Kyle usa um anel prateado com uma pedra de ônix no mindinho, que está largo demais para a circunferência do dedo dele, dançando um pouco solta conforme ele desliza a mão pelos cachos. Se você se interessa por esse tipo de coisa, a sala é ampla e marrom; além da lamparina, a imensa janela até o teto permite a entrada fraca da luz verde da lua, escondida atrás das nuvens negras e da poluição que deixa os céus sempre avermelhados enquanto o sol reina e azul-petróleo quando é noite. As coisas são diferentes agora, mas Kyle não sabe disso, pois desde que nasceu, o mundo é do jeito que é. É tudo o que ele conhece; a lua verde e o céu vermelho-marrom como barro. Ele limpa a garganta e troca a caneta de mão como se soubesse escrever com a mão direita. Os olhos de leopardo cautelosamente estudam o vazio, desatentos para toda a bagunça sobre a mesa, focados em algo que não estava à sua frente. Ele entorta a boca para coçar o maxilar com a mão que segura a caneta entre os dedos, aproximando as pálpebras. Sua concentração só é quebrada pelo som da batida na porta.
-Entre.
Ele se vira para olhar – a cadeira está virada de costas para a porta, por qualquer motivo que seja -, mas não é um homem que vê primeiro, e sim um labrador preto de língua comprida e olhos estranhamente azuis, com um filete de baba escapando pela lateral da boca. Kyle sorri para o cachorro, porque animais têm esse poder sobre seres humanos, mas o sorriso é contido com a visão do homem importante, cujo cabelo é tão negro quanto o pelo do labrador, e olhos tão exoticamente azuis e escuros quanto os do animal. Em uma das mãos, o homem segurava uma corrente firmemente enrolada no punho, e na outra, uma bengala de cobre e madeira. Kyle não se move.
-Stan. – Diz delicadamente, esboçando uma espécie de sorriso contido, quase envergonhado. Seria preciso procurar muito para encontrar o sorriso debaixo daquela expressão, mas estava lá.
(Um detalhe que pode vir a ser relevante em breve: estamos lidando com duas pessoas que se amam profundamente. E também estamos lidando com duas pessoas que praticamente não se falam mais.)
A bengala bate no chão enquanto o homem dá um passo à frente, sentindo o clima gelado daquela sala tocar sua pele pálida, até mesmo as partes cobertas. Suas roupas são simplórias; sua calça vai até a cintura e é listrada em preto e marrom, o casaco é azul royal e desfiado, de péssima qualidade, mas o suficiente para aquecê-lo. Isso é tudo pelo qual se pode pedir agora. Por baixo, um colete marrom de linho. Um lenço vermelho em torno do pescoço. O cachorro sacode as orelhas, desinteressado. Stan estende a mão e dobra os joelhos até que sua palma toque nos pelos grossos que cobrem o animal, acariciando-o pela lateral do corpo, dando alguns tapinhas afetuosos antes de continuar andando, abrindo o caminho com sua bengala para se certificar de que não encontraria com nenhum objeto. O homem em questão, alto e esguio, movimenta-se cautelosamente através da sala – que é ridiculamente longa, para dar espaço a todas as estantes de livros que ainda preservavam alguma organização por autor -, seguindo o som da voz que proferira seu nome. Não é preciso realmente seguir a voz, visto que Stanley já está habituado com essa sala. Kyle demora algum tempo para se colocar de pé, soltando a caneta sobre o papel, deixando que rolasse até a beirada da mesa; mas ela não cai. Por um momento, ninguém diz nada, e o único som preenchendo o espaço é o do cão sacudindo as orelhas mais uma vez, livrando-se do resto de água da chuva acumulada em sua pelagem. Kyle umedece os lábios, sua mão fina acariciando a madeira da mesa na qual ele se apoia.
-Eu pensei que todos já tivessem ido embora. – Kyle é o primeiro a falar. – Gregory me disse...
-Eu já estou indo.
O homem ruivo espera durante alguns segundos – pelo menos até que o silêncio se torne desconfortável – e limpa a garganta, cruzando os braços. Stan não fez menção alguma de se explicar; permaneceu ali, de pé, segurando seu fiel canino pela corrente. Seu quadril descansa contra a beirada da mesa. Ele esfrega o rosto exausto, os dedos tocando levemente o tecido da cicatriz.
-Você precisa de alguma coisa?
Antes de continuarmos, talvez seja pertinente explicar onde esses dois homens e esse cachorro se encontram: o prédio tem quatro andares, não é muito intimidador visto de fora. Uma construção de tijolos carcomidos pelo tempo, cujas janelas são arredondadas e compridas, e cada uma delas possui uma pequena varanda por meras razões estéticas. No telhado do prédio, encontra-se uma chaminé e um relógio de números romanos, imenso, em verde e dourado, que já não funciona mais. A construção provém de uma época em que a arquitetura vitoriana era rebuscada; as cidades se reinventaram. Na fachada, você pode ler logo acima da porta, em letras douradas garrafais: CÂMARA AUTÁRQUICA. Stan trabalha no primeiro andar. Kyle trabalha no último.
Eles nunca se encontram.
-Não. – Stan responde, tentando soar casual. Não funciona, e ele está ciente disso. Tenta ser mais genuíno, roçando as costas da mão pelo pulso da outra. – É dia doze.
Se ele pudesse enxergar, saberia que o rosto de Kyle se apagou. Foi uma contração muscular quase imperceptível, a face encolhendo em uma careta dolorosa que logo se dilui em resignação. Ele ergue o queixo quase sem perceber que o faz. Agora que está de costas para a luz da lamparina, suas pupilas se dilatam na penumbra.
-É. Faz catorze anos.
Ao contrário, Kyle pode enxergar o rosto lívido de Stan perfeitamente. Sua aparência provavelmente é muito mais saudável, as bochechas arredondadas de quem ainda tem pão na mesa, de quem encontrou uma forma de viver com os fantasmas daquele prédio. A resiliência era uma das características de Stan que Kyle mais admirava; está absolutamente certo de que Stan sobreviveria a qualquer coisa que fosse colocada à sua frente. Talvez por uma parte dele ainda permanecer conformista, como na época em que viveram juntos. Aquilo não parecia mais importante, de uma forma ou de outra. Kyle coça o olho, puxando a cadeira para se sentar novamente, perdendo a força nas pernas.
-Você está bem?
O ruivo desvia o rosto para o lado, dando uma espiada no homem atrás dele por não mais do que um segundo. A pergunta parece atar um nó em sua garganta, um nó tão rígido que é quase físico, doendo a ponto de Kyle levar a mão ao pescoço, apertando os olhos. Seu silêncio é suficiente para que Stan entenda. Chega a ser engraçado. Se você me permite uma interrupção, posso te fazer entender sobre a conexão entre essas duas almas. Nunca conheci duas pessoas que se amassem tanto quanto Kyle Broflovski e Stan Marsh, pois eles ressignificaram o conceito de amor (para mim, pelo menos, mas acho que era algo que tocava todas as pessoas em torno deles). O que quer que eles tivessem era incondicional. Um não pode se lembrar de um mundo em que o outro não existisse, é algo estabelecido desde que usavam fraldas. Há coisas que o próprio Kyle deve lhes contar, ele poderá explanar muito melhor do que eu sobre tudo o que houve para trazer esses dois homens a essa sala, nesse momento, mergulhados no silêncio familiar da resignação. Há muito ódio envolvido, posso lhe adiantar, mas é de entendimento geral que o oposto do amor não é o ódio, e sim a indiferença. Kyle e Stan jamais serão indiferentes um ao outro.
-Eu estou bem. – É tudo o que responde.
-As pessoas dizem que fica mais fácil conforme o tempo passa. Mas você já deve saber que isso é mentira.
-O que você quer aqui, Stan?
O cachorro boceja, sentando-se pacientemente, coçando atrás da orelha caída. Seus olhos azuis são cheios de remela, seu nariz é úmido e os pelos são falhados no topo de sua cabeça, mas independente disso tudo, é um belíssimo cão. Egon é seu nome. Kyle o observa de lado, resistindo ao impulso de se aproximar e fazer um carinho nele. Permanece sentado. Stan suspira profundamente, unindo os pés, aliviando a pressão da corrente entre os dedos. Está ansioso.
-Desculpe. Eu só... – Uma pausa. – Pensei que você não quisesse ficar sozinho hoje.
Kyle esfrega os olhos, enquanto o som de sua própria rudez ecoa dentro de seu crânio. É um dos sons mais desagradáveis possíveis. Especialmente quando é direcionado a Stanley. Talvez você não possa perceber imediatamente, pois ele se tornou um homem amargurado, mas em essência, Stan ainda é um dos seres humanos mais gentis que já andaram pela face da terra. Há algo fascinante sobre ele, como se fosse inquebrável: não importa quantos horrores ele tenha visto e passado durante a vida, há algo em sua alma que mantem-se sempre flexível e dobrável, por bem ou por mal. É um sobrevivente. É por isso que ele parece um alvo tão fácil, alguém que está ali de pé esperando pelos socos. E depois que Kyle, tão passional, deixa-se levar pelo desejo de esmurra-lo, não há uma vez sequer em que não se sinta um monstro.
-Me perdoe. – Diz simplesmente, num sussurro que pessoas ordinariamente não ouviriam, mas os ouvidos de Stan não são como os da maioria. Ele ouve perfeitamente. – Foi... Foi difícil. Eu só quero que esse dia termine.
-Você foi ao cemitério?
-Não. Encher um túmulo de flores para o meu próprio contentamento parece cada vez mais sem sentido. Não ajuda ninguém.
Stan se apoia na bengala e cai com a cabeça de leve para o lado, cruzando os pés. Seus cabelos, que já foram negros como a própria noite, mas agora parecem desbotados, caem por cima dos olhos. Isso não o incomoda. Sob a luz certa, pode-se ver um sorrisinho triste tomar conta de sua boca, mas Kyle não o percebe.
-Você ainda sonha com ele?
-Quase todas as noites.
“Ele o visita”, Stan pensa, “então você não precisa visita-lo.” Mas não disse uma palavra a respeito, porque não se fez necessário.
A enorme sombra de um zepelim bloqueia a luz intensa da lua que clareava o cômodo durante algum tempo. A escuridão é confortável aos olhos de Kyle, acalma-o de alguma maneira. Foi um dos motivos pelos quais ele pediu especificamente para se instalar na sala mais alta, no último andar. Poucas pessoas transitavam por ali e era protegida das luzes da cidade que perturbavam a retina. Para Stan, naturalmente, esse tipo de coisa não era um problema. Ele vivia no escuro.
É engraçado, não é? Quem está na luz busca a escuridão, quem está na escuridão deseja a luz mais do que tudo. Seria cômico, se não fosse trágico.
O zepelim se afasta. Grande, imponente, em vermelho, marrom e dourado. Apenas uma lembrança de que a cidade ainda é guardada pelos grandes lordes, símbolo supremo de que eles controlam até os céus, embora as coisas já tenham sido piores. Quando a luz esverdeada da lua volta a invadir a sala com seus raios ondulatórios, os olhos de Kyle estão molhados.
-Eu estou bem, Stan. – Ele mente. E não está enganando ninguém, nem mesmo o cachorro. – Vá para casa. Está ficando tarde, não é bom pegar o trem depois da meia noite. Talvez Gregory possa acompanha-lo.
Ele anseia pela solidão, pelo escuro e talvez por uma taça de vinho. Não pretende beber muito, mas ainda há uma garrafa de Malbec Marchiori Vineyard guardada no armário da cozinha, logo atrás das latas de feijão, como se estivesse escondido. Essa garfa lhe veio em mente durante todo aquele dia. Beberia na varanda, contemplando a cidade lá de cima. Contrariamente ao flerte com a solidão, a ideia de chegar na casa vazia e ouvir o eco da porta se abrindo, tão amplas eram as paredes altas da sala de entrada, dá-lhe calafrios. Encara Stanley durante tempo o suficiente para cometer a loucura de imaginar as palavras saindo de sua boca: “venha comigo”, ele se imagina pedindo, “suas mãos estão sempre quentes, e elas me fazem tanta falta. Eu realmente preciso de suas mãos quentes no meu rosto hoje.”
A lucidez não permitiu que ele dissesse nada disso.
Não está certo sobre os pensamentos de Stan com relação a ele, não mais. Mas compreende o bastante para saber que é loucura cogitar que esse homem lhe sirva como fonte de carinho, depois de tudo o que se deu entre eles.
-Eu sinto muito, Kyle. Sei que não vale muita coisa, mas eu realmente sinto muito.
-Eu sei que sente. Ninguém mais esteve tão presente quando... Quando aconteceu. Eu não quero parecer ingrato. – Há hesitação em sua voz, um gemido contido na garganta. – Deus, como sinto falta dele.
E isso não vai mudar.
O rosto de Stan transborda uma pontada de dor que vem das entranhas. Não dura muito, é apenas um reflexo da dor à sua frente. Os demônios que Stan carrega são outros.
-Vou deixa-lo em paz.
O cachorro levanta a cabeça curiosamente, mexendo as orelhas, entortando a cabeça para o lado com a curiosidade de um filhote. Kyle sorri. Apanha a caneta na beirada da mesa, como se isso fosse ajudá-lo a recuperar a concentração, enquanto Stan puxa a coleira de Egon para que o cachorro se levante novamente.
-Obrigado. – Kyle diz, levando as costas da mão ao rosto quente para senti-lo.
As bochechas já estão úmidas pelos traços de lágrimas que escorrem com naturalidade, tanta que ele mal pode senti-las. As lágrimas parecem ter se tornado parte do rosto dele nos últimos anos.
A casa de Kyle é distante da cidade, localizada em um ponto mais alto na montanha. É uma bela casa, se quer saber, uma construção antiga em arquitetura vitoriana, com grandes janelas que proporcionavam uma bela vista dos pinheiros, longe de todas as luzes da cidade. Não era uma casa grande, mas tinha três andares estreitos e um sótão de teto extremamente baixo, toda feita de madeira, causando rugidos estranhos durante a noite. Kyle já está acostumado com os sons do meio do nada, o vento soprando nas janelas e os animais selvagens que raramente o incomodam. A melhor parte é o silêncio. Toda a cidade de South Park, assim como toda cidade dos Estados Unidos atualmente (com exceção das áreas devastadas) é tomada pelos constantes sons dos sapadores mecânicos, os trens que vão e voltam a madrugada inteira, os bares lotados de boêmios que ganharam a liberdade de estar ali há não muitos anos. Não existem mais cidades pequenas, mesmo com a população reduzida. Conforme se sobe a montanha, esses sons vão ficando para trás, dando lugar ao coaxar, aos uivos, rugidos e demais sons que compõe o que resta de natureza.
Ele sobe os três degraus que dão para a sua varanda e coloca a mão no bolso para buscar a chave, que sempre teimava em fugir para o fundo. De repente, ouve um barulho. Vira-se para dar uma breve olhada em volta, não levando muito a sério o que seus ouvidos lhe alertam. O que o incomoda não é exatamente o barulho em questão, mas a estranha certeza de que há um par de olhos predadores o vigiando. Kyle espera enxergar uma raposa da neve ao se virar, mas não há nada. Ele franze as sobrancelhas. Esquece-se, por um momento, de todos os pesos que carregou sobre os ombros durante o dia 12 de maio, pois sua mente está ocupada descartando possibilidades absurdas. Ele ouve passos, mas a escuridão não permite que enxergue qualquer coisa. Ninguém costuma subir para aquelas bandas e vagar no meio da noite em uma área florestal montanhesa em uma noite de neve, mas Kyle não consegue desviar a impressão de que aqueles passos eram estranhamente humanos. E isso traz uma sensação desagradável à boca do estômago.
Há uma quantidade decente de pessoas que não são fãs do que Kyle, Stan, Gregory (você também conhecerá Gregory em breve, e acredite, jamais vai se esquecer dele) estão fazendo. É um momento político delicado, em que as mudanças efetivas finalmente começam a desconstruir a elite soberana. Parece que há algo – alguém – grande se movendo entre os arbustos, muito próximo da parede da casa, dentro de sua propriedade. Kyle raramente sente medo, mas é como um felino que está sempre com olhos e ouvidos abertos e um canivete facilmente alcançável no bolso. Ele vira o corpo completamente agora, dando passos vagarosos que fazem as tábuas de madeira da varanda rangerem sob seu peso. A mão desliza para dentro do bolso, esquecendo a chave na fechadura, e aperta o cabo do canivete suíço entre os dedos. O coração acelera um pouco, bombeando sangue mais rápido para o seu cérebro, desregulando a respiração. Espera um instante. O barulho parece cessar completamente.
Mais alguns segundos, imóvel. Nada.
Ele solta o canivete, deixando-o intocado em seu bolso direito. Esfrega a testa quente e se pergunta se está começando a ficar louco.
Provavelmente não foram passos, ele sabe. Os animais não têm o hábito de chegar tão perto, mas poderia até mesmo ser algo simples como um cão de caça perdido procurando jantar em suas latas de lixo. Kyle respira fundo e se vira para a porta novamente, pronto para entrar em casa.
Até que um pé – humano, definitivamente – pisa no primeiro degrau da escadinha, depois no segundo, e ele congela por um instante. A única coisa que tem em mãos é a chave.
-Tem trocados para um homem faminto, monsieur?
A voz rouca é um estalo para a realidade que faz com que Kyle se vire pronto para arrancar um olho com aquele pequeno molho de chaves, a boca aberta e os olhos arregalados, sem processar o que foi dito. Pressiona as costas instintivamente contra a porta de madeira, enxergando a silhueta escura que se aproxima. Fecha o punho da mão em que usa o anel de ônix e lança um soco que é interrompido no ar por uma mão grosseira que segura seu pulso e esmurra seu corpo contra a porta com estranha graciosidade. Kyle aperta os olhos, esperando a dor. O murro no estômago, a lâmina de uma faca, a asfixia, qualquer tipo de dor. E encontra-se passivo diante da ideia, sem reação, devidamente em paz com a ideia de que jamais morreria em paz, se é que tal coisa é possível. Mas não sentiu absolutamente nada. Percebe, então, que seus olhos estão entreabertos e revelam a face de um homem que, tão próximo, é familiar como a palma de sua própria mão. Kyle o reconhece pelo cheiro antes mesmo de visualizar sua feição.
O rosto que aparece na penumbra é o do outro homem importante.
Os olhos misturam uma cor de mel entre verde e castanho, com um brilho animalesco, as sobrancelhas grossas e irregulares, porém tão simétricas no rosto de traços rudes, o nariz protuberante e másculo, o lábio inferior mais carnudo do que o superior, um pequeno corte no canto da boca, o maxilar quadrado, cabelos repicados e lisos cobrindo a testa e as orelhas do homem. Essa é a visão que Kyle tem a poucos centímetros de seu rosto, um rosto mal iluminado que o atormenta há anos. No pescoço, um cordão. Christophe DeLorne, uma sombra.
Kyle leva as mãos a esse rosto em uma necessidade de tocá-lo para concluir que sim, é real. A partir dessa conclusão, colidiu as duas mãos contra o peito do homem, empurrando-o um pouco para trás antes de gemer, mesclando dor e alívio, atirando-se aos braços de Christophe em seguida como que por instinto. O abraço também era uma necessidade. Veio apertado, sem jeito, torto e confuso, como uma sustância de realidade e sonho. E o homem o recebe em seu corpo gelado, apoiando o queixo sobre o emaranhado de cachos ruivos, deixando que um sorriso – tão raros são os sorrisos de Christophe – transpareça, iluminando seu rosto.
-Você está vivo. – Kyle murmura contra o peito nu dele.
O Toupeira veste apenas um sobretudo verde musgo, xadrez em vermelho por dentro, aberto e revelando o tronco de um guerrilheiro, rígido e escultural. Seu corpo parece mais forte, seu rosto parece mais envelhecido. O cinto grosso preso ao quadril segura um arsenal de armas letais em potencial, muito bem escondidas em compartimentos secretos. A calça e as botas de combate até o joelho são da mesma cor, um marrom tão escuro que beira o preto. No escuro da varanda, não há diferença. Christophe não está mais sorrindo quando Kyle ergue o rosto e se desenrosca dele.
-Nós não recebemos uma carta sua há quase dois anos. Pensamos que... – O ruivo começa a explicar, as palavras saindo confusas e atropelas, as mãos ainda segurando os braços do outro homem. – O que está fazendo aqui?
Christophe encolhe os ombros.
-É dia doze.
Por um momento, Kyle apenas o observa. O som daquela voz, que raramente vem tão branda, é uma dose homeopática de anestésico. Ele não consegue conter o sorriso.
-Meu Deus, Christophe. Você estava na França esse tempo todo? Por que não escreveu?
Ele nega com a cabeça.
-Mônaco. Bélgica. Itália. A coisa não está bonita em lugar nenhum. Venha cá, eu estou te esperando há três horas nessa merde de frio, seja um bom menino e me convide para entrar. – Ele diz em sua melhor voz sedutora, que é surpreendentemente funcional, talvez pelo sangue europeu que corre em suas veias. Você até poderia chama-lo de um homem charmoso, se quisesse. Ele ergue uma mão para tocar os cabelos de Kyle, que abaixa o rosto em resposta, mordendo o lábio inferior.
-Poderia ter me ligado. Não precisava fazer isso.
-E que graça teria isso?
-Eu poderia ter cortado a sua jugular, sua brincadeirinha quase me matou do coração.
Christophe ri, balançando a cabeça.
-Por que ainda me passa pela cabeça que você precise de proteção?
Kyle tenta revirar os olhos, mas o sorriso o contagia antes que possa perceber. Ele esfrega as mãos enluvadas e gasta mais alguns segundos encarando o homem francês, como se a imagem dele só agora ficasse nítida. Durante esse momento, Christophe tenta tocar a cicatriz no rosto de Kyle, mas a resposta é arisca; ele vira o rosto e faz um sinal com a cabeça para que entrem. Pergunta sobre o pequeno apartamento que o Toupeira tinha alugado na cidade, em cima de uma lavanderia, onde ficaram a maioria de suas coisas antes dele viajar. Christophe explica que senhoria, uma velha gorda que consegue ter um temperamento pior que o dele, colocou todas as suas coisas em um depósito (não que ele tivesse algo de muito precioso), que ele é atualmente um homem sem teto. E a porta se fecha.
A constante em que a vida de Kyle se encontrava até esse ponto sofre uma reviravolta a partir dessa noite. Mas você não tem obrigação alguma de saber porquê. Você não estava lá, afinal de contas, no dia 12 de maio de 3646, quando eu fui assassinado. Você não estava lá na noite da bomba, quando Stan Marsh perdeu a visão. Você não estava lá quando Christophe e Kyle se conheceram, nem quando as ideias da revolução foram germinadas sobre o sangue dos estudantes, não estava lá quando Gregory subiu na mesa e gritou liberdade no subsolo do café de seu pai. Você não estava lá quando Christophe ergueu a bandeira vermelha pela primeira vez, no mesmo dia em que levou um tiro no abdômen e um estudante foi pisoteado. Não estava lá quando eles resistiram. Quando a relação entre Stan e Kyle começou a desmoronar, algo que foi iniciado com uma surra na cafeteria da universidade e foi finalizado com uma garrafa de rum.
Mas você vai estar.
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