Na aldeia Katatáu existia uma antiga tradição que até os dias de hoje é seguida fielmente. No segundo sábado de cada mês, ao entardecer o sol, todas as crianças da aldeia se reuniam em uma grande meia-lua ao redor da fogueira para ouvir uma história e seus olhos transbordavam excitação frente ao momento mais esperado do mês.
O pajé Tupinára era um homem muito sábio, por isso era sua responsabilidade transmitir seus ensinamentos e lições de vida para os mais novos, assim eles iriam crescer e se tornar bons indivíduos, contribuindo sempre com a união da aldeia e passando esses conhecimentos para os da próxima geração. Os ensinamentos passados pelo pajé sempre eram passados em forma de fábulas e o tema da vez falava sobre o perdão e o amor. Quando todos estavam devidamente em seus lugares, ele começou a história, numa voz profunda e poderosa que fazia com que nem mesmo um par de olhos se desviarem, não querendo perder nenhum segundo daquele momento.
Contou que na floresta sempre existiu um equilíbrio e que por seguir essa balança os animais podiam conviver e sobreviver sem nunca se preocupar além do necessário. Porém, esse equilíbrio, apesar de ser estável, era também muito frágil e se porventura algum animal o desrespeitasse, as consequências o seguiriam. E foi exatamente assim que aconteceu.
O pajé então falou sobre uma grande cobra, ela era maldosa, traiçoeira e enganava a todos, inclusive os da sua espécie, sempre querendo sair por cima de todos. Ela começou a trazer muitos problemas nas florestas e os animais começaram a ficar assustados até para sair de suas moradias, com medo de que a cobra os devorasse ou que pregasse mais uma de suas peças maldosas.
Nessa mesma floresta também vivia um javali, para a sua espécie ele não era nem tão grande e nem tão gordo, no entanto, o que o tornava especial era seu ótimo caráter e jeito de ser. O javali era um animal gentil e apesar de carrancudo, nunca tratava os outros animais injustamente, sempre pronto para ajudar um colega em apuros e sempre prezando muito pelo bom equilíbrio da floresta e do seu lar.
A cobra e o javali eram o completo oposto um do outro, e era muito difícil que pudessem se dar bem. Além disso, o javali sempre ouvia falar da grande cobra e não gostava nem um pouco das coisas que escutava. Assim também era com a cobra, sempre ouvindo falar de como o javali era um bom amigo e colega, e então a cobra decidiu que iria pregar uma peça nele. Ela ficou vários dias na espreita, num local onde ouviu dizer que o javali costumava passear, esperando pelo melhor momento de atacar e lhe dar um grande susto que o faria sair correndo e nunca mais voltar para aquela floresta.
Um dia houve uma forte chuva durante a noite e quando amanheceu a cobra mais uma vez se esgueirou para o seu esconderijo, mas devido à forte chuva a pedra onde ela ficava escondida acabou deslizando e caindo por cima de sua cauda causando uma tremenda dor que levou a cobra a gritar e chorar. O javali que por ali ia passando acabou presenciando a situação e mesmo não gostando muito da cobra, sentiu pena e resolveu ajudá-la. A cobra protestou, se sentindo superior e com o orgulho ferido, ameaçando comê-lo se ele resolvesse se aproximar dela, pois ela podia muito bem sair sozinha, o que era uma grande mentira.
O javali deu uma boa gargalhada e disse que ela não precisava ter vergonha de pedir ajuda quando passar por momentos difíceis, pois é algo muito natural. E mesmo com as ameaças da cobra, o javali se apoiou nas patas traseiras e ergueu com as patas dianteiras a pedra, livrando a cauda da cobra que saiu se arrastando rapidamente do local sem agradecer e com muita raiva e vergonha, prometendo se vingar de tamanha humilhação.
O plano de vingança, porém, não deu certo, pois uma semana depois, enquanto novamente pensava em maneiras de afugentar o javali da floresta, a cobra ficou novamente presa pela cauda, dessa vez um tronco de árvore que rolou ladeira a abaixo e acabou prendendo a grande cobra numa parte afastada da floresta. A cobra ficou assustada, pois não importava o quanto tentasse ela não conseguia se soltar, tentou então a gritar por ajuda, mas por causa de sua má personalidade nenhum animal que passava quis ajudá-la. Desesperada a grande cobra começou a chorar, um choro tímido, triste e de cortar o coração.
Ao entardecer a cobra já estava ficando sem força, sem energia e também sem esperança, foi quando ouviu passadas pela floresta e resolveu mais uma vez gritar por socorro, que surpresa não foi quando ela viu que quem estava ali era o javali que a ajudara antes e o qual ela planejara se vingar. O javali ouvira pela floresta os animais comentando sobre como finalmente eles estariam livres da grande cobra e ficou curioso, quando soube o que aconteceu resolveu imediatamente ir ajudá-la, afinal, ele era um javali muito gentil e sentiu pena da grande cobra.
No entanto, quando a cobra o viu, pensou que ele estava ali apenas para rir dela, afinal da última vez ela o tratou mal e nem agradeceu por livrá-la da pedra, por isso se surpreendeu quando mais uma vez o javali se ofereceu para ajudá-la e dessa vez aceitou sem reclamar. Quando por fim se viu livre, a cobra o agradeceu de forma sincera e com curiosidade perguntou ao javali:
- Por que me ajudou novamente? Eu fui tão maldosa, mal agradecida e até mesmo planejava me vingar de você. Por que, mesmo sabendo quem e como eu sou, quis me ajudar?
O javali abriu mais uma de suas gargalhadas, mas a cobra percebeu ser um riso gentil e sincero, e que ele não estava mentindo quando respondeu o seguinte para ela:
- Os animais costumam dizer que sou um javali companheiro e justo, mas nem sempre fui assim até que um dia aprendi o seguinte: quem ama muito, perdoa muito, mas quem ama pouco perdoa pouco. Mesmo que você não tivesse boas intenções, quis acreditar que você podia mudar assim como eu mudei, o amor muda nossos corações e o perdão nos ajuda a manter a paz e o equilíbrio da floresta, por isso ajudei você.
Depois desse episódio a cobra passou a refletir sobre as palavras do javali sobre o amor e o perdão, será que era assim mesmo? Será que se ela mudasse e pedisse desculpa, os outros animais a perdoariam? Tais perguntas rondavam a cabeça da grande cobra até que ela decidiu: “Vou parar de ser maldosa e pedir desculpas, também vou tratar os outros bem e quem sabe assim eu não faço um amigo!”
Aos poucos os animais da floresta perceberam a mudança no comportamento da grande cobra, seu coração finalmente estava aprendendo a amar mais. Ela parou de atormentar os animais menores e até mesmo pediu desculpas sinceras para os muitos que ela costumava causar problemas, nem todos aceitaram, mas conforme o tempo eles perceberam que sua mudança era genuína e a aceitaram.
Agora ela não era mais temida e os animais finalmente puderam voltar às suas vidas normais e quanto ao javali, ele a e cobra se tornaram bons amigos e eram muitas vezes vistos juntos. Certa vez outra cobra resolveu questionar o que levou a grande cobra a mudar tão drástica e repentinamente e ela então respondeu:
- O javali viu o melhor em mim até quando eu não pude ver e quando estivesse em uma situação ruim ele me ajudou e me perdoou por ter sido maldosa com ele mesmo que eu não tivesse feito nada por ele. Isso me ensinou muito e me ajudou a refletir e pude finalmente entender quando ele disse que quem ama muito, perdoa muito e quem ama pouco, perdoa pouco. Essa é uma das grandes verdades da vida.
O pajé Tupinára terminou a fábula falando que no fim o melhor presente que o javali podia ter dado para a grande cobra foi o perdão, e que o mesmo podia acontecer aos humanos. O pajé mostrou então a importância do amor e do perdão para manter a união de cada indivíduo da aldeia, desde os mais novos até os mais anciãos, e também para que se evite desavenças desnecessárias que podem muitas vezes ser resolvida por meio de uma conversa boa, sincera e de coração aberto.
Ao fim das palavras do pajé Tupinára o sol já tinha se posto e chegará a hora das crianças irem se deitar, todas elas agradeceram ao pajé pela história enquanto prometiam serem melhores amigos e pessoas mais perdoadoras. Assim, elas foram se retirando para suas ocas com as palavras e os ensinamentos ainda frescos na memória, os corações ainda disparados de emoção e talvez alguns até sonhassem com a grande cobra e o javali, mas de uma coisa se pode ter certeza, cada uma daquelas crianças foram dormir com essa nova lição encravada nas suas memórias e em suas vidas.
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