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entre rosas brancas e vermelhas

Numa certa madrugada, Akutagawa acordou e tossiu flores. Poderia ser mais uma noite qualquer, essa, quando Akutagawa acordou e tossiu flores, mas não era. Dazai havia deixado a Máfia do Porto a algumas horas atrás – os mafiosos de baixo calão especulavam, sussurrando por cantos sujos e mudando de assunto rapidamente quando se percebiam alvos do olhar de Akutagawa.

Dazai não trairia a máfia.

Dazai não o deixaria.

Dazai se despediria.

Com essas esperanças repetidas feito um mantra para segurar a dor que parecia querer rasgar sua garganta, Akutagawa se deitou e fechou os olhos. Daí, não muito tempo depois, acordou e tossiu flores, flores vermelhas, para ser mais preciso. Eram rosas, de pétalas graúdas e macias, deixavam um gosto estranho na boca. Ou talvez fossem brancas, na verdade: rosas brancas embebidas de sangue; não se sabe, mas também não importa. O fato é que Akutagawa as tossiu e, depois daquela noite, as tossia sempre.

As tossia no trabalho.

As tossia em casa.

As tossia quando lembrava-se dele.

Era sempre do mesmo jeito: as malditas pétalas cortavam o caminho dos brônquios até a garganta, escarradas em contrações involuntárias, desesperadas dos músculos que tentavam expelir as anomalias enraizadas nos pulmões frágeis de Akutagawa como podiam, sem sucesso, porque não importava o quanto as tossisse, sempre havia mais e mais.

“Isso é amor. Infelizmente, não há cura.” Um médico disse-lhe; os braços cruzados, como se estivesse inquieto.

“Isso é amor. O tratamento será doloroso.” Outro médico disse-lhe; o olhar meio perdido, como se sentisse um pouco de pena.

“Isso é amor. Você morrerá logo se não se livrar.” Um terceiro médico disse-lhe; em mãos, um veneno que, se inalado, poderia fazer as rosas definharem.

Mas o que aconteceria se Akutagawa matasse as rosas? Era óbvio, mataria Dazai – mataria também a coisa mais próxima ao amor que seu coração afogado em solidão já sentira. É melhor não ter pressa, pensar com calma no que fazer; talvez até mesmo se curasse sozinho... era possível, não? Não, mas Akutagawa queria que fosse. Ah! Bastava ter o amor correspondido! Ele se deu conta. Se Dazai visse o seu valor, tudo ficaria bem. Ele veria em algum momento, não veria?... não viu. Ele sequer tinha interesse em saber se Akutagawa estava vivo, morto ou morrendo por ele.

O problema é que Akutagawa não podia se livrar do amor. Ele odiava rosas, mas não queria se livrar delas. Passou quatro anos assim, as tossindo, sempre vermelhas e manchadas de sangue, até que não aguentou mais. Se não agisse, logo morreria sufocado por flores, asfixiado por amor, e no seu túmulo... no seu túmulo não queria rosas. Que o deixassem apodrecer sozinho, largado aos vermes, mas que não lhe dessem rosas logo quando não poderia as recusar. Qualquer coisa, menos rosas. Concluiu que era melhor mata-las de uma vez antes que o matassem, antes que florescessem entre suas costelas e, mesmo depois de morto, ainda tivesse a carcaça assombrada por elas.

Ele foi ao cemitério – oito pequenos túmulos do passado logo à frente. Akutagawa não tinha apego ou carinho pelos antigos companheiros, mas pensou que, se acabasse mesmo morto, que morresse ao lado daqueles que eram como ele. Tirou do bolso o tal veneno que um dos médicos lhe dera há alguns anos: um frasquinho preenchido por um líquido lilás, e estava pronto para usá-lo quando começou a tossir mais uma vez. O corpo fraco dele, já não aguentando os espasmos e a falta de ar, cedeu, deixando-se apalpar pela grama verde e desbotada que soprava aos sabores dos ventos, meio fúnebres.

Então morreria mesmo. Akutagawa se contorcia no chão enquanto de sua boca saíam rosas quase inteiras. Misturadas a sangue, saliva e lágrimas, elas caíam feito chuva de primavera, como se em vez de flores de cerejeiras, de todas as árvores de repente desprendessem-se rosas; cena muito bonita seria essa, se os protestos da garganta de Akutagawa não soassem desesperadores de se ouvir – gritos guturais capazes de arrepiar os ossos de qualquer desavisado.

Falando de desavisados, por ali passava um, carregando um buque de rosas brancas. Péssimo momento este para Atsushi decidir despedir-se permanentemente do diretor do orfanato, porque sua natureza quase inocente de tão bem intencionada nunca poderia ignorar os gritos de alguém agonizando no meio de um cemitério, mesmo quando se deparou com Akutagawa, com a pessoa mais desprezível que já conhecera, ele não pôde ignorar. Queria, mas não conseguiu. Mesmo após ver a expressão contorcida de dor e ódio dele, não fugiu; até porque nos olhos ele tinha lágrimas, na boca tinha rosas... como poderia fugir assim?

Contudo, ele também não ousou pronunciar uma palavra sequer. Atsushi não entendia muito bem as pessoas, mas sabia que, em momentos assim, não havia nada para ser dito. Largou as flores que carregava e se aproximou de Akutagawa para ajudá-lo a levantar-se; teria sido imediatamente empurrado para longe, se Akutagawa não estivesse tão fraco.

― É por causa dele que você está assim, não é?

Akutagawa não o respondeu, até porque não poderia nem se quisesse. Estava acostumado que o olhassem com pena, como se fosse um cachorrinho abandonado que, infelizmente, desvirtuou-se e apaixonou-se pela primeira esperança que lhe estendeu a mão. Ah... como odiava aquele olhar; mas Atsushi não o olhava assim. Talvez porque fossem parecidos como Fitzgerald dizia (apesar da ideia o revirar o estômago), Atsushi se mantinha firme – os cabelos picotados se misturando com o céu enevoado que uivava ao alto com o vento.

O que se sucedeu depois deixou Akutagawa confuso, quase como se tivesse levado um murro na cabeça. De lugar nenhum, os lábios de Atsushi tocaram os seus. Era estranho. Não entendia por que estava sendo beijado, até porque nunca fora beijado antes, e era estranho. As rosas não forçavam mais sua saída, e Atsushi não podia sentir gosto algum; mas gostava do perfume remanescente das flores.

Entre os dedos de Akutagawa, a mesma grama desbotada de antes era quase desenraizada como ele queria que fossem suas rosas, enquanto Atsushi tateava pelo seu pescoço, nuca, meio medroso como aqueles olhos amarelos dele, agora fechados. Foi só isso, só um toque de míseros segundos. Por que, então, o coração de Akutagawa estava tão acelerado? Mais do que sangue, bombeava pura ansiedade.

― Desculpe. ― Atsushi murmurou, a voz ainda próxima à boca de Akutagawa, e correu. O buque foi deixado para trás.

Não ficou claro para Akutagawa o motivo dos acontecimentos dessa tarde, mas, depois disso, não se sabe porque, ele não tossiu mais flores. À noite ele dormiu tranquilo, gostaria de dizer; contudo, mesmo sem tossir flores, Akutagawa ainda não pregava os olhos no sono tranquilo que idealizava. Deitado no escuro, com as pontas dos dedos descansando sobre os lábios, ele pensava em mais coisas do que poderia casualmente se contar. Ainda assim, ele não tinha ideia de que, no outro lado da cidade, alguém, como ele, também não conseguia dormir.

Nesta madrugada, num apartamentinho em algum lugar de Yokohama, Atsushi acordou e tossiu flores – pétalas brancas de crisântemos.

Encolhido no seu futon, Atsushi se perguntou se amor era contagioso. 

Feb. 26, 2018, 4:57 a.m. 2 Report Embed Follow story
6
The End

Meet the author

96hime uma fujoshi sem salvação que propaga sofrimento através de personagens 2D

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hange zoe hange zoe
amei...😊🌺
June 21, 2021, 01:17

  • hange zoe hange zoe
    Inclusive, você tem uma ótima escrita.💖 June 21, 2021, 01:18
~