Na ausência de avós, parentes e vizinhos que já um dia fugiram da seca e a buscar melhores condições, Firmina e Alfredo lutavam para encher a barriga das crianças. Costumavam plantar de tudo na horta que ficava nos fundos da casa. Mas a seca veio e destruiu tudo aos poucos. Bolso vazio, horta perdida, ambos não sabiam como acalentar o estômago dos meninos, que impacientemente aguardavam a próxima refeição.
O gado se fazia magro e se acometia de peste. Cada dia que passava um dos bovinos adoecia, pouco se aproveitava da carne. Intoxicação alimentar seria uma das prendas que a seca empregaria a todos eles. Alimentavam-se do que sobrava: mantimentos que mantinham guardados, legumes e verduras secas, que se faziam sem ar e sem gosto de tanta insolação.
Firmina reclamava, dizia que não tinha como ser desse jeito. Alfredo acreditava que as coisas voltariam à sustância, como costumava ser antes.
Já morriam de saudade dos tempos de fartura, quando o galo cantava de alegria e os bovinos se alimentavam do pasto verde. Já se tinha saudade, também, da vida que iriam ter, mas esse amanhã, infelizmente, não veio.
A paz reinava no sertão, mas a seca trazia o próprio inferno. Horas iam passando, assim como dois dias se foram quando o resto do que sobrara na horta e na dispensa se foi. Firmina estava desesperada, colocava a mão na têmpora e se danava a pensar, desconfiada do próprio futuro. Alfredo logo achou de ouvir a mulher: arrumaria o pouco que tinham e iriam em busca de novos ares.
Enquanto o homem da casa organizava os poucos mantimentos, Firmina arrumava as crianças, uma a uma. A caçula teimava em ter piolhos, que levavam a coçar constantemente a cabeça. A pele seca dava alergia a cada uma delas, que se encontravam arranhadas pela própria unha até surgir uma lepra. Até mesmo Pandora, a cadela, ganhou um laço de fita. Essa estava para se desmanchar: a pele magra cobria somente os ossos, assim como a lepra consumia também o resto de carne.
Era de tardezinha quando os dez saíram, um após o outro, a andar em um sol que teimava em ser de meio-dia: as crianças reclamavam da sede enquanto o pote guardava uma água barrenta e quente. Há dias se perguntavam como matariam aquela sede, que não cessava nunca. Pandora andava aos pulos no sol quente. Bolhas nasciam nas patas, enquanto a baba escorria pela boca. Alfredo, calado, pedia aos céus para que a vida no sudeste fosse mais branda, enquanto recordava da canção que certa vez ouvira no rádio, enquanto estava na oficina, a consertar o ventilador das crianças, e a esposa estava a cozinhar o alimento do almoço e da janta. Enquanto escumava de sede, admirou a beleza da moça que escolheu chamar de mulher, lembrando das transas que sempre tinham no decorrer da noite. Bicho solto, não tinha dias ruins para provar as carnes da mulher. Firmina, preocupada, pensava o que seria dali em diante, assustada com a condição que o sertão os colocou, temendo que possivelmente estariam esperando mais um. Havia meses que a menstruação não descia, mas temia a reação de Alfredo, por isso, calava-se. A cada dia, arrependia-se de não contar o que estava acontecendo, ao mesmo tempo que acreditava que tudo tinha uma hora certa.
Sempre paravam nas sombras e no escuro da noite para descansar, mas nunca era suficiente. A escassez de água e alimentos impedia o conforto e o asseio de todos, que dormiam sujos e acordavam imundos. Uma água salobra surgia em solos rochosos, nunca o suficiente para matar uma sede.
Dias se passavam, os pés doíam, enquanto a roupa suada fedia e os olhos olhavam terras desertas e secas. Pandora não resistiu ao mormaço e à magreza: partiu dois dias depois da longa caminhada. O laço foi arrumado na testa e fora enterrada no meio do sertão, ali, na calada do dia. A lepra consumiu rápido todo o corpo ossudo, sem muito músculo. As crianças choravam, perguntando o porquê a velha amiga tinha partido. O pai, entre dentes, dissera que a seca levara o amor mais genuíno que ele havia sentido, mas que honraria a todo o tempo pela vida de Pandora. Na noite, permaneciam mal conseguindo dormir com o suor fétido que exalavam, uma vez que não conseguiam sanar o problema da falta de banho em terras firmes. Às vezes achavam animais mortos e teimavam em assar os pedaços, roendo o pouco de músculo que se colava ao osso, que nunca satisfaziam.
Chegou-se ao ponto em que estavam se acostumando com a seca, a falta de água e alimentos. As crianças estavam a se tornar zumbis pela fome e principalmente pela sede. Firmina, uns quatro dias depois do início da caminhada, sangrou como nunca havia sangrado; percebeu que, junto à menstruação, restos de um feto vinham por baixo. Logo sentiu-se febril e enferma, a deitar no meio de um pouco de sombra. Infeccionava por dentro, diante de tanta negligência. As crianças e o marido padeciam e compadeciam daquela mulher, que, em silêncio, mantinha-se apreensiva a respeito de como seguiriam.
Dias depois, os filhos morriam de fraqueza e sede. Alfredo e Firmina choravam, a clamar por ajuda. Os mais fortes carregavam os mais fracos nas costas, tudo medido ao mínimo de energia que tinham. E assim iam andando, parando, sobrevivendo com o mínimo que encontravam no meio do caminho, até que iam desaparecendo aos poucos, até sobrar nenhum.
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