Eu e mãe firmamos um acordo silencioso para tratar dos tantos espelhos espalhados pelo apartamento. Eu nunca me dei bem com eles, nunca gostei do que via. A puberdade veio então para piorar tudo; meu nariz cresceu na frente do rosto e eu tinha certeza que um dos olhos estava ficando mais aberto que o outro.
"Olha mãe, é o direito!" - Eu chorava em frente ao espelho maior da sala. - "Meu olho direito está maior, estou deformado, sou um monstro!"
"Meu amor, você é lindo. Isso é coisa da sua cabeça, meu amor. Ontem mesmo você disse que era o olho esquerdo. Você está virando um homem lindo!"
"Você é minha mãe, sua opinião não conta!"
Eu continuava chorando, resmungando e fixando meu rosto no espelho maior. Daí eu pensava que talvez fosse algum problema com aquele espelho e corria para os outros. Eram muitos; na sala, cozinha, banheiro e até no corredor que dava para a porta social. Isso sem contar nos espelhos do quarto da minha mãe. O mais intrigante era que, em cada um dos espelhos, eu encontrava alguma coisa anormal. Por exemplo, tinha o espelho pequeno na pia do banheiro que mostrava a minhas narinas meio derretidas e me deixava com cara de doente; o espelho na cozinha me assustava pelo perfil grotesco com a testa cheia de galos formando pequenos chifres que um dia iriam chocar. O espelho do meu quarto eu joguei pela janela, ele acusava me queixo retraído como se minha boca estivesse comendo meus dentes e minha mandíbula.
"Rafael, pelo amor de Deus... Pare de andar pela casa, meu filho, você está me deixando doida!" - Mamãe me pegava durante a tarde correndo de um espelho para o outro nos dias em que todos eles escancaravam meus defeitos e eu me recusava a ir para a escola.
Por causa disso, ela vendeu quase todos eles. Sem comentar nada, a cada semana um espelho sumia do apartamento. Mamãe sabia que eles me faziam mal e eu sabia que ela precisava do dinheiro; bons espelhos como aquele valiam uma boa grana. Foi o nosso acordo silencioso.
É claro que a falta de espelhos espalhados ajudou um pouco a tirar meus pensamentos do monstro que eu estava virando. Mesmo assim eu ainda tinha meus momentos. Se tem uma coisa impossível de fugir... é do seu próprio reflexo. Poças d'água, janelas de carro, a televisão desligada, a janela enorme e bem limpa do meu quarto. Não adiantava escovar os dentes de olhos fechados. É apavorante demais ser a sua própria assombração.
Em momentos mais calmos, eu conseguia me colocar no lugar de mamãe e perceber que ela estava se roendo de tristeza e preocupação, sabe, de ter que lidar com esse problema além de todos os problemas que ela já precisava cuidar. Talvez isso signifique ser responsável por alguém. Eu jamais me tornaria pai!
"Rafael... Filho... Corre aqui..." - Ela me gritou do quarto. Meu despertador mostrava que faltava apenas um minuto para a segunda hora da manhã."
"Meu remédio, procura pra mim na bolsinha da pia."
A pequena bolsa florida estava bem ao lado do pequeno espelho e eu usei apenas a minha visão periférica para procurar os comprimidos que mamãe precisava tomar para suas dores na coluna. Por mais que os espelhos vendidos tivessem lhe ajudado a pagar o plano de saúde, ela ainda precisava fazer uma cirurgia. Ou então, ela seria escrava desses remédios super fortes pelo resto da vida.
"Não tem nada lá, só um remédio para cólicas."
"Ai não, merda, merda..." - Mamãe se contorcia na cama e apertava o cobertor, dobrando e esticando com toda a força. Eu imaginei que a situação era muito grave já que ela evitava demonstrar fraqueza na minha frente; ela sempre precisou ser a minha bengala. - "Tem certeza filho? Procura na caixa debaixo do armário... Ou na cozinha. Isso! Pode estar na cozinha!"
Nada feito. Eu procurei em todos os lugares da casa; com ou sem reflexos. Naquele momento eu era o homem responsável, não teria como esperar amanhecer para comprar os remédios de mamãe. Ela, mesmo urrando de dor, não me pediu nada, apenas ficou se culpando por ter esquecido os comprimidos em algum lugar; talvez no consultório.
"Tem aquela farmácia que fica vinte e quatro horas aberta, perto da rodoviária. Eu vou lá agora!"
"Não, meu filho... Essa hora é perigoso, pelo amor de Deus. Eu vou fazer uma compressa."
"Nada disso, eu vou lá agora!"
Já com o dinheiro e a receita em mãos, além dos documentos de mamãe, eu mirei na escadaria do prédio completamente escura. Mesmo que os serviços de iluminação estivessem todos pagos em dia pelos poucos moradores, não havia uma noite em que aquelas lâmpadas funcionassem. Sorte a minha que meus passos já eram treinados de tantos anos subindo e descendo aquelas escadas. Em um minuto eu já estava atravessando a rua em direção à rodoviária. Nem me atentei para a sensação desconfortante de que havia alguém descendo atrás de mim; eu já tinha me convencido de que eram apenas os ecos dos meus passos no prédio silencioso.
A cidade naquele horário parecia um set de filmagens de algum filme assustador que ainda esperava os atores chegarem para as gravações. Eu reparei em um sinal que travou na luz do "pare" e ficou refletindo em uma poça da chuva recente. Parecia a cena de um crime, uma jorrada de sangue. E, se tivesse acontecido um assassinato ali, um crime de verdade, certamente não haveria uma testemunha sequer. Me recusei a olhar meu rosto refletido naquela poça, mas imaginei que teria sido monstruoso, meu rosto todo deformado e vermelho. Eu passei por ela; passei porque não podia deixar mamãe sofrendo e aquele era o caminho mais rápido para a farmácia. Depois daquele sinal, só faltava atravessar a passarela subterrânea. Um atalho obrigatório já que a rodovia era bloqueada no meio da faixa para evitar que os pedestres se arriscassem entre os carros.
O túnel fedido era cheio de entulhos; carrinhos de mercado e caixa de papelão formavam silhuetas duvidosas pelo trajeto inteiro. A luz lá no fim, o que daria mais ou menos cinquenta passos largos, vinha apenas da lua. Eu apertei as mãos nos bolsos e comecei a travessia com um fôlego só. Não foi um mergulho, mas foi como me sufocar no ar, pelo cheiro e pelo medo.
"Ei, você... Moleque!" - Dois homens gritaram atrás de mim. - "Se correr é pior!"
Eu era um bom corredor, mas meus joelhos me traíram. Quando tentei dar um passo, um joelho fraquejou e o outro emperrou. Muito diferente dos joelhos daqueles homens que chegaram rapidamente como sombras e me engoliram com socos e chutes. Eu achei que quando estivesse no chão, todo arrebentado, eles finalmente iriam embora com o dinheiro do remédio. Só que não. Eles queriam o dinheiro, mas também queriam se divertir antes. Meus pensamentos foram pra um lugar tão distante que eu podia jurar que estava vendo toda a cena de longe. Pensei que tinha morrido; além de me assombrar, eu achei que tinha virado o próprio fantasma.
"Estou vivo." - Resmunguei enquanto apalpava meu rosto dormente. O calor que crescia nos meus olhos e nariz mostrava de onde o sangue queria brotar, mas não saiu nada.
Os acontecimentos que se seguiram foram meio picados pra mim, na minha memória. Eu só lembrava que tinha medo, raiva, desespero. São temperos perigosos, dão gosto amargo para pratos que nunca deveriam ser comidos; gosto de veneno. Eu sabia que estava bem, estava mesmo vivo. Eu sabia que voltar para casa naquela situação só iria piorar a noite agonizante de mamãe. Ela iria querer me ajudar, iria se culpar por ter deixado eu sair no meio da noite. Tudo isso em meio a uma dor delirante.
Por isso, eu fiz o que fiz.
Bem no final do túnel nojento, se destacou em meio aos entulhos e as silhuetas duvidosas, um homem jogado no chão com um garrafa vazia ao lado. Ele segurava algumas notas com as duas mãos; como quem segura a coisa mais importante de sua vida. No caso daquele mendigo, era a única coisa da sua vida. O homem estava aos trapos e isso foi o máximo que a penumbra me permitiu ver. Sem pensar muito e ainda enervado pela adrenalina, eu catei o dinheiro da mão dele com um gesto rápido e vergonhoso.
Ele nem se moveu.
Me confortei imaginando que ele usaria aquele dinheiro para beber mais durante o resto do próximo dia. Ou compraria drogas. Não do tipo de drogas que minha mãe, uma mulher trabalhadora e bondosa precisava para suportar as horas. Me confortei também porque a quantidade que roubei daquele homem era exatamente o que eu precisava para comprar os remédios: Quarenta e oito reais. Notas imundas e amassadas que estavam tão imundas e amassadas quanto minha consciência.
Comprei o remédio e nem me atentei que precisaria refazer o caminho para voltar. Naquela altura, já quase três da manhã, as dores das porradas que levei começavam a me incomodar; principalmente no rosto. Para distrair minha cabeça do terror que seria passar por aquele homem outra vez, eu fiquei pensando no horror que seria ter que me olhar no espelho para tratar das feridas.
E foi pensando no monstro que eu via quando olhava meu reflexo que tive forças para passar por aquele bêbado aos trapos no chão com cheiro de mijo. Eu já estava quase saindo do outro lado quando um berro me fez congelar.
"Você... Garoto imprestável!" - O homem era uma sombra no meio do túnel cheio de outras sombras inanimadas. Eu me virei para ver que ele se arrastada na minha direção em ziguezague. Ele era bem mais alto do que dava para perceber quando estava deitado. - "Você, garoto insolente!"
"Desculpa, moço..." - Inacreditavelmente, eu ainda estava parado. Minha cabeça mandava: CORRE! CORRE!"
"Garoto, volte aqui..."
Ele ainda estava a uma distância segura, mas chegou perto o bastante para que eu percebesse o estado do seu corpo. A camisa de botão aberta mostrava as costelas secas, os sapatos pretos bem surrados e o rosto. O rosto todo enfaixado por tiras que pareciam papel higiênico usado. Ele continuou gritando.
"Por que você não leva também minhas roupas? Por que não leva também meus sapatos de uma vez? Seu ladrão de merda! Por que não leva minha vida, minha alma... O meu rosto?"
Eu vi e nunca seria capaz de esquecer. Enquanto corria, atravessando o sinal parado no vermelho, passando pelos becos perto do meu prédio e subindo as escadas frias... Eu vi o rosto que ele revelou ao arrancar as tiras de pano. Eu vi o pouco que a luz da lua me permitiu quando ele chegou perto o suficiente... Mas, eu vi.
Já em casa, eu fui socorrer mamãe com um copo de água e dois comprimidos na mão. Ela estava em um sono calmo e profundo, tanto que foi difícil acordá-la.
"Mãe, acorda! Eu comprei o remédio."
"Meu filho..." - Ela mal conseguia falar, enrolada com a língua, nem abriu os olhos." - "Eu não aguentei e fui procurar, os remédios estavam na bolsa florida. Mesmo assim, obrigada meu amor. Você é meu heroi!"
Eu não era heroi. Fui me deitar me sentindo um ladrão, um covarde, fraco. Me senti um idiota por não ter olhado direito a bolsinha apenas para não ter que encarar meu reflexo no espelho da pia.
Sabe-se lá como, eu dormi. Eu dormi apenas para ser acordado com um pesadelo. Nos meus sonhos, eu vi aquele homem. Ele estava de pé na esquina do prédio, a garrafa de cachaça na mão. Lá na esquina, apenas parado na direção do meu prédio. Pulei da cama com a consciência martelando e o rosto ardendo. Eu sabia que não conseguiria dormir enquanto não tirasse a prova, então me levantei e fui espiar pela janela. Flagrei com os olhos apertados; lá estavam os sapatos surrados do homem. Iluminados pelo poste fraco, mas estavam lá. Os dois pés.
Na semana que se passou, um alívio veio para acalmar o tormento daquela noite. Mamãe finalmente conseguiu autorização para sua cirurgia como um caso de extrema urgência. E nem precisou pedir socorro para algum vereador. Logo, ela arrumou suas malas e partiu para o hospital; eu teria direito a algumas visitas em horários específicos, então também fiquei sob aviso. Sozinho no apartamento.
O pesadelo voltou mostrando aquele homem descalço. Como ele era alto e intimidador. Seus pés sujos apareceram no meu pesadelo dando passos em direção ao primeiro degrau do prédio; unhas encardidas e duras como casco. Eu senti um cheiro podre de lixo e pude ver seu calcanhar como se observasse a cena de um canto atrás do homem. Ele subiu quase todo o primeiro lance.
Ressurgi para a realidade completamente ensopado de suor. Seria possível o peso da culpa ser tão grande que estava me torturando na fantasia sombria e também na realidade? Eu precisava conferir.
Com uma faca bem grande, eu desci os lances das escadas até o térreo. Parei em desespero. Lá estava a blusa de botões do homem. Toda rasgada e cheia de manchas duvidosas, o cheiro de cebola ardeu meu nariz.
"Eu tenho uma faca! Vá embora daqui!" - Corri de volta para o apartamento antes que ouvisse alguma resposta. Enquanto eu subia os degraus, pude jurar que os passos que ecoavam no prédio não eram apenas os meus; isso já havia acontecido em outras situações, mas daquela vez foi um escândalo. Parecia que o homem subia a escada atrás de mim.
Minha mãe possuía um pequeno bar na sala de jantar. De lá tirei uma garrafa de vinho. Eu não costumava beber, nem tinha idade pra isso, mas de certo iria precisar de ajuda se quisesse suportar a noite sozinho no apartamento. Tomei logo duas taças grandes; a faca bem perto de mim. Por acidente, olhei meu reflexo no espelho que ela tinha na parede ao lado do bar. Ainda dava pra ver alguns hematomas do assalto que sofri no dia em que cometi o furto. Mas, na minha cabeça, os machucados eram bem piores, deformadores. Fui tratar de terminar a garrafa no meu quarto, longe de qualquer reflexo.
Apaguei sem querer, sentado na cadeira que usava para apoiar algumas roupas.
O homem voltou no meu pesadelo. Na escada. Ele estava subindo a escada bem perto do meu andar; descalço e sem camisa. Seu corpo era um incômodo de olhar, os cabelos grossos no peito que pareciam engordurados e tentavam esconder a falta de carne. No meu pesadelo eu era ainda mais baixo e não conseguia olhar para cima. No máximo até seu queixo pontudo. Então, eu não pude ver quando ele arrancou seus olhos e seu nariz e sua boca para jogar tudo nos degraus perto de mim. As partes de sua face caíram como um escarro sangrento, se espalhando pelo degrau escuro e frio.
Acordei vomitando o vinho.
No relógio, ainda faltava um minuto para as três da manhã. Foi o minuto que eu passei andando de um lado para o outro da sala. A faca na mão. Senti indignação, pânico e a revolta de estar sendo perseguido na fantasia e na vida real. Para piorar, do meu apartamento eu ouvia os passos subindo os últimos degraus até o meu corredor, o estalado das tábuas defeituosas eram distintas e familiares; isso significava que poucos passos separavam aquele homem da minha porta. Antes que a sombra passasse pela fresta, eu consegui sentir o seu futum.
Eu precisava fazer alguma coisa.
Antes de saltar para fora do apartamento, decidi lavar o meu rosto vomitado e não pude evitar de me olhar no espelho. Mas, não era o meu rosto que me encarou. Era uma face sem olhos, sem boca e sem nariz. Uma coleção de buracos indecentes com carnes penduradas e dentes rachados, amarelos e pestilentos. Quando gritei, não foi a minha voz que saiu. Era a voz do homem que roubei; era a voz do homem na escada.
Um casal assustado precisou cortar caminho na madrugada seguinte. Aquele túnel que cortava a avenida foi a única solução. Eles passaram por mim e me jogaram uma moeda. Eu pude sentir o olhar de pena; talvez se eles tivessem dado uma boa espiada através da penumbra teriam dito:
"Pobre garoto... O que será que ele esconde atrás dessas tiras de pano?"
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