C
C Clark Carbonera


"Esse mundo ainda possuirá mais noites do que dias, cabe a nós sermos testemunhas disso. Andar nas bordas da escuridão dos dias requer uma mente sã, um coração puro e os olhos cheios de estrelas, pois que apenas essas são capazes de iluminar as sombras da noite." Excerto do pergaminho do experimentador Divya.


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Estudando demônios


A bola de fogo descia morosa atrás da Colina do Corvo, a primeira estrela despontava na parte escura do céu e o movimento das pessoas no chão batido de terra tinha diminuído um pouco, não que isso fosse relevante ou característico perto da última casa do vilarejo onde vivia o temível e admirável Kadmile.

A última (ou primeira a depender do seu estado de espírito) casa de um vilarejo nunca foi algo a ser disputado entre quaisquer moradores, ainda mais naquelas épocas de disputas territoriais entre famílias cujos emblemas só pareciam levar mais trevas por onde cavalgassem. Isso porque normalmente essas casas seriam as primeiras a serem tentadas por qualquer assaltante, criaturas noturnais ou clã adversário. Sendo assim, uma moradia dessas era implicitamente direcionada aos indivíduos de histórico duvidoso: ‘que seu passado infame se torne sua tormenta’, como dizia o Padre Nobre local.

Todavia a palavra de seus vizinhos ou do Padre Nobre não alterava em nada o comportamento de Kadmile. De fato, ele concordava em muito com a fala daquele último e o quase ostracismo que o vilarejo costumava lhe lançar era praticamente um presente divino, pois não havia muitas coisas melhores do que fazer seus próprios experimentos e suas próprias reflexões a sós, observando a vida daqueles que persistiam em agir como se Kadmile não existisse.

Na casa de pedra simples que fora de um matador de porcos antigamente, Kadmile criara um alojamento secreto embaixo da construção com o auxílio dos colegas que lhe indicaram o posto de trabalho. No local, estrategicamente construído logo após o alistamento forçado de todos os homens da região para a última batalha declarada, iluminados por algumas candeias cheias de óleo de baleia e de pavios longos, boiavam espectros do que um dia foram seres humanos.

O homem de trinta e dois anos, encurvado numa mesa de madeira nobre, soltou um longo suspiro, o cabelo ensebado e encaracolado lhe descia pela face.

– Não... não pode ser...

Ele havia se trancado no alojamento de pedra por várias semanas, comendo apenas o que Latus conseguia surrupiar dos mercadores (na melhor das ocasiões: um pão inteiro, meio queijo e uma jarra de vinho), envolto pela parca luz das candeias e pelos pesados pensamentos. Aquele suspiro longo lá de cima veio da trigésima comprovação teórica que ele fizera.

Da primeira vez que aquela ideia lhe veio, ele culpou as noites mal dormidas e a falta que sua companheira mirim fazia, mas das vezes seguintes, vez em cada, a ideia e o raciocínio foram ficando mais claros, mais óbvios, mais... naturais. E ainda que não quisesse admitir, a matemática por trás daquilo parecia fazer sentido; para a formalização da sua teoria, faltava apenas uma revisão de três outros experimentadores da Ordem para que sua ideia pudesse ser transmitida de boca em boca entre os pensadores e suas redes de conselheiros familiares, além da necessária comprovação factual da hipótese, que deveria ser feita com os três experimentadores revisores e outros sete experimentadores testemunhais.

Kadmile passou as mãos pelo rosto barbado com força, como que para espantar qualquer inflexão de cansaço. Olhou os rabiscos e lambeu os lábios, os pés batendo num tique nervoso. Ele obrigatoriamente precisava aguardar a revisão dos três colegas seus, mas a espera para tal seria pior que uma adaga no peito. Seus espécimes estavam bem ali junto a ele, enquanto o braço da Ordem mais próximo ficava há dois meses de distância, isso a cavalo... sem contar o tempo que levariam para decidir quais experimentadores seriam os revisores e posteriormente os testemunhais, caso os primeiros decidissem pela aprovação da teoria. Após, todos os onze experimentadores precisariam estar presentes no momento do testemunho em local neutro, isto é, em um dos braços da Ordem.

Kadmile coçou os olhos e percebeu que precisaria colocar mais óleo na candeia de sua mesa. O pensamento pareceu tão tolo diante do que os pergaminhos rabiscados mostravam que dos seus lábios ressecados saiu uma risada fraca.

Dirigiu o olhar de soslaio para a esquerda, onde armazenava os espécimes mais bem conservados; o lugar mais escuro daquele ambiente já lúgubre.

‘Não se amedronte, Annya, essa escuridão está só na sua mente, é o seu medo que a deixa mais escura’, era o que costumava dizer para a pequena menina que lhe fazia companhia e de quem era praticamente um tutor. Embora às vezes Kadmile se perguntasse se a luz da candeia não diminuía drasticamente ao se aproximar daquele lugar ou se tudo isso não seria apenas seus olhos cansados ou até superstição...

Seu pé batia mais intensamente e seu anseio fazia o coração vibrar.

– Peço perdão aos meus colegas.

Ele sussurrou, pegando a candeia da mesa, deixando-se levar por seus pés treinados na rigidez disciplinar dos monges e padres. Parte dele agitava-se em comprovar e testar sua teoria, a excitação e um pequeno orgulho de estar certo, de conhecer um lado oculto das leis da vida; mas a outra parte o fazia perder o ar dos pulmões só de pensar que poderia estar mesmo certo.

‘Enquanto não eliminar a dualidade dentro de você mesmo, você não conseguirá avançar na senda, Kadmile’. As palavras do seu monge mestre retumbavam no peito a cada pulsar do coração, sua garganta estava apertada.

Kadmile se ajoelhou no chão gelado e úmido, aproximou a candeia do terceiro recipiente. Deixando a visão se acostumar àquela imagem antinatural como diziam os demais, uma massa amorfa aos poucos foi delineando um par de braços e de pernas apertados ao redor do corpo, a face da criatura cheia de pregas, cicatrizes, buracos e verrugas era parcialmente coberta por alguns tufos de cabelos que flutuavam no líquido transparente.

Engolindo em seco e com dedos trêmulos, ele pegou de entre as vestes o único artefato que continha uma pequena parcela do elemento de que precisava. Kadmile beijou o amuleto de vários símbolos, mentalmente fazendo uma prece e aproximou-o do recipiente com cautela, a luz da candeia bruxuleando com a ferocidade de um vendaval.

Assim que o amuleto encostou no vidro, uma saliência disforme perto das costelas do espécime começou a latejar como um coração que voltava a funcionar aos poucos, até se transformar numa face humana, cujos lábios se abriam num grito silencioso e os olhos cerravam-se em desespero e dor.

– Ah, merda...

Foi quando a candeia se apagou num sopro.



~.~.~.~

O cortejo na cidade interna era insanamente colorido e continuava a festejar fora do castelo de Sartyria, onde a chegada da princesa Lúmia estava sendo brindada pelo seu pai nesse exato momento com palavras difíceis demais para Annya se dar ao trabalho de lembrar. Nesses últimos meses, enquanto viajava com parte da família real, ela se questionava se devia estar ali de fato e logo em seguida a resposta vinha como um simples “Por que não?”

Se aquilo era o melhor que poderia ser feito para seguir adiante e sobreviver, então é o que faria. Annya só esperava por rever Kadmile e Latus e contar suas novidades. Enquanto as palavras do rei ecoavam pelo salão, ela estralou os dedos e recebeu um ‘xiu’ de reprimenda da condessa. Na verdade, Annya não tinha lá muitas novas para narrar aos dois, só o fato de não ter caído morta e envenenada já era o suficiente, mas vamos lá, ela conseguira matar mais um e para Annya aquilo era o mais interessante, ou melhor, o mais importante. E era exatamente por causa disso que ela sozinha conseguira o posto de sluga da princesa. Não precisou de Kadmile, de Veurn nem de krojac nenhuma.

O primeiro trabalho de Annya dentro dos muros foi dado por Kadmile meses atrás, um pedido feito ao experimentador Veurn, que depois de mexer um e outro pauzinho, conseguiu que Annya se tornasse uma entregadora interna, realizadora de tarefas para os slugas dos armazéns e para os encarregados dos animais do castelo. Depois de alguns meses, e com as dicas de postura e conduta de Kadmile, ela conseguiu alguns pequenos afazeres como assistente da krojac da princesa, levando peças de tecidos, agulhas, alfinetes e linhas para cima e para baixo a cada semana, quando a princesa abria seu armário e dizia não possuir nenhum vestido apropriado para as reuniões semanais.

E foi a própria princesa que requisitou a presença de Annya para a viagem que ela faria à região vizinha.

– Nunna, precisarei de uma mão para essa viagem, minha condessa caiu enferma ontem mesmo.

A princesa lançava olhares criteriosos aos mínimos detalhes das linhas da costura de seu novo casaco, enquanto falava sem afetação com sua krojac.

Annya corria de um lado a outro, os braços cheios de linhas em cores ocres. Tão esbaforida estava com a ideia de prender os dedos nas linhas e não conseguir soltá-los, que ela nem notou a princesa virar a cabeça de um lado a outro como uma águia mirando a presa.

– Essa daí será suficiente. Não preciso de nada muito inteligente, apenas que sirva para experimentar os pratos. Eu usaria a cadela da condessa, mas... – e abanou a mão como que a espantar uma mosca invisível.

Nunna anuiu sem uma palavra, mas dirigiu um olhar a Annya com muito peso. A menina sentiu o estômago estranho, mas talvez fosse só a falta de comida. Annya tinha como pagamento agora apenas um prato de comida da cozinha real e uma moeda de cobre. Ela assentiu de volta e mirou a princesa, que lhe retornou uns lábios torcidos.

– Embora essa cadela aqui precise de algum adestramento até os preparativos.

A krojac quase cedeu nas próprias pernas ao ver que Annya encarava a princesa a seco e jogou um vestido inteiro em cima da menina, que caiu para trás sem cerimônia com peso da roupa.

– Até a viagem começar e durante todo o percurso ela irá aprender a conduta correta. É pequena no tamanho, mas aprende rápido e não é muito idiota.

Enquanto Annya tentava encontrar a saída daquele amontoado de tecido, a princesa não se deu ao trabalho nem de dar os ombros, apenas saiu do banco baixo e deixou-se desvestir pela krojac. Assim que a princesa saiu do aposento, Nunna a seguiu como uma sombra, não sem dirigir um último olhar severo a Annya que finalmente se desvencilhou das vestes reais.

Com pés e mãos rápidos, a menina que realmente não era muito idiota, terminou de arrumar o quarto da krojac e logo em seguida, sem resvalar os olhos em ninguém, dirigiu-se aos aposentos do experimentador Veurn.



Se ela entendera bem o que a princesa dissera, aquilo significaria uma viagem de quase seis meses. Obviamente que ela teria uma certa segurança durante o trajeto, mas ainda assim, as estradas eram travessas e as noites densas continuavam ali, à espreita... E Annya nunca saiu dos arredores da cidade real, a não ser quando apostou os dois biscoitos de canela roubados por Gimmo que ela conseguiria ficar uma hora inteira sozinha na floresta dos corvos. Aquilo foi o máximo que se atreveu a fazer.

Descendo as escadas de pedra em espiral, a menina sentiu o ar ficar mais úmido e frio, o coração batia rápido pela corrida e emoções contraditórias.

– Veurn? – ela sussurrou o nome ao empurrar a porta pesada de madeira com ferrolhos. Era uma das poucas que chamava o experimentador pelo próprio nome de berço e não pelo seu cargo. – Veurn?

– Aqui atrás!

Annya seguiu o eco da voz para encontrar um homem alto de cabelos loiros quase brancos, vestido na conhecida túnica dos experimentadores. As costas eretas dele estavam rígidas na concentração que ele dirigia em mais uma de suas dissecações.

Ao ouvir os passos leves da pequena se aproximarem, ele sussurrou sério:

– Diga, Annya.

– O que está fazendo?

– Tenho certeza de que não veio aqui para me perguntar isso...

A menina se debruçava sobre a mesa de madeira nobre, os olhos esbugalhados para o peito aberto de um elfo de tamanho médio. Veurn expeliu ar exageradamente e jogou um pano fino em cima de seu objeto de estudo e utensílios. Virou-se para Annya, uma mão na cintura e a outra apoiada na mesa.

– Sim...?

– Deixa eu ver, só mais um pouco!

– Não. Você nem deveria estar aqui, menina. Muito menos ver o que eu faço.

Ela deu de ombros e cruzou os braços numa arrogância de criança.

– Não é diferente do que Kadmile faz na casa dele, também não é a coisa mais horrível que já vi.

– Você tem menos de cinco minutos para falar o que veio me dizer.

Veurn deu-lhe as costas a fim de pegar o resto do chá de ervas que já estava gelado àquela altura do dia, embora isso não o impedisse de saborear o líquido amargo. Annya limpou a garganta.

– A região de Cashmirrie ainda está com a epidemia por lá, correto?

O experimentador brincou de jogar o chá de um lado a outro da bochecha, enquanto encarava divertidamente a pupila de Kadmile. Engoliu o chá. Conhecia a menina há pouco tempo, tempo suficiente para saber que ela levava certas coisas a sério e outras nem tanto. Pensou brevemente em brincar com ela, todavia não queria perder uma das poucas companhias que ele tinha no castelo.

– Sabe muito bem que eu não tenho permissão para divulgar algumas informações nem para o círculo íntimo da família real, que outras tantas eu distorço para não haver nenhum rebuliço do populacho, e que a maior parte delas eu guardo só para mim, bem aqui – ele apontou para a própria cabeça. – Além do que, Annya, perguntas assim não deveriam ser feitas por uma senhorita.

Ela deu de ombros novamente, ainda com braços cruzados e ar inquisitivo.

– Não sou senhorita alguma e você sabe bem disso, porque se eu fosse, não teria que fazer as coisas que já fiz – Veurn sustentou o silêncio dela. O coração de Annya voltou a bater rápido. – A princesa acabou de me chamar de cadela.

Veurn piscou várias vezes com a rápida e hilária mudança da conversa numa tentativa de se manter sério.

– A princesa o quê?

– Você ouviu bem, não tem cera de gnomo das lamas nos ouvidos, Veurn. Ela me chamou de cadela. Disse que era isso que eu teria que ser porque a condessa dela ficou doente e ela precisa de uma cadela para experimentar os pratos no lugar dela se necessário. Vou viajar para Cashmirrie, Veurn, então eu quero saber se a epidemia está ou não acontecendo por lá.

O experimentador foi baixando os olhos enquanto Annya falava, sua mente começou a fervilhar de um jeito muito incômodo, lambeu os lábios para sentir o nostálgico gosto do chá amargo.

– Você aceitou a oferta?

– E tinha eu possibilidade em recusar uma ordem dela? Espera... as ordens são ofertas? Eu posso recusar um pedido deles? Não que eu vá fazer isso, mas saber que é possível...

– Annya, Annya... – Veurn segurou-lhe os braços com firmeza, agachando-se diante dela. A proximidade dos dois nunca foi tanta e ela achou aquilo estranho. Ambos permaneceram em silêncio, enquanto o experimentador procurava desembaralhar seus pensamentos. Annya tentou se desvencilhar, sem sucesso.

– Você não estaria assim se não houvesse nada lá. Então há algo acontecendo em Cashmirrie, não são apenas histórias para nos assustar.

Ele abriu a boca uma única vez e fechou-a depressa. Levantou-se e colocou a mão pesada na cabeça de Annya, que tentou retirá-la.

– Quer parar de me tratar como criança?

– Você é uma criança. – Veurn mirou-a sem piedade e falou como que para si mesmo. – Eu bem que disse a Kadmile que deveríamos tê-la apresentado como um menino antes de colocá-la aqui dentro.

– Mas eu não sou menino. – A amargura na voz era sólida.

Sem querer desmerecer a dor dela, Veurn comentou em tom ríspido, já sem muita paciência.

– Isso sim foi uma história para assustar crianças, mas não foi feita primeiramente a vocês. A ideia de que as mulheres impuras eram a causa para possessão demoníaca foi criada por um padre conservador com ideias retrógradas, visando as mulheres e meninas da nobreza. E apesar de já ter sido excomungado pela Igreja Maior, sua história fantasiosa fez tanto estrago quanto os incêndios do verão, atingindo todos os níveis.

A careta de Annya diante daquela informação fez Veurn sentir um cansaço muito grande e uma solidão imensa. A menina tentava decidir se acreditava naquilo ou não...

– Annya, você precisa crer de uma vez por toda quando eu e Kadmile dizemos a você que o que aconteceu naquele dia não foi culpa sua.

A garganta ficou apertada demais para ela engolir o choro e enquanto tentava, a menina começou a engasgar. Só conseguiu recuperar o fôlego depois de alguns tapas nas costas que Veurn lhe deu. Enquanto ele a punha sentada na banqueta alta próximo à mesa, o experimentador deixou-se tomar novamente pelas dúvidas que perseguiam seu ofício.

“Por que a Ordem não tinha permissão para falar abertamente sobre seus conhecimentos aos forasteiros? Por que achavam que isso poderia desequilibrar ainda mais a ordem natural das coisas? Tudo já não estava de ponta cabeça? Todos não teriam mais condição de se precaver contra aquelas escuridões se soubessem o que os registros da Ordem guardavam?”

O experimentador precisava conversar seriamente com Kadmile, antes de aquela viagem acontecer. Não apenas sobre Annya seguir na viagem, como também sobre a princesa e o que aquilo significava. Embora Veurn já tivesse uma noção do que o outro diria. Como Annya era praticamente uma pupila para Kadmile, ele diria que se aquilo estava para acontecer, então ninguém tinha permissão para distorcer aquele fluxo. Veurn ainda não compreendia muito bem aquele pensamento orientalizado embora respeitasse seu colega e irmão experimentador. Mas e em relação à princesa?

Todos sabiam do plano real de aproximar os dois reinos a fim de criar uma ligação comercial mais consistente e o início de uma linha de proteção justamente para manter a existência das linhas comerciais. O único ‘porém’ em tudo isso era que, em Sartyria, apenas o rei e seu experimentador, no caso Veurn, sabiam do fato de que o castelo e a realeza de Cashmirrie haviam sucumbido à epidemia demoníaca, então abafada pela Ordem e pelo Padre Nobre local.

Assim que Veurn tomou conhecimento da epidemia e confidenciou ao seu rei, conforme orientação dos seus colegas da Ordem, a ideia de que ele enviaria a princesa Lúmia para prosseguir nas tratativas dos acordos e para um possível futuro casamento com um dos herdeiros de Cashmirrie era tão inconcebível para ele que Veurn tinha entendido as entrelinhas erroneamente.

O rei estava enviando sua própria filha para um ninho de demônios que ainda não tinha sido completamente exterminado.

Talvez a Ordem estivesse certa em manter suas informações bem guardadas dos forasteiros. Se o rei, tendo o conhecimento que tinha sobre o que estava acontecendo em Cashmirrie, continuava com seus planos, não poderia ele utilizar-se dos conhecimentos secretos da Ordem para propagar mais escuridão?

Veurn tirou um terço de dentro das vestes e o beijou, fazendo uma prece em voz baixa. Aproximou-se de Annya e ajoelhou-se diante da banqueta alta em que ela se sentava com olhos ainda avermelhados.

– Temo que se eu disser o que te espera por aquelas regiões, você não cogitará por duas vezes antes de se despedir de Kadmile.

Os olhos de Annya se arredondaram com as palavras. Ambos se entenderam.

– Então é verdade...?

– Sim.

– Quer dizer que eles ainda...

– Sim.

A menina deu um salto da banqueta, os punhos cerrados e os dentes cravados na boca cheia de amargor. Agora sim que ela aceitaria ser a cadela da princesa de bom grado e nada poderia impedi-la do contrário, nem Kadmile nem Veurn.

– Sei das suas motivações, Annya, mas ninguém aqui do castelo sabe do que aconteceu em seu passado. Para eles, você é só mais uma criança com ou sem pais que labora por um prato de comida para não morrer de fome. Você não poderá portar nenhuma arma caso vá nessa viagem.

– Isso é um absurdo!

Veurn ergueu uma mão rígida.

– Não. Não é um absurdo. E eu não posso passar-lhe nada, nenhum instrumento que seja, pequeno ou minúsculo que poderia ser interpretado como uma ameaça à segurança da princesa, e consequentemente do rei. Se isso acontecesse, tanto você quanto eu iríamos para forca num piscar de olhos, o mesmo podendo ocorrer com Kadmile e seu amigo Latus.

– Mas então...como eu posso me proteger? É impossível matar os demônios sem uma daquelas adagas!

O experimentador lambeu os lábios e sorriu sutilmente.

– Você não tem permissão para andar armada, todavia o mesmo não procede com a guarda real da princesa.

Annya contraiu as sobrancelhas, duvidosa.

– A cadela da princesa precisará ser tão rápida quanto um lince.

Com ar sério e destemido, a pequena Annya anuiu uma única vez diante daquilo e seguiu para a saída dos aposentos do experimentador.

– Só mais uma coisa, Annya: essa conversa nunca aconteceu.

A menina baixou a cabeça brevemente, sopesando o encontro de ambos. Ela não era tão idiota a ponto de colocar qualquer perigo no caminho de Veurn ou Kadmile, ao menos não mais do que eles costumavam ter ao mexer com coisas obscuras.

– Eu volto para me despedir.

O experimentador aguardou os passos da menina se extinguirem atrás da porta fechada antes de ir até um de seus armários, onde costumava guardar pergaminhos para mensagens. Abriu a gaveta com as penas, pegou uma e molhou o bico no tinteiro:


Gotejo lágrimas de fardo,

E raivas em riste lampejo do peito

Enquanto Annya segue atrás do cortejo.


Fechou os olhos por vários minutos, desejando não ter apenas as palavras como companheiras.



Tal qual a singela rima de Veurn cantara, Annya seguiu estrada rumo a Cashmirrie, armada apenas de seu passado. Quando a comitiva da princesa alcançou os arredores do castelo de lá, todos já ficaram a postos pois que nos casebres nada mais existia de vida. Antes de chegarem aos muros da cidade real, dois experimentadores os abordaram e explicaram o que estava acontecendo, mesmo assim a princesa pediu passagem.

Pelo pouco que Annya entedia de algumas conversas entre a princesa, sua krojac e seu guarda pessoal, Lúmia já estava pressentindo uma movimentação de seu pai contra ela própria e aquilo em nada a enervava; pelo contrário, fazia-a ter ainda mais sede de vingança.

E foi logo em seguida, ao que os experimentadores abriram os portões para a cidade real, que o primeiro demônio visto pela princesa saltou num ataque berrante.

Annya viu tudo acontecer lentamente. A princesa arregalando os olhos negros e abrindo a boca, o guarda pessoal erguendo uma mão, enquanto a outra seguia até a espada na cintura, e Annya mesma agarrando a espada de um outro soldado antes que ele pudesse se mexer.

Com um grito mais feroz e bestial que o próprio demônio, a pequena Annya arremeteu contra a criatura e cravou a lâmina da espada no torso, empalando o demônio, sem dar chance para qualquer um dos espectadores reagir.

Nisso, a guarda real se acercou da princesa, enquanto o chefe deles gritava ordens para que ficassem à espera de mais ataques. Os experimentadores também estavam a postos, mirando Annya como se estivessem bravos diante do seu comportamento.

Ela nem se afastou do demônio empalado, que se agitava na espada, tentando sair. Guinchando, espumando e pingando um sangue preto esverdeado, cujo cheiro dava náusea. A criatura tentou arranhar Annya que deu um passo para trás.

– Alguém tem outra espada?

A princesa tentava olhar a situação toda detrás dos guardas, estes mesmos estavam mais confusos com a menina do que com o demônio. Afinal, os nervos de todos estavam à flor da pele diante daquele portão aberto, de onde poderiam saltar mais demônios.

Pé ante pé, como se qualquer movimento seu pudesse fazer brotar mais demônios do chão em que pisava, a krojac Nunna foi até Annya e lhe deu uma adaga de prata com mãos trêmulas. Mas antes que ela pudesse pegar a arma, um dos experimentadores, o mais baixo, segurou o pulso de Annya com a firmeza de um soldado e disse num sussurro:

– Uma arma dessas não foi feita para mãos tão pequenas.

Com um agradecimento à krojac Nunna, o experimentador fez sinal ao seu colega, que se aproximou do demônio juntamente. Enquanto a criatura em forma de besta velha, de pele carcomida e cheia de pústulas, continuava tentando se desempalar e agarrar as pernas dos dois homens, ambos permaneceram em distância segura de olhos fechados.

Annya observou que seus lábios se mexiam, mas ela não conseguiu entender nenhuma palavra. E num piscar de olhos, com um movimento mais rápido que o bote de uma cobra, o experimentador desceu rasgante a adaga de prata na nuca do demônio, cuja cabeça rolou até os pés de Annya.

A situação mais calma agora e a não aproximação de mais nenhum demônio, fez com a princesa saísse de seu cerco de proteção, indo em direção à pequena Annya, que levantava com ambas as mãos a cabeçorra do demônio morto. “E pensar que essa coisa tomou meus pais de mim”, pensou consigo mesma.

– Parece que minha cadela é na verdade uma cadela raivosa – a princesa Lúmia sorriu com o certo orgulho e um brilho enérgico no olhar. – Se a situação correr conforme o planejado, farei de você minha própria sluga.

O queixo de Annya caiu e ela virou-se para a krojac em busca de...aprovação? Abanou a cabeça e tentou ajeitar os pensamentos. Mas a única coisa que conseguia pensar no momento era que acabara de matar mais um demônio.

A princesa deu ordens para sua guarda cruzar os portões, com três soldados a permanecer ao seu lado e falou para Annya antes de seguir.

– A única coisa que você precisa fazer é não morrer...cadela.

Annya acompanhou a princesa e os três soldados desapareceram depois de cruzar os portões, ainda segurando a cabeça do demônio. Como os dois experimentadores permaneceram do lado de fora dos muros da cidade real, ela perguntou:

– E os senhores? Não vão entrar?

O experimentador que degolara o demônio voltou para Annya e devolveu a adaga.

– Entregue-me a cabeça, por gentileza, criança.

Ela mirou a mão estendida do experimentador. O homem não parecia bravo, nem simpático, embora Annya soubesse que em uma luta física ele obviamente a venceria. Deu um passo para trás e ergueu o queixo com sua normal arrogância.

– Eu já tenho para quem encaminhar essa cabeça. Os experimentadores Kadmile e Veurn são meus conhecidos.

Os homens se entreolharam em silêncio.

– Os senhores ainda não responderam o motivo de permanecer aqui fora. Não é trabalho dos experimentadores exterminar demônios?

– As ordens que recebemos não importam a ti – a mão continuava estendida. – A cabeça.

Ela olhou a cabeça nas mãos e depois a mão aberta. Diante do silêncio da criança, o experimentador continuou.

– O que desejas não são recordações para enobrecer a alma, e sim um colar de ossos que contam vitórias, as quais possuem a única característica de macular seu coração com orgulho devasso.

– Faggo, acredita mesmo que essa criança irá compreender o que diz. Tudo o que ela quer é barganhar migalhas.

E com um movimento intrépido dos pés, o segundo experimentador que se juntara aos dois, deu um pontapé na cabeça do demônio, fazendo-a voar bem alto, e agarrou seu prêmio macabro pelos cabelos oleosos. Annya segurou a vontade de mostrar a língua para o sujeito que sorria divertidamente diante de sua expressão atônita.

De fato, a menina não entendera nada do que o experimentador Faggo lhe dissera sobre colar de ossos e almas e honestamente não desejar ter mais nada com aqueles dois. Chutando os pedregulhos e galhos quebrados pelo caminho, foi-se dirigindo até o portão.

– Não creio que ela deva atravessar os portões, Spinnius. A chance de a criança sair vitoriosa novamente é de extrema baixeza.

– Sim. Ainda mais com uma adaga de lâmina curta como essa.

– Vocês querem parar de falar de mim pelas minhas costas?! – a irritação de Annya já deixou a educação há de montanhas de distância.

– Foi a senhorita que nos deu as costas – rebateu Faggo, andando com passos lentos e calmos até o portão.

– Não sou senhorita! – berrou Annya.

– Mas também não é cadela...

Ela virou-se para eles de supetão e pensou que seus olhos estivessem lhe pregando uma peça. O semblante algo triste do experimentador Faggo parecia o do próprio Kadmile. A garganta dela de repente ficou apertada.

– Seu lugar não é atrás desses muros, criança – Spinnius colocou a mão livre no topo da cabeça de Annya, assim como Veurn fizera antes de ela seguir naquela viagem. – Deixe que a princesa siga com o cortejo dela pelas sombras que empesteiam as estradas.



Talvez fosse o cansaço da viagem e da sua pequenina aventura de matar outro demônio, talvez fosse o abraço invisível que aquela dupla de experimentadores tivessem dado a ela, talvez fosse um medo terrível de criança sem pais diante do desconhecido que a escuridão envolvia. Em qualquer um desses “talvez”, Annya permaneceu do lado de fora dos muros da cidade real, ao lado de Faggo e Spinnius, até que o cortejo sangrento da princesa Lúmia retornara de lá.

A comitiva que já era em número razoavelmente pequeno em comparação com as comitivas reais de Sartyria, surgiu ao final do dia ainda menor e inteiramente ensanguentada.

A própria princesa não ficou ilesa de ferimentos, assim como sua krojac. Todavia foram sendo tratados da melhor maneira possível no retorno à Sartyria, seguindo as orientações dos experimentadores.

– Água limpa para lavar os ferimentos e sem rolar em lama ou em dejetos próprios – o tom peremptório de Faggo voltou-se para a princesa Lúmia, que tentava se ajeitar nas almofadas da carruagem.

Annya permaneceu em pé ao lado dos cavalos. Não queria ficar perto dos experimentadores e ter que se despedir, não achava que fosse conseguir segurar as lágrimas. E isso seria vergonhoso para alguém que matara um demônio.

Faggo ergueu as sobrancelhas na direção da menina, fazendo a princesa ter que se debruçar para fora da carruagem e ver a quem ele estava se dirigindo.

– A criança seria um bom adendo ao teu círculo pessoal como sluga, princesa Lúmia. Aceite isso como um conselho.

O homem curvou-se brevemente para a princesa, que voltou a se deitar nas almofadas.

– Conselho aceito, experimentador.

E com uma ordem da krojac o cortejo pegou estrada de volta à Sartyria.

Foram essas as lembranças que Annya reteve sobre a viagem que fizera à Cashmirrie e o extermínio de mais de cem demônios que a princesa Lúmia perpetuou atrás daqueles muros.

Ao menos era isso que o povo de Sartyria estava festejando, juntamente com seu rei. Se havia cem demônios, Annya nunca soube dizer, pois ela só lembrava de um. Se havia existido uma tentativa de assassinato da princesa Lúmia, ela também não saberia dizer. Se havia existido uma recusa por parte da Ordem em divulgar informações sobre uma epidemia em Cashmirrie, ela também não saberia dizer. Afinal de contas, Annya era uma criança. E o que mais desejava naquele momento em que finalmente chegara em casa, era reencontrar Kadmile, Latus e Veurn.

E foi justamente o que fez assim que a princesa lhe deu baixa no dia.

Entretanto, ao chegar na casa de Kadmile, não esperava encontrá-lo junto de Veurn. Os dois experimentadores estavam sentados de cabeça baixa e ombros caídos e a expressão no rosto pareceu uma flechada no peito de Annya. Ela nunca viu Kadmile olhar para ela daquele jeito e a primeira coisa que lhe passou na cabeça foi que algo nefasto tivesse acontecido com seu amigo.

– Onde está Latus? Ele foi levado? O que aconteceu?

Kadmile apaziguou as aflições da menina com palavras que ela já o ouviu dirigir a cavalos e outros animais. Seu alarme interno se acentuou.

– Senta-se, Annya.

Ela balançou a cabeça de um lado a outro, os cabelos fazendo um muro suave entre eles.

– Não quero, não vou...

– Latus está bem, Annya.

– Apenas seja direto, Kadmile.

Kadmile ergueu uma mão pedindo silêncio para Veurn, sem tirar os olhos tensos de Annya.

– Enquanto esteve fora, continuei com meus trabalhos que você já conhece – a pequena sluga ouvia cada palavra dita cuidadosamente. – E durante esses dias eu acabei descobrindo que certas ideias que me tiravam o sono não eram apenas pesadelos, mas uma realidade.

Ela contraiu as sobrancelhas, parecia agora que ele falava tal qual o experimentador Faggo. Veurn notou sua dificuldade e postou uma mão no ombro do colega.

– Ela é uma criança ainda, Kadmile. A depender de como falar, ela não irá entender.

– E justamente por ser criança é preciso cuidado.

– Falem logo o que querem dizer! – o coração dela batia tão depressa e sua voz saiu tão estridente que ela não se reconheceu.

Kadmile baixou os olhos e respirou fundo, segurou Annya pelos ombros.

– Em meus experimentos, descobri que a possessão demoníaca talvez seja temporária.

Annya piscou, esperando a continuação e tentando se acalmar.

– Isso significa que talvez as pessoas que foram tomadas por demônios não estivessem mortas.

– O quê? Como assim? – Ela empurrou as mãos de Kadmile para longe. – Obviamente que estão mortas. Vocês disseram que quando um demônio toma possa de um corpo, a pessoa morre. Foi isso que a Ordem sempre disse sobre os demônios.

Veurn e Kadmile baixaram o olhar, quase que envergonhados diante de Annya.

– E agora vocês mudam de ideia? E dizem que...que a pessoa não morre?! Quer dizer – ela tentou engolir, mas sua boca estava mais seca que o lago de Kerry no verão.

– Annya, eu lamento.

– Não!

Kadmile tentou tocá-la, mas ela se esquivou. O olhar cheio de ódio e tristeza que ela lançou para ambos era quase sólido de tão intenso. Veurn sentiu lágrimas brotarem, ele tentou se aproximar também.

– Não!

– Annya! Volte aqui! ANNYA!

Kadmile segurou Veurn pelas vestes antes que ele pudesse cruzar totalmente a porta.

– Deixa ir, Veurn.

– Mas, Kad...

O experimentador mais velho sacudiu a fronte com pesar, enquanto os dois observavam a pequena sluga correr para fora do vilarejo em direção da Colina do Corvo, envolvida pela escuridão da noite.

– Um dia ela terá que aceitar que por sua própria mão seus pais não mais voltarão, assim como nós teremos que aceitar as muitas vidas foram ceifadas por nossos lábios.

July 20, 2022, 9:54 p.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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C Clark Carbonera “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” Fã de carteirinha de Buffy - The Vampire Slayer.

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Bordas da Escuridão
Bordas da Escuridão

Como um eco das sombras do passado, a Escuridão tece uma teia através do tempo, criando laços entre lugares e personagens que nem sequer sabem das existências uns dos outros até que sua presença tenebrosa se manifeste. *Todas as artes utilizadas nesse universo foram criadas com Artbreeder* ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Como un eco de las sombras del pasado, la Oscuridad teje una red a través del tiempo, creando vínculos entre lugares y personajes que ni siquiera saben de las existencias de los demás hasta que se manifiesta su oscura presencia. *Todo el arte utilizado en este universo fue creado con Artbreeder* Read more about Bordas da Escuridão.