— Lê, eu estou tão feliz por você, amiga.
Desde os quatorze anos, a melhor amiga de Helena era Rita, sempre por perto nos momentos fáceis e nos difíceis. As duas se conheceram no colégio, no primeiro dia de aula de Helena, que havia acabado de se mudar com a família. Os pais dela tinham perdido o emprego na firma e passaram a trabalhar em home office na manutenção de sites. Logo no primeiro dia na escola nova, Helena soube que Rita seria sua melhor amiga na hora em que a menina se aproximou e contou que morava no mesmo condomínio e que as duas podiam ir juntas para o colégio, sentar perto na sala, lanchar unidas…
Rita tinha o cabelo encaracolado e um sinal abaixo do olho direito. É uma tagarela, só parando no meio de sua fala para respirar e se lembrar de mais alguma coisa para contar. Inseparável de Helena como era, no dia do casamento da amiga, não a deixou sozinha um minuto sequer, até o momento em que Helena entrou no carro que a levaria até o aeroporto. Rita chorava lágrimas de felicidade de vez em quando. Estava feliz pelo momento da amiga e sonhava com o próprio casamento. Encontrar um homem como Alex não seria tarefa fácil. Aquele, pensava ela, era uma joia rara, um espécime de homem em extinção.
— Eu sei, amiga.
Helena era doce, apesar de às vezes desastrada. Sempre foi e assim permanecerá para aqueles que a amavam.
Quando ela se mudou com os pais para a cidade natal deles, por conta da perda de cargos e queda de salários, a menina imaginava que não se adaptaria. Faziam apenas dois anos que sua amiga da cidade anterior tinha sofrido um afogamento na piscina do clube que elas frequentavam enquanto apostavam quem nadava mais rápido.
No entanto, na cidade nova, Rita cuidou de Helena.
Helena chegou com os pais de mudança no sábado, passou o final de semana desempacotando e arrumando as coisas do apartamento. Ela passou por Rita uma vez nesse mesmo final de semana. Aconteceu quando estava saindo com os pais para jantar na casa de parentes. As duas trocaram um olhar e sorriram. Rita estava recostada em um banco na área de lazer do prédio e Helena estava no carro.
A matrícula no colégio novo já havia sido arranjada pela mãe, então, na segunda-feira só foi preciso pegar os livros e ir para a escola. Não houve apresentação, não houve olhares curiosos, nada disso. Helena passou despercebida por maior parte dos professores e alunos. Mas não por Rita.
As duas sempre se deram bem desde então, apesar de Helena ter, de alguma forma, incitado a antipatia de Carol, a garota popular da sua série. Vez ou outra Carol tramava algo contra Helena, colocando-a em encrencas que acabavam com “uma hora depois da aula”, como diria o coordenador.
— É a sua vez — era a cerimonialista do casamento mais linda. Rita estava vestindo um terninho preto e tinha um fone de ouvido com microfone de lapela que fazia com que ela parecesse um agente secreto quando se comunicava com mais alguém da sua equipe que cuidava da organização do evento, — você precisa de mais alguma coisa antes de entrar?
— Um calmante, talvez? — Helena sorriu e Rita gemeu uma espécie de gargalhada contida. — É brincadeira, nunca estive mais tranquila na minha vida.
Aquele dia foi especial para Helena, e por sorte sua melhor amiga estava lá. Rita a acompanhou até a porta de entrada da igreja onde o pai de Helena a aguardava.
A cerimônia ocorreu como deveria, tudo saiu perfeito. Houve o sim dos dois lados, depois aplausos, depois arroz sendo jogado para cima e Alex segurando firme sua mão, guiando-a para a limusine que os aguardava com VIVA OS NOIVOS escrito com uma pasta branca por toda a carroceria.
Não era a intenção de Helena se apaixonar por Alex. Afinal, paixão não tem data na agenda para acontecer. Mas a vida decidiu encaixá-lo justamente quando ela ficou sem Rita por um tempo.
Rita adoeceu feio, começou com uma gripe que aumentou para algo mais grave, o que a deixou internada por quase cinco meses. Foi uma situação difícil para todos, mas pior para Helena, pois além de não ter sua companhia de todas as horas ainda tinha que se consolar pela melhor amiga que estava muito debilitada. Tão mais difícil foi quando chegou o momento que o médico pediu que somente os familiares mais próximos visitassem Rita.
Foi um período de quatro semanas em que Helena se viu só. Em casa os pais estavam ocupados, cuidando de sites e preenchendo planilhas e formulários. As comidas por delivery estavam cada vez mais frequentes. No colégio, Carol sempre aproveitava uma oportunidade para escrever perversidades nos livros de Helena e, uma vez, jogou um absorvente usado dentro de sua mochila, durante o intervalo entre aulas em que Helena saiu para o bebedouro. O cheiro daquilo quando a menina abriu a bolsa para procurar um caderno durante a aula de literatura chamou a atenção da professora e dos alunos, que começaram a gargalhar enquanto a educadora pedia que Helena deixasse a sala e fosse limpar seu material.
“Não tem graça nenhuma, parem. Leve isso daqui e se livre do cheiro.” Foram as palavras da professora.
Naquele dia, Helena foi para a coordenação, ela pedia ajuda e dizia que não aguentava mais Carol e suas brincadeiras pesadas e que apesar de não ter como provar nada sabia que tinha sido ela a autora daquela piada sem graça. O coordenador decidiu que ela poderia ir para casa, “apenas dessa vez,” mas nada aconteceu com Carol.
Foi no dia seguinte a esse evento constrangedor que Alex apareceu.
“Meu nome é Alexandre, na verdade, mas eu prefiro que me chamem de Alex. Só minha mãe me chama de Alexandre.”
A princípio Helena pensou que ele queria ser mais um na fila para brincar com a cara dela. Mas Alex passou a fazer companhia a garota impopular e, assim como ela mesma, ele também não parecia ser notado.
A festa de casamento foi simples. Tinha mais pessoas da família dela que da família dele. Algumas pessoas da família de Rita, que havia ficado com uma parte do rosto paralisado, e dois ou três amigos do trabalho.
E finalmente, tudo parecia feliz de verdade.
Depois de tirar algumas fotos e beber bastante, Alex pegou um microfone que estava ao lado da caixa de som com o notebook que o DJ havia deixado tocando músicas e chamou a atenção de todos.
— Hoje é um dia muito especial — sim, ele estava muito bêbado. A camisa estava desabotoada até acima do umbigo, os cabelos despenteados e um olho mais aberto que o outro, a boca salivava e tinha resquícios brancos e espumosos de saliva dos lados. — Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Começa aqui o propósito da minha existência. Essa mulher — ele apontou para Helena, que estava de frente para ele, sorrindo e mostrando os dentes, — essa mulher é tudo que eu preciso na minha vida. Ela me completa, sabiam disso? Eu te amo, meu amor.
Ele mandou um beijo pelo microfone, que emitiu um som desagradável. Depois, foi até Helena de braços abertos, jogando seu peso todo sobre ela.
— Eu te amo guria, eu te amo, eu te amo, euteamoeuteamoeuteamoeuteamo…
— E eu nunca vi você assim — disse Helena. — Acho que chega de bebidas por hoje.
— Mas hoje é o dia do nosso casamento, oras. Deixa vai, só hoje, eu prometo. Daqui a pouco, meu amor, nós embarcaremos para nossa lua de mel e depois disso, tudo será perfeito.
Ela limpou os lábios dele, o beijou e em seguida ele a puxou para dançar. Terminada a festa, eles foram para a casa do pai dela, descansaram algumas horas (só Alex descansou por algumas horas, Helena não conseguia desligar o botão de adrenalina e alegria) e saíram muito depois do previsto para o aeroporto. A lua de mel da nova vida de Helena, agora Senhora Helena Matias Lobo, ia começar.
Eles chegaram em Fortaleza, no Ceará, e ficaram hospedados em um hotel modesto perto das praias, na programação que Helena construíra com todo carinho, eles ficariam dois dias na capital cearense e três dias em Canoa Quebrada. Assim que fechou a porta do quarto Alex foi para a cama e roncou durante um sono pesado. Helena ficou na varanda do quarto observando o horizonte, as ondas quebrando no mar mais à frente, o céu azul e as nuvens fininhas se dissolvendo com o vento.
A vida parecia lhe sorrir, finalmente. Ela tinha passado tanta coisa. Tinha consciência disso, de que sua vida era como uma onda cheia de altos e baixos, uma montanha-russa repleta de quedas bruscas e subidas lentas. Mas Helena sempre superou tudo, não foi mesmo? Tudo deu certo no final. Sim, com certeza. Talvez, todas as pessoas passem por situações de montanhas-russas. É assim que tem que ser.
Era tão bom estar ali naquela varanda simplesmente escutando o mar ao longe e o ronco de seu marido no quarto que Helena nem percebeu que já estava escurecendo quando Alex sussurrou da cama.
— Que horas são? Por que o quarto está todo escuro? — E finalmente, como sempre, uma brincadeirinha dele. — Pensei que eu tivesse ficado cego.
— Meu Deus — ela realmente tomou um susto. Estava escuro, e a voz de Alex pareceu fantasmagórica num primeiro momento. — Meu Deus, eu me perdi completamente nos meus pensamentos, amor, desculpa. Nossa reserva.
— Não esquenta, amor — Alex sentava na cama esticando os braços. — Que horas são?
— Deixa eu ver — ela pegou o celular em cima do móvel com o abajur que ela acabava de acender. — Cinco e quarenta e dois… Ah, claro. Esqueci que no Ceará escurece mais rápido que no sul.
— Escurece. Vou tomar banho, ou você vai primeiro?
— Deixa eu ir, você é mais rápido, tenho que passar maquiagem.
— Tá bom. Mas venha aqui primeiro — Alex a tomou nos braços e a beijou com vontade. Seus corações batendo acelerado e uma chama crescendo dentro de cada um.
Depois de fazerem amor Helena começou o banho. Alex pegou o celular e procurou a pasta de fotos da câmera. Ele olhou cada uma das fotos pausadamente, até onde conseguiu, até uma noite em que eles estavam juntos em um restaurante comemorando o aniversário do pai de Helena. Eles estavam felizes, os três, apesar de a mãe dela ter falecido a menos de um ano. Foi repentino. Um ataque fulminante do coração, simplificaram os doutores no hospital. Mas disseram, "foi rápido, ela não sofreu." Helena se culpava por ter saído de casa quase na mesma época para morar com seu noivo. O pai, viúvo a um mês, se recusou a sair de casa e ir morar com a filha e com o futuro genro.
"Eu tenho muitas coisas das quais não quero me desfazer, minha filha," dizia o pai sempre que Helena o convidava.
"A casa tem espaço suficiente para as suas coisas pai."
"Helena, eu tô bem. Já chega."
Ela desistiu de insistir quando Alex marcou a data do casamento. Também era Alex quem sempre convidava o pai de sua noiva para sair para um jantar ou para ir ao cinema.
Então, quando Helena entrou na igreja acompanhada do pai, não havia sua mãe lá para dividir a alegria que ela estava sentindo.
Alex, ao ouvir o som do chuveiro diminuir até acabar, saiu das fotos e foi ligeiro até a mala de roupas. Estava tirando algumas e colocando-as no armário do quarto quando a porta do chuveiro abriu, Helena estava de toalha enrolada abaixo das axilas, as coxas expostas e sensuais. Alex a olhou e a desejou.
— Acho que temos tempo.
Ela sorriu, pois sabia o que ele queria dizer. Ela também achava que eles tinham tempo, eram recém casados afinal.
O sexo era bom. Os dois sabiam como se mover em harmonia e ela sempre gozava momentos antes dele. Ela agarrava suas costas com as unhas e ele enfiava as pontas dos dedos em sua bunda. Ela gemia de prazer e Alex ofegava em seu ouvido. Era muito bom. Quando eles terminavam, ficavam alguns minutos ao lado do outro na cama. Conversando ou calados, não importava. Apenas aproveitavam a companhia um do outro mais um pouco. Mas dessa vez, Alex acabou e já foi logo saindo da cama. Puxava a camisinha do pênis ereto.
— Amor, vou tomar banho senão a gente perde a reserva.
— Tá bom. Vou me aprontar.
Ele piscou e foi para o chuveiro, ela lavou-se rapidamente com a ducha ao lado do vaso e voltou para o quarto.
Por pouco eles não chegaram a tempo no restaurante. O garçom que os atendia olhou no relógio pelo menos duas vezes. Nós sabemos que estamos atrasados vinte minutos, mas a tolerância é de trinta, pensava Helena. O garçom mostrou a eles a mesa próxima à janela, com vista para as luzes da cidade e para o mar noturno. Passou um cardápio a cada um e a carta de vinhos a Alex. Antes de sair pediu que ficassem à vontade, e que chamassem quando estivessem prontos para pedir. Quando o garçom se afastou ele sussurrou:
— Foi quase, hein. Já passaram uns quarenta minutos do horário da reserva; e eles estão lotados.
E estavam mesmo.
— Quarenta minutos? Meu relógio está atrasado então.
— Deve estar amor. Mas não importa. Vamos decidir o que comer.
Que delícia de carne. Que vinho bom. Que lugar chique. Eram essas as palavras que Helena decidiu que usaria para contar a Rita a experiência daquele lugar. Quando eles terminaram, Alex convidou Helena para caminhar à beira mar.
— Esse lugar é lindo não é? Devíamos morar aqui.
— Esse lugar é romântico, amor.
— Sem dúvidas.
Teve mais beijos. E depois, em um local isolado da praia, sob a luz do luar, mais sexo.
Eles voltaram tarde para o hotel. Estavam cansados e tinham que acordar cedo no outro dia para um passeio pelo litoral e depois uma volta pela cidade. Tinham ainda agendado para os próximos dias uma pousada em Canoa Quebrada. Depois disso eles voltariam para casa.
— Queria ligar para o meu pai, — Helena não conseguia esconder sua aflição.
— Você sabe que passa das duas da manhã, né? Seu pai vai dormir oito e meia.
Era verdade, e o pai estava tão triste ultimamente que ela não queria aborrecê-lo com preocupações da parte dela só porque tinha esquecido de ligar para ele.
— Você tem razão. Eu vou só escovar os dentes e volto para deitar. De manhã eu faço as ligações.
Helena ficou sentada na cama procurando forças para ir ao banheiro. O celular na mão. Tinha vontade de ligar para o pai e saber como ele estava, mas Alex tinha razão. Nem mensagem ela quis mandar. E se ele ouvisse o som da mensagem e acordasse aborrecido?
Depois de escovar os dentes e lavar o rosto, Helena ligou a TV numa emissora local, passando algum filme ruim na madrugada. Nem sentiu que adormecia.
Ainda estava escuro quando Helena levantou com a boca seca e vontade de ir ao banheiro. Por sorte havia um frigobar do lado dela, onde ela podia tirar uma garrafa de água e beber. Alex gostava de dormir com as luzes todas apagadas e embora ela não tivesse esse costume quando morava com o pai, passou a dormir melhor depois de aceitar os argumentos de Alex de que desligar todas as luzes ajudava a dormir bem.
Ela levantou, o chão frio fez sua espinha gelar. Quando Helena abriu a porta do frigobar, a luz iluminou fracamente o quarto, um tom alaranjado que parecia cobrir somente o chão, levantando sombras monstruosas nas paredes atrás dela. Quando ela se virou para se certificar se a claridade incomodava o sono de Alex, ela só viu o monte de lençóis no qual ele estava debaixo. Tudo ok. Ainda sonolenta, ela tirou rapidamente a garrafa de água e bebeu do gargalo mesmo. Era um mal hábito que ela já prometera a si mesma acabar em diversas ocasiões. Depois de matar a cede colocou o restante de água no frigobar e fechou a porta do aparelho.
Helena tentou não tropeçar em nada no caminho para o banheiro. Quase teve sucesso, não fosse uma mala esparramada no chão. Ela não lembrava daquela mala ali, mas ela não lembrava nem de quando tinha ido se deitar para dormir.
Bocejava quando apertou o interruptor do banheiro. Foi até o vaso coçando os olhos de forma mecânica levantou as duas tampas do vaso em vez de somente uma, ato contínuo, baixou o pijama e mijou de pé, em vez de se sentar. Um jato de urina saiu forte, acertando primeiro a tampa do vaso e depois mirando o centro do fundo do vaso.
Helena demorou para entender a situação. Em um primeiro momento aquela posição de mijar em pé, enquanto segurava um membro duro lhe pareceu familiar. Mas um instante depois ela percebeu que algo estava errado, foi aí que ela cortou a urina, interrompendo o fluxo e causando uma dor terrível na virilha e nos testículos, pressionando o maxilar para não gritar enquanto gostas de líquido quente e fedorento lhe caíam aos pés.
Como assim eu estou usando calção de pijamas? E como diabos eu estou mijando de pé? Ela pensou.
Helena olhou para baixo. Segurava um pênis, seu próprio pênis, com a mão direita. Um saco escrotal escorregava para fora e por cima do elástico de pijamas. Ela deixou o resto da urina esvaziar, fazendo aquela dor embaixo passar e depois balançou o membro em um ato automático. Depois de um momento contemplando-o o guardou.
Não era possível. Helena balançou a cabeça e foi até a pia, coçando os olhos com a mão que não havia usado para tocar naquilo. Quando abriu os olhos e a vista desembaçou ela queria gritar, mas apenas um chiado rouco de voz masculina saiu de sua boca. Não era a si quem ela via refletida no espelho, mas seu marido, Alex, com uma cara assustada e ao mesmo tempo desorientada. Ela paralisou. Olhou para todos os membros do corpo, virou de costas para o espelho e se olhou mais um pouco. Ergueu a mão e a imagem do espelho obedeceu, depois olhou para a mão erguida ao seu lado e a tocou com a outra, eram as mãos de Alex, como era possível?
Só pode ser um sonho. Ela disse a si mesma. E dentro de sua cabeça sua voz ainda lhe pertencia, ainda era sua voz feminina dizendo, com sensatez, que era somente um sonho. Ainda era ela mesma quem estava no controle.
É só um sonho. Ela pensava.
— Você não está sonhando — disse uma voz atrás dela.
E atrás de si, ou, atrás do Alex do espelho, havia uma Helena com olhar vago, um rosto sem expressão. Ela se virou para encarar a ela mesma, ainda vestindo as roupas da noite passada.
— Não é um sonho… porque é um pesadelo — disse a outra Helena, a que não era ela, a que parecia um boneco de plástico em tamanho natural, agarrando seus braços (ou os braços de Alex) com força, puxando e puxando, tentando desmembrá-la.
Ela acordou de novo, dessa vez a luz do sol entrava pela janela entre as cortinas que não estavam totalmente fechadas. Ela se sentou na cama e olhou para cada parte do seu corpo. Tudo no lugar, tudo certo. Ela procurou o celular e o encontrou na cabeceira, perto do frigobar. Se olhou na tela do aparelho pela câmera frontal e viu o próprio rosto. Por último arriscou a voz:
— Alex, amor? — Ele não estava na cama.
Tudo bem, Alex não estava ali, mas era a voz dela. Ela chamou de novo e dessa vez teve resposta.
— No banheiro — ele gritou de volta.
Alex saiu do banheiro, vestindo um calção e uma camiseta, seus bíceps expostos.
— Acho que você teve um pesadelo — ele disse. — Murmurou à noite e não acordou quando eu te chamei, mas como você parou e parecia dormir tranquila eu não mexi mais em você. Tá tudo bem?
Ela demorou para responder.
— Sim, está tudo bem – ela não queria perturbá-lo com tolices de um sonho conturbado.
Helena não achou o Ceará tão quente assim, parecia como qualquer outro dia de sol para ela no sul, só que todos os dias, o que ela achou maravilhoso. O passeio da manhã, de bugre conhecendo as praias, foi suado, como eles brincavam. Depois do almoço eles voltaram para Fortaleza e deram uma volta de carro pelo centro da cidade. Eles compraram uma garrafinha de água e foram em pontos turísticos obrigatórios.
Mais tarde eles queriam visitar o Dragão do Mar, eles haviam programado ver uma exposição, mas não conseguiram entrar pois estava fechado, e por mais que Helena mostrasse que o Google Mapas informava que estaria aberto para visitação, o guarda na entrada insistia que eles não poderiam entrar, mesmo sem dar nenhuma explicação do porquê.
Alex a acalentou. Ele sempre a acalentava, como se precisasse protege-la com todo cuidado. Às vezes ele sentia como um fardo, como se estivesse preso a uma realidade onde não conseguia deixar de colocar Helena em primeiro lugar.
— Mas essa era minha programação. As suas são sempre tão legais.
— Legal é estar com você, senhora Helena Lobo.
Alex se chama Alexandre dos Santos Lobo. Quando Helena lhe disse que queria tirar o sobrenome de sua mãe para colocar o dele, ele insistiu que ela não fizesse aquilo.
"Mas por que não?"
"Só acho desnecessário, sabe, essa tradição de mudar o nome. Não entendo por que as pessoas se importam tanto com isso."
"Ora, porque toda mulher quer demonstrar que tem uma família. Afinal, um dia nós vamos ter um filho, e o sobrenome dele também vai ser Lobo, não é?"
"Vai sim. Mas como eu já disse, ele vai se chamar Stephen King de Matias Lobo. Viu? Meu sobrenome e o seu" — ele gargalhou.
"Não quero esse nome não. Que nome feio."
"Feio? Como assim feio? Retire o que disse."
Ele usou de golpe baixo e fez cócegas no pescoço dela. Um lugar sensível, ele sabia, claro que sabia. Era seu dever deixá-la tranquila e feliz, custe e o que custasse. Ele também usou essa técnica naquela noite em frente ao Dragão do Mar, enquanto caminhavam até o carro alugado.
Foram ao shopping e fizeram compras. Na verdade, ela fez muitas compras. Alex comprou apenas uma sunga depois de Helena insistir que aquela era mais bonita do que a que ele havia trazido para a viagem.
Quando foram para a praça de alimentação, Alex notou que Helena não estava à vontade.
— Algum problema? — Ele perguntou.
— Nenhum — ela respondeu depressa. Helena tinha lembrado repentinamente do sonho, ou pesadelo, esquisito. Muito incomum, na verdade. Nunca havia tido qualquer experiência parecida com aquela. Tinha sido real demais. Queria muito que Rita estivesse ali para poder falar para a amiga e ouvir o que ela tinha a dizer. Alex era diferente, era homem, ele não entenderia. — Acho que eles não capricharam no meu sanduíche.
Alex olhou para o Quarteirão do McDonald’s nas mãos dela, ainda sem nenhuma mordida.
— Tem algum problema acontecendo sim, guria. Agora eu sou seu marido e vou cuidar de você. Me diz o que tá havendo.
Ela engoliu o que tinha na boca e bebeu um gole do seu suco. Suspirou parecendo murchar um pouco e falou todo o sonho.
— Foi muito estranho ser você — ela disse por fim. — Foi muito real, quando eu me toquei, a dor na virilha… Eu não gostei, desculpa.
Ele ficou calado. Ela pensou que ele explodiria em uma gargalhada e chamaria a atenção de todos ao seu redor. Em vez disso, Alex levou sua mão até a dela, estava quente e macia, mãos de programador. Quando ele falou, sua voz saiu suave.
— Eu já li sobre isso. Acontece o tempo todo. Muitas pessoas relatam trocar de corpo com o parceiro ou mesmo com estranhos — fez uma pausa e roçou o seu dedo indicador nas costas da mão dela. — Ainda bem que foi no meu pau que você pegou, ufa.
Ela sorriu. Era isso que ele queria extrair dela, alegria.
— Tá certo — o olhar dela era de gratidão. — Obrigada.
— Pelo quê?
— Sei lá, por me entender, por não rir de mim?
Agora sim ele riu, mas não foi alto demais e não chamou a atenção de ninguém, foi um gesto gentil.
— Você não é uma piada, meu amor. Não vou rir de você, eu prometo que sempre vou rir com você.
Alex era o homem perfeito para Helena. Protetor e zeloso. Um cavalheiro e companheiro. Ele daria a vida por ela.
Eles passaram ainda em um barzinho antes de voltar para o hotel. Helena era fraca para bebida, como Rita sempre falava, e bebeu menos que Alex, mesmo assim ele bebeu o suficiente para não sair falando demais, como costumava fazer. Eles dançaram colados quando tocou uma música lenta e suaram quando o cover tocou um forró mais agitado.
Aquela noite eles retornaram muito depois da meia-noite. Helena foi tirando o salto e se jogando na cama.
— Essa não, eu não acredito que eu esqueci de ligar de novo para o meu pai — Helene agora se culpava acima de tudo por ter se esquecido mais uma vez de fazer as ligações.
Do outro lado do quarto Alex girou nos calcanhares enquanto ligava a TV.
— De novo? Como assim? Eu liguei para os meus pais depois do café da manhã, enquanto você voltou para o quarto para pegar sua bolsa. Pensei que tivesse ligado para ele.
— Vim pegar só o protetor labial — ela disse com desdém. — E não, não liguei, esqueci completamente. Vim correndo e não lembrei desse compromisso importante. Ele deve estar zangado comigo.
— Zangado não, mas triste, né amor. Você devia ter ligado.
— E se eu ligar agora?
— Você já sabe o que eu penso a respeito.
— Eu vou ligar.
— Você que sabe.
Helena ligou. Não havia telefone fixo, somente celular na casa do pai dela, e chamou até cair na mensagem da caixa postal. Ela não deixou recado, quem deixa?
— Ele não atendeu.
— Ele deixa o celular no silencioso quando vai dormir?
— Não sei, mas acho melhor mandar um Whatsapp. Ele vê amanhã.
— Taí uma boa ideia.
"Pai, desculpe eu não ter ligado. Esqueci. Desculpa. Te amo. Tá tudo bem? Aqui estamos bem."
No aplicativo, Helena esperou a mensagem ser entregue, mas o reloginho no canto da mensagem não mudava. Ela mandou outra mensagem, mais para testar se seria entregue do que qualquer outra coisa.
“Te amo.”
O reloginho continuou nas duas mensagens, insistindo em permanecer ali. Ela pensou que talvez o celular do pai estivesse desligado.
Desculpa pai. Eu te amo muito. Desculpa. Em seus pensamentos ela estava se sentindo horrorosa. Não havia ligado para seu pai nem para sua melhor amiga em nenhum dia da sua lua de mel. E claro que eles não tinham lhe ligado para não incomodar. Helena se sentia extremamente egoísta naquele momento.
Alex viu que ela estava com os olhos cheios de lágrimas e se aproximou.
— Não fique assim. Amanhã de manhã eu lembro você de ligar para ele.
— Promete? — ela implorava com o olhar. — Como eu fui esquecer de ligar pro meu pai? E a Rita? Eu não falei com ela também?
Helena olhava para as mensagens perdidas em seu celular que a melhor amiga tinha mandado por último, várias.
"E aí?"
"Tudo bem?"
"Como está a lua de mel?"
"Sra Lobo?"
Todas estavam com o aviso de lidas, mas nenhuma foi respondida. Para Rita ela mandou um áudio em resposta.
“Oi amiga! Aqui está ótimo. Vendo suas mensagens agora, desculpa, é que tem tanta coisa pra gente ver que eu acabo não tendo tempo de responder. Beijo amiga."
Ela escutou. tinha tentando manter uma voz animada, parecia convincente. Helena esperou a mensagem carregar e, diferente do que tinha acontecido com as mensagens para o pai, o áudio para Rita logo foi entregue, mas não lida.
— Eles vão te entender — disse Alex. — Acho que você está exagerando.
Ela fez uma cara de choro, mordendo os lábios tentando conter as lágrimas.
— Não faz isso — disse Alex, com um sorriso no rosto. Ela também sorriu. — Você sabe que eu não suporto você triste.
— Eu sou uma tola.
— Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
Ela se deitou, se cobrindo com os lençóis. Ele deitou ao lado dela, com os braços a envolvendo.
— Vai ficar tudo bem, guria.
— Eu espero que sim — ela fungava para dentro as lágrimas que lhe escorriam na face. — Não sei como pude ser tão mesquinha. Me sinto tão ruim, Alex.
Alex podia sentir a dor de Helena e, por tudo no mundo, ele queria afastar aquilo, queria poder consumir aquela dor da sua companheira e suportar tudo sozinho, para que ela não sofresse. Helena não sabia, mas o coração de Alex doía tanto quanto o dela naquele momento.
Helena sonhou com o pai. No sonho, em um local sombrio e desconhecido, vazio e silencioso, ele estava longe e de costas. Helena se colocou a caminhar na direção dele, pé ante pé, mãos estendidas para frente, tentando alcançá-lo. Tanto quanto ela andava para frente ele se afastava. Ela apressou o passo e ele também, mantendo sempre a mesma distância entre os dois, sem nunca olhar para trás, mas de alguma forma ciente de que Helena tentava se aproximar.
— Pai!? — Helena gritou. Depois gritou mais alto ainda. — Pai! Aqui! Sou eu, pai, Helena!
Ele não a ouvia ou parecia não querer ouvir, só o que ele fazia era ir para frente.
Helena começou a correr e nesse momento o pai parou. E por mais que Helena corresse até ele, quando finalmente parecia que o pai estava ao alcance de suas mãos, como um piscar de olhos o seu pai aparecia distante novamente, sempre de costas.
— Pai — Ela gritava em desespero. As lágrimas que lhe escorriam pareciam queimar sua face de tão quentes. — Pai!
Quando Helena parou de correr, com as mãos nos joelhos e arfando, por um momento ela pensou em desistir, pensou que era mais um daqueles sonhos estranhos que estava tendo. E em como aqueles sonhos poderiam ter relação com a sua vida real, já que eram tão recorrentes e tangíveis. No entanto, saudade do pai e culpa por não ter mandado notícias para ele invadiram seu peito e Helena levantou o rosto, na direção do pai à sua frente. Ela ficou encarando alguns instantes as costas de seu pai, querendo estar perto dele, querendo estar junto dele.
Ela mantinha o olhar fixado na nuca do pai, quando um olhar novo se cruzou com o seu. Alguém a estava espiando escondido por trás de seu pai. Alguém que se mantinha fora da visão de Helena, mas agora, com um relance, jogou a cabeça para o lado, permitindo que Helena visse o seu olhar brilhando naquele lugar sombrio. O meio rosto ficou parado, fitando Helena.
— Ei! — Gritou Helena para quem quer que estivesse se escondendo. — Quem é você? Saia de perto do meu pai.
Helena andou, depois correu, mas o pai continuava se distanciando como num piscar de olhos e o meio rosto continuava a encarar Helena, até que ela parou de andar.
— Tá bom. Vamos conversar. O que é isso aqui? O que são esses sonhos? Eu preciso saber... como está meu pai?
Nada além de silêncio do local onde estava parado o pai de Helena. O olhar do meio rosto não piscava, não hesitava, não transmitia nada.
Sem aviso, num gesto rápido e único, o meio rosto saiu por completo e, em um instante, Rita se revelou ao lado do pai de Helena, era ela quem estava ali o tempo todo. Ao mesmo tempo que parecia ser Rita também parecia que aquela Rita era artificial, de plástico. Mas isso Helena só pensou depois de acordar.
— Rita, Rita — Helena estava feliz por ver a amiga e também estava horrorizada com aquilo tudo. — Ei Rita, fala comigo.
Rita pousou a mão no ombro do pai de Helena e cochichou no ouvido dele. O homem se virou e olhou para a direção onde a filha estava. Helena começou a acenar e chamar pelo nome dos dois desesperadamente.
Helena voltou a andar, eles estavam cada vez mais próximos e dessa vez permaneceram onde estavam.
— Pai, paizinho — disse Helena passando a mão no rosto do pai e depois o abraçando. Em seguida deu um abraço em Rita. Nenhum dos dois retribuiu o abraço ou falou qualquer coisa.
Depois dos abraços, Rita se moveu mais para perto do pai de Helene e cochichou algo em seu ouvido.
— Fala comigo, amiga — disse Helena. — Quero saber como vocês estão. Por favor, fala mais alto, fala comigo.
Virando-se para Helena, Rita mexeu os lábios repetidas vezes sem emitir som algum. Em seguida o pai de Helena começou a fazer o mesmo, eles mexiam os lábios em forma e tempo iguais.
— Rita. Pai. Eu não consigo… eu não posso ouvir vocês.
Helena tocou nos dois ao mesmo tempo, com as mãos abertas, ela queria empurrar aquelas coisas que estavam se passando por seu pai e sua melhor amiga. Quando tocou nos dois o som da voz de cada um saiu de suas bocas de forma abafada, como um eco de dentro de uma caverna. Eles diziam:
“Nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-você-nós-não-conhecemos-...”
Eles continuavam a falar com aquelas vozes ecoantes e abafadas e com o olhar distante e frio. Sem mover mais nada a não ser os lábios.
— Mas — Helena falou gaguejando, a frase demorou para ser formada e enquanto isso ela ouvia seu pai e sua melhor amiga repetindo que eles não a conheciam. Ela continuou gaguejando — ma... mas, sou eu, so... sou eu, ge... gente. Pa... pai? Ri... ta? Sou e... eu.
Helena levou as mãos aos ouvidos quando as vozes foram ficando mais altas e insuportáveis. Ela tentou socar os dois em sua frente mas eles deram um salto para longe, daquela forma num piscar de olhos, sem se mover de fato.
Na cama, ela tentava se debater, mas estava grudada nos lençóis, parecia que pesava toneladas e não tinha forças suficientes para levantar-se. Mas quando conseguiu, se levantou pulando da cama, caindo com força no chão do quarto do hotel, gritando.
— Não, não, não! — Helena gritava com as mãos ainda cobrindo os ouvidos.
— Já está quase lá. Está quase acabando. Tudo vai passar — disse uma voz familiar dentro do quarto.
Helena pegou o abajur que havia caído ao seu lado quando ela se jogou no chão e o acendeu. De pé, do outro lado da cama, vindo em sua direção, uma Helena sorrindo maliciosamente correndo ao seu encontro. Ela jogou o próprio corpo para trás, com medo, temendo o pior daquela outra Helena.
Helena acordou uma terceira vez. Agora em silêncio. Tinha a respiração alta. O quarto estava claro e a TV que ainda estava ligada, mostrando as horas.
Sete da manhã. O noticiário mostrava o engarrafamento das avenidas de Fortaleza.
Ela conferiu seu marido. Alex estava deitado adormecido, ao seu lado. Ela correu para o banheiro e se olhou no espelho. Era ela. Estava tudo bem. Não estava?
Helena sentou no vaso com as tampas abaixadas e chorou ferozmente. Quando Alex acordou e chamou pelo nome da esposa, ela deu descarga, tirou a roupa e entrou no chuveiro.
Ela não contaria para ele que havia tido um novo pesadelo, e que esse foi pior que o anterior. Helena estava ficando com medo de dormir.
Antes do café e antes mesmo que Alex lembrasse, Helena disse ao marido que queria um minuto para falar com o pai e com a amiga. Disse ao marido que ele podia ir na frente tomar seu café da manhã que logo ela iria para o refeitório.
Eles se beijaram, Helena soltou a mão de Alex e saiu em direção à recepção e depois ao pequeno jardim na frente do hotel enquanto Alex pegou o caminho contrário, entrando em direção ao refeitório.
Helena caminhou a passos ligeiros, queria privacidade.
Primeiro ela verificou o Whatsapp. O pai ainda não havia recebido suas mensagens, pois o reloginho continuava ao lado das últimas mensagens que ela havia enviado. Rita, no entanto, tinha lhe respondido.
“Sem essa amiga, aproveita. Só não esquece nenhum detalhe, Kkkkkk. Quero saber de TUDO.”
Embaixo da frase tinham os emojis com carinha de coco que ela tanto gostava de mandar.
Helena não ia responder com texto ou gravação de voz, ela queria ouvir as pessoas que amava. Ligou primeiro para o pai.
Novamente foi para a caixa de mensagem. Helena não deixou gravação.
Ela abriu de novo o Whatsapp e escreveu. Sabia que o pai não gostava de recados gravados.
“Pai, estou ligando mas o senhor não atende. Tô com saudades. Está tudo bem? Te amo.”
Ela ligou mais uma vez para o pai. E mais uma vez ele não atendeu.
Sua preocupação aumentou. Ligou para a amiga. Helena pensou que Rita também não a atenderia, demorou alguns toques até que ela atendesse, mas enfim Helena ouviu a voz reconfortante de Rita.
— Alô — era a voz conhecida e reconfortante de Rita. Helena tremia e sentia frio na ponta dos dedos. — Como está tudo por aí amiga?
— Rita? Me desculpa…
Houve uma pausa breve em que Helena parecia que ia desabar em lágrimas, mas então Rita estava lá, mesmo que do outro lado da linha, para poder ajudar a amiga como eu várias outras vezes.
— Eu sei guria, tá tudo bem, não tem problema — ela entendia. É claro que Rita a entendia. Então, algo estranho. — Eu tô meio ocupada planejando minha própria festa de aniversário então...
Helena não queria perder aquela ligação, não queria desligar, não queria parar de falar com a amiga, mas já tinha sido egoísta demais.
— Sim, claro, sua festa. Desculpa eu perder.
— Não tem problemas viu — disse Rita, que parecia apressada para desligar.
— Alex disse a mesma coisa, que vocês me entenderiam. Todos parecem sempre me defender né. Tudo parece sempre girar ao meu redor.
— Então? Para com isso que não te faz bem — outra pausa breve. — Agora... eu realmente tenho que ir.
Helena sorriu, mais calma agora.
— Obrigada amiga. Eu precisava ouvir você. Mas preciso de um favor seu.
— Sim, por que não?
— Pode ir na casa do meu pai e ver se ele precisa de alguma coisa? Não consegui falar com ele ainda.
— Tá bom, pode deixar — Rita falou sem contrariar, encerrando a conversa.
As duas se despediram. Helena se recompôs e pensou em voltar para o quarto para passar a maquiagem de novo, antes de voltar para o refeitório e poupar explicações demoradas para Alex. Enquanto subia as escadas verificou o Whatsapp de novo. Seu pai ainda não tinha recebido suas mensagens.
Era o último dia na capital cearense, então eles deram uma última volta na cidade, para o final Alex preparou uma surpresa. Ele estacionou o carro próximo ao prédio Dragão do Mar.
— Hoje está aberto — disse Alex, se dirigindo para Helena de forma encantadora.
— Eu não acredito — agora ela estava feliz. Qualquer pensamento desanimador de antes tinha se esvaído.
— Então guria, pode acreditar.
Eles entraram e viram tudo da exposição que estava acontecendo. Valeu a pena principalmente porque, na saída, eles viram o guarda que impediram a entrada deles no outro dia. Os dois sorriram de forma zombeteira para ele, que apenas pareceu confuso, sem lembrar do casal. Helena e Alex estavam tão felizes que agiam como adolescentes.
Depois de terminar o almoço eles voltaram para fazer o check-out do hotel.
Helena demorou arrumando as malas, fazendo cada lembrancinha e presente caber nos espaços que não existiam. Principalmente porque ela arrumaria só para desarrumar de novo em Canoa Quebrada. No entanto, ela queria muito ver aquele lugar, era um sonho seu de adolescência. Certa vez, anos antes, ela conversou com Alex sobre os lugares onde eles queriam ir um dia, ele falou Roma e ela Canoa Quebrada, falaram ao mesmo tempo, pois Helena estava com vergonha. Eles riram alto.
“Acho que seu lugar dos sonhos é mais fácil de um dia a gente ir do que o meu.” disse Alex.
“É sim. Mas nós vamos, um dia.”
“E eu faço questão de irmos primeiro ao seu lugar dos sonhos, meu amor.”
Helena achava que Alex sempre tinha as respostas certas, sempre cuidando dela.
Eles dirigiram no carro alugado até Canoa Quebrada. Lá eles passariam os últimos três dias da lua de mel se aventurando em dunas coloridas e cenários deslumbrantes.
Helena ficou o tempo todo olhando para o celular. Nada de mensagens. Ela estava ficando muito apreensiva quanto ao pai, que não havia recebido as mensagens ainda. Ela se culpava por não ter entrado em contato antes.
Antes de ficar sem área no caminho, ela escreveu e mandou mais algumas mensagens ao pai.
“Pai.”
“Me responda”
“Estou preocupada”
“Beijos. Te amo”
Eles chegaram em Canoa Quebrada e entraram no quarto da Pousada. Havia um terraço sobre o Quarto Lua-de-Mel em que ficaram, com um caramanchão repleto de trepadeiras, que encobria parcialmente a vista.
— Esse lugar é lindo — Helena disse devagar para Alex.
— Eu sei. Esse é o seu lugar dos sonhos.
Pela primeira vez, para Helena, falar daquele jeito, o seu lugar dos sonhos, pareceu um agouro. Ela sempre sonhou com o dia que iria até ali, tomaria banho de mar no paraíso e desfilaria pelas areias finas da famosa rua de Canoa Quebrada. Mas devido às suas duas últimas noites de sono mal dormido, aquela frase soou difícil de assimilar. Ela notou o olhar questionador de Alex para ela e decidiu afastar aquele tipo de pensamento. Como Rita havia falado, ela tinha mais era que aproveitar o momento.
— É sim, amor — ela respondeu sentindo que tinha a obrigação de falar algo.
O lugar era incrível mesmo. Era tudo o que ela imaginava e mais. Muito bonito, organizado e limpo. Ótima escolha para lua de mel. As atrações turísticas eram simplesmente um show à parte, só perdendo para a vista. No fim do dia, enquanto andava descalça sentindo a areia nos seus pés, Helena estava muito feliz.
— Amor, eu quero voltar aqui de novo — ela disse ao ouvido de Alex.
— Sempre — ele respondera.
Eles tomaram drinques e mais tarde pararam em um banco para observar a luz da lua enquanto tomavam sorvete. Ele de pistache e ela de napolitano. A noite estava agradável e eles permaneceram abraçados depois do sorvete, acompanhando com o olhar as pessoas que iam e vinham. Não falaram nada.
Estava tudo perfeito até Helena sentir seu celular vibrando. Ela tinha se perdido em sua felicidade momentânea e por pouco tempo esquecido os seus problemas. Uma, depois duas, depois três vezes o celular vibrou até ela tirar do bolso de trás de seus shorts. Ela destravou o aparelho e abriu o whatsapp com mensagens de Rita.
“Oi. Não surta”
“Mas não achei seu pai”
“Fui na casa dele”
“Mas ele não mora lá, tinham umas pessoas diferentes”
“Uma mulher ficou me encarando como se eu fosse louca”
“Não me pede mais para fazer isso”
O quê? Pensou Helena.
— Amor, vou fazer uma ligação. Já eu volto – Helena se levantava e andava alguns passos para longe de Alex.
— O que houve? — Alex assustou-se.
— Nada, vou ligar para a Rita, é bem rápido, eu prometo.
Alex quis acompanhar a esposa, cuidar dela, mas Helena se afastava procurando um espaço pessoal e buscando no histórico a última ligação que tinha feito para Rita. O telefone começou a tocar. Tocou até dar na caixa postal. Foi preciso Helena insistir mais duas vezes até a amiga atender.
— Alô? — Era Rita.
— Amiga, sou eu — Helena ia falando rápido. — Como assim não encontrou o endereço? Com quem você falou?
— Você de novo? Quem tá falando? — Rita falou em tom de raiva.
— Para amiga, eu tô preocupada com meu pai. Você não conseguiu mesmo falar com ele?
— Com quem você quer falar, guria? Tô sem tempo para isso agora.
— Para Rita, coisa chata. Eu quero meu pai — os olhos de Helena começaram a encher de lágrimas, — eu quero muito meu pai, Rita. Cadê ele?
As linhas ficaram em silêncio. Com certeza Rita escutava a respiração soluçada de Helena.
— Rita? Por favor.
— Olhe, me desculpe, mas não sei quem está falando, não sei quem é seu pai, vou desligar.
A ligação acabou.
— Não, Rita — Helena falou aos soluços para o telefone.
Ela escutou a voz de Alex, ele vinha correndo em sua direção.
— Amor!
Ela o encarou, ele vinha preocupado, com as mãos estendidas para frente. Naquele momento ela não queria tocá-lo, ela não queria ouvi-lo, ela não queria nada com ele. Helena queria estar em casa com seu pai a Rita e Alex, em segurança, com todos eles, para sempre. Aquela lua de mel havia virado um verdadeiro pesadelo.
Helena saiu correndo na direção oposta que vinha Alex. Ela estava indo na direção da praia, fugindo de seu marido, aquele que sempre a apoiava a ajudava.
— Não! Me deixa — ela gritou para o marido. Que continuou a segui-la. Ela sentia vergonha, medo, insegurança, se sentia suja e egoísta, sentia que tinha causado tanta dor a todos a sua volta. Sentia agora a perda da mãe, a perda das amigas, sentia que estava perdendo o pai aos poucos também. Sentia que poderia acabar perdendo Alex.
— Amor, tá tudo bem? Me deixa ajudar — Alex gritava enquanto os dois saíam das ruas de paralelepípedo para a areia branca da praia.
— Me deixa — quanto mais ela o ouvia mais alto ela gritava, tão intensa era a dor que sentia no peito, parecia que explodiria a qualquer momento, sumindo da face da terra.
Haviam vários grupinhos nas ruas e na praia que olhavam para os dois, mas ninguém fazia nada. Todo mundo estava parado.
Até que Helena pisou em falso em algum buraco cavado mais cedo por uma criança e caiu na areia macia. Ela saiu rolando o corpo que ia ficando repleto de areia. Alex chegou perto dela e a pegou nos braços com ternura.
Ele fez carinho enquanto limpava a areia dela.
Havia uma luz fraca de algum prédio próximo que jogava um tom azulado sobre eles em um de seus lados e do outro lado, vindo também de cima, a luz clara amarelada do luar os iluminava em contrastes perfeitos. Várias pessoas se aproximavam curiosas para entender o que estava acontecendo.
— Vai ficar tudo bem, amor. Calma — ele sussurrava para ela, enquanto a mantinha com um dos braços e a limpava com o a outra mão.
— Meu pai, eu não sei onde está o meu pai, Alex — Helena chorava de pavor.
— Seu pai? — Alex indagou confuso.
— É, a Rita estava com uma conversa estranha de que não tinha encontrado ele, aí eu liguei e ela disse que não me conhecia, nem conhecia meu pai. Eu estou assustada, Alex.
— Rita? — Mais uma vez a pergunta pareceu estranha e a voz de Alex lembrou o som abafado vindo de dentro de uma caverna com ecos.
— É Alex, a Rita, se esqueceu da Rita? — Ela falou limpando o rosto com as mãos e enxugando as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
— Quem é Alex? — Disse aquela voz com eco. Certamente a voz de Alex, mas com certeza diferente da sua voz normal.
Helena limpava os olhos, ajustando sua vista, enquanto tentava se colocar sentada sozinha. Ela se desvencilhou do abraço de Alex que não se moveu nem reclamou. Ela sentiu seu corpo congelar quando olhou para o que estava bem diante dela, a menos que um braço de distância, tão perto e tão perigoso. Helena lembrou imediatamente de seus sonhos, mas dessa vez ela não estava sonhando, tinha certeza disso.
Não era seu marido que estava ali com ela. Era algo diferente, algo não humano. Era ela própria, uma outra Helena, não feita de carne, osso e sangue, mas de plástico, como um manequim.
Ela se afastou daquilo, que ficou no mesmo lugar, no entanto se colocando de pé. Helena olhou em volta, para as pessoas ali que ainda estavam paradas.
— Socorro! Me ajudem!
Olhando mais uma vez, ela estremeceu. Todos a sua volta usando roupas de turistas e bolsas e bonés diferentes, todas aquelas pessoas pareciam ser seu manequim, pareciam com ela e encaravam ela. Em uma delas Helena pôde notar uma transformação, viu quando uma senhora idosa e curvada foi perdendo sua pele enrugada para um pedaço duro e reluzente de plástico, esticando em uma posição ereta e confiante de mais outra Helena.
— Socorro — Helena gritou sem esperança. — Socorro!
A outra Helena que antes era Alex começou a falar com eco.
— É difícil para vocês entender essa parte — disse a outra Helena, e em seguida as outras Helenas em volta repetiram a frase em uníssono. — Mas nós estamos aqui para reparar um erro. Nós somos enviados quando não há outra solução. Sua chance foi dada, de se readaptar, de não ser mais um erro. Mas tudo à sua volta acaba em um desastre. Prejuízos, doenças e até mortes, tudo provocado por você. As pessoas ao seu redor vivem para te dar felicidade enquanto você só as ameaça com a sua existência, Helena. Agora estamos aqui para te apagar e dar uma nova chance ao resto.
— Mas o que foi que eu fiz? — Perguntou a verdadeira Helena.
— Você apenas… foi criada — e após um momento a voz ecoante sussurrou, com todas as outras ao redor a acompanhando. Vários sussurros na praia repleta de manequins, de outras Helenas. — Mas agora será apagada. Você nunca terá existido para essas pessoas e será encargo do Senhor do Impossível agora. Não será mais um fardo nosso. Só peço que não torne as coisas mais difíceis.
Um momento de silêncio seguido por um momento de grito de pavor da verdadeira Helena. Não demorou até que tudo ficasse completamente escuro para ela, para sempre.
Há muitos quilômetros do Ceará, na região sul do país, um homem chamado Aroldo e sua esposa Janaína Matias recebiam uma homenagem de melhores empregados do mês em suas respectivas carreiras.
Enquanto isso, uma garota chamada Carol, na mesma cidade do casal homenageado, acabava de receber a notícia de que tinha sido convidada para participar da equipe de natação para competir a uma vaga nas próximas olímpiadas.
Em uma outra cidade, A garota chamada Rita festejava seu aniversário com a família, namorado e amigos. Ela já havia esquecido da ligação estranha de mais cedo, e das mensagens no whatsapp. Todo o histórico já não existia mais no telefone.
Enquanto isso, em Roma, um jovem de férias chamado Alex acabava de conhecer sua namorada, Selene.
E Helena? Quem é Helena? Não a conhecemos; e cuidado, o próximo pode ser você.
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Camocim, CE, 30 de junho de 2018.
Última revisão em 05/01/2022, Sobral – CE.
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