demarcos Marcos DeMarcos

Contos cariocas sobre situações reais ou não ocorridas na cidade maravilhosa


Paranormal All public.

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AS GARRAFADAS UNGIDAS DO BALANÇA MAIS NÃO CAI.


Eu tinha uns 14 anos quando meus pais me colocaram para trabalhar numa banca de doces na calçada do edifício “Balança mas não cai” lá na rua de Santana, bem no cruzamento com a Presidente Vargas.

Era dezembro de 1992 e eu tinha acabado de entrar de férias na escola.

A situação lá em casa estava bem apertada, pois contávamos apenas com a aposentadoria do meu pai e o dinheiro que ele fazia vendendo doces na porta da nossa casa, lá na rua Marquês de Pombal, bem em frente ao jornal O Globo.

Na verdade, foi idéia da minha mãe que expandíssemos o negócio e meu pai apenas encontrou o local exato para abrirmos a “filial”.

Depois de pedir aos bicheiros amigos dele, que ficavam lá na calçada do Balança, para que tomassem conta de mim, pois eu ainda não tinha a malícia de trabalhar na rua, comprou um suporte de madeira e fez um tabuleiro de compensado para eu trabalhar.

No meu primeiro dia, confesso que saí de casa envergonhado, carregando o tabuleiro, a armação de madeira e um bolsão pendurado no ombro com as mercadorias.

Ao chegar no local indicado, um botequim fechado ao lado do ponto dos bicheiros, cuja porta de aço me serviria para me recostar quando estivesse sentado, armei a banca e coloquei as mercadorias, que se resumiam em doces, balas e cigarro a varejo.

Além da garantia de que eu não seria importunado por mendigos ou pivetes, já que estava sob a proteção dos bicheiros, o lugar tinha a vantagem de ser protegido contra a chuva e o sol, pois aquela parte da calçada da rua de Santana ficava embaixo da marquise do edifício Balança.

Às sete e pouco da manhã eu fiz minha primeira venda: um cigarro a varejo, que logo percebi ser o carro chefe das vendas.
Por volta das oito, do outro lado da calçada, bem de frente para minha banca, surgiu um senhor baixinho e parrudo, de pescoço enterrado, trazendo consigo um caixote de madeira repleto de aipim.

Fiquei espantado pela força dele, porque um caixote de aipim é muito peso para um senhor, por mais que ele demonstrasse ser forte.

“Fala aí Bastião! Esse menor vai ser seu vizinho agora!” – Avisou um dos bicheiros.

“Bom dia” – Eu o cumprimentei.

Ele olhou para mim com simpatia, deu bom dia e deixou o caixote no chão, seguindo em direção a um bar que havia mais à frente.

Minutos depois voltou com um banquinho de madeira e um copo de café pingado.

“Quer um gole filho?” – Me ofereceu com um forte sotaque nordestino.

“Não senhor! Obrigado!”

Sem dizer mais nada, ele começou a arrumar os aipins de forma que alguns ficassem bem visíveis e sem pôr ao menos uma plaquinha de preço, sentou-se no banquinho ficando de frente para a Presidente Vargas apreciando a paisagem, que se resumia aos carros passando nas quatro pistas em ambas as direções.

Meia hora depois, apareceu outro senhor.
Era um branco de cara enrugada, com óculos de grau e cabelo grisalho bem escovado, com uma modesta calça de tergal marrom e uma blusa abotoada até o pescoço.

Não restava dúvidas de que era um evangélico daqueles bem conservadores.
Carregava um suporte de madeira parecido com meu, só que maior.

O bicheiro fez o mesmo anúncio:
“Fala aí Seu Manel! O menor é o novo vizinho da gente! Filho de um camarada nosso!”

O senhor abriu um sorriso para mim e disse de forma altiva:

“Na paz do Senhor meu jovem!”

“Bom dia!” – Respondi sem saber como retribuir aquele tipo de cumprimento.

Depois de colocar o suporte encostado na porta de aço ao lado da minha banca, saiu, voltando em seguida com um tabuleiro duas vezes maior do que o meu.

Armou a banca e saiu novamente.

Voltou em seguida carregando um carrinho de mão com duas caixas de madeira dentro.

De lá retirou uma toalha que estendeu sobre a banca e em seguida começou a retirar das caixas várias garrafas de vidro com líquidos que pareciam chás.

Achei muito estranho aquilo e enquanto ele arrumava comecei a notar que em cada uma das garrafas havia um rótulo com indicações medicinais.

“Garrafada para dor no estômago”
“Garrafada para prisão de ventre”
“Garrafada para úlcera”
E por aí vai...

Por fim, ele retirou uma Bíblia bem velha e pôs aberta sobre o tabuleiro.

Eu já tinha vendido metade do maço de cigarros e alguns doces quando a primeira pessoa parou na banca dele.

Era uma senhora com cara de sofrida, daquelas que você percebe que as marcas no rosto lhe dão a impressão de ser muito mais velha do que realmente é.

“Isso aí é garrafada, moço?”

“Sim! E ungida em nome de Jesus!” – Ele respondeu com um sorriso carinhoso.

A senhora o encarou desconfiada.

Parecendo perceber o que ela estava pensando, Seu Manel foi logo falando:

“As pessoas acham que garrafada é coisa de macumbeiro, mas saiba a senhora que as ervas são feitas por Deus, então a cura delas vem do Senhor e não dos espíritos malignos!”

A mulher deu de ombros e perguntou:

“Eu estou com uma dor no rim que não me aguento. O senhor tem alguma coisa que me sirva?”

“Claro que tenho!”

Seu Manel imediatamente pegou uma das garrafas e ofereceu a ela, garantindo que depois de consumir todo líquido da garrafa ela estaria curada.

A mulher pegou o dinheiro da bolsa e entregou a ele.

Antes de entregar o produto, Seu Manel pegou a Bíblia com uma das mãos e apontou-a para a garrafa, iniciando uma oração.

Olhei aquilo com curiosidade e percebi que os bicheiros também viam a cena, só que com cinismo, enquanto o Bastião na outra ponta da calçada, permanecia indiferente, apreciando os carros indo e vindo pela Presidente Vargas.

Nos meses que se seguiram vi Seu Manel vender garrafada de todo o tipo, para todas as doenças e cobrando valores de acordo com a cara dos clientes.

Por vezes ele me passava alguns sermões da Bíblia, me orientando a não me deixar levar pelos caminhos errados, como o crime e uso de drogas.

Usando a expressão do meu pai, seu Manel era um “boa praça”.

Certo dia já em 1993, dias depois do carnaval, eu estava sentado atrás da minha banca, lendo um livro quando um homem com cerca de quarenta anos se aproximou da banca do Seu Manel.

Este, abriu um sorriso cordial para o possível cliente:

“Na paz do Senhor irmão! Posso te ajudar?”
O homem o olhou meio apreensivo e foi logo falando em tom de desabafo:

“Minha mãe, que mora lá em Minas, está com uma úlcera terrível e já gastei muito dinheiro em remédios que até agora não deram em nada. O senhor tem alguma garrafada pra quem sofre de úlcera?”

“Claro filho!”

E lá foi mais um cliente.

Só que este levou três garrafas, todas devidamente ungidas, deixando mais duas encomendas para o final da semana, pois iria enviá-las para a mãe em Minas.

Na sexta feira o homem voltou lá e pegou o restante da encomenda.

Eu nem cheguei a ouvir o preço combinado, mas pela cara de felicidade de Seu Manel, foi uma excelente venda.

Tudo ia muito bem na minha carreira de camelô: dinheiro entrando, com eu ganhando uma porcentagem dos lucros, novas amizades sendo feitas e um trabalho que me permitia fazer o que mais gosto: ler livros.

Todos os dias, de segunda a sexta-feira, eu montava minha banca das sete da manhã até às onze e meia, pois eu estudava a tarde.

Meus sábados e domingos eram livres.

Num certo final de semana, porém, por conta de uma chuvarada que peguei, acabei ficando gripado e por conta de uma febre só fui trabalhar na quarta ou quinta feira, se não me engano.

Ao retornar, os bicheiros e o Bastião me perguntaram porque eu tinha sumido e assim que contei o motivo, um dos bicheiros brincou:

“Achamos que tu tinha fugido com Seu Manel!”

Estranhei a brincadeira, fazendo cara de desentendido.

Outro dos bicheiros me explicou:

“Tu perdeu a kaozada que deu aqui na segunda-feira! O cara que comprou aquelas garrafadas com Seu Manel apareceu armado querendo meter bala nele. Chegou dizendo que a mãe dele teve problema de infecção intestinal por conta das garrafadas. Seu Manel meteu o pé igual um desesperado!”

Enquanto todos riam recordando do episódio, eu comecei a montar minha banca, desiludido com o que tinha ouvido.

Eu sinceramente acreditava na honestidade de Seu Manel.

No ano seguinte, em 1994, por conta de uma dessas coincidências da vida, eu e minha família nos mudamos para Campo Grande.

Logo na primeira semana, enquanto andava pelas ruas do Conjunto habitacional em que minha família foi morar, eis que dou de cara logo com quem?

Isso mesmo!

Seu Manel estava em uma bicicleta, trajado como de costume, com uma calça de tergal e uma blusa social abotoada até o pescoço, óculos de grau e cabelo impecavelmente escovado.

Ao me ver, nem me deu tempo de cumprimentá-lo, dando meia volta e acelerando a bike com os pés.

Dei uma risada e ao voltar para casa, comentei o caso com meus pais.

Meu pai, sem pestanejar, falou:

“Fez isso porque você sabe da história dele. Deve estar apavorado, imaginando que a qualquer momento você pode desmascara-lo.”

Dei de ombros e segui minha vida normal.

Cheguei a esbarrar com ele por mais duas vezes e sempre era a mesma coisa: ao me ver, ele fugia em disparada.

Uns dois meses depois, num domingo pela manhã enquanto aguardava na fila da padaria, ouvi um zum zum zum do dono do estabelecimento com um dos clientes que estava na minha frente.

Em determinado momento, um cara entrou anunciando para o dono da padaria:

“Ai, tá sabendo do coroa que tá morto lá no matagal? Acabei de ver! Morreu na base da machadada!”

“Tô sabendo!” – Respondeu o dono da padaria – “O amigo aqui tá me falando! É o Seu Manel daquela igreja lá no final do Conjunto. Parece que ele estava aplicando golpe por aí e vieram acertar as contas com ele!”

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Oct. 10, 2021, 6:39 p.m. 0 Report Embed Follow story
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Meet the author

Marcos DeMarcos Carioca, nascido na Ilha do Governador e criado por boa parte da infância e adolescência entre a Cidade Nova e Campo Grande, na zona oeste carioca, sou apaixonado por ler e escrever. Gosto muito de pôr em minhas situações inspiradas no que vi, ouvi e vivi ao longo de minha vida aqui no Rio de Janeiro.

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