guilhermerubido Guilherme Rubido

Viajando a trabalho, Denis Alves acaba por ser vítima de uma forte chuva. Sem opções, vê-se obrigado a parar em um hotel qualquer para se refugiar. Lá, escondido da chuva e sozinho, ele fica preso por mais tempo do que esperava. Em seus dias ele descobre que um terror se esconde na escadaria e se arrasta pelos degraus desgastados à noite. Em sua última noite ele decide descer as escadas até o fim...


Horror Not for children under 13.

#medo #creepy #assustador #Silent-Hill #terror #stephen-king #288 #conto-de-terror #Neil-Gaiman #edgar-allan-poe #horror
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Descendo as escadas

Era o quarto dia dele naquele hotel maldito.

Se tudo tivesse ocorrido como o planejado – e é claro que não ocorreram –, ele já deveria estar em casa há 3 dias. Não fosse a chuva tempestuosa e os alagamentos que se seguiram, ele teria pego o avião para São Paulo e, neste momento, estaria vendo o jogo do Palmeiras na rodada inicial do Campeonato Paulista, sentado em seu sofá com uma boa taça de vinho na mão – provavelmente com raiva do time, mas isso era normal. Em casas, a chuva não seria nada mais do que um bom acompanhamento para a noite fria. Um som confortavelmente distante e nada mais.

Só que nem sempre as coisas saem como a gente espera, já dizia mamãe. Que Deus a tenha, ele pensou, enquanto descia mais um lance de escada.

Mamãe Alves também costumava dizer para que ele não deixasse as coisas incompletas. Quando começasse algo, tinha de ir até o fim. Denis tentava seguir esse mandamento à risca. Prometera a esposa que não pararia de se exercitar nem nos 4 dias que passaria fora a trabalho. Prometera várias e várias vezes, porque a verdade é que ela já estava puta com ele. E ele estava sendo sincero. Queria mesmo fazer aquilo. Aconteceram alguns imprevistos, é claro. Em 22 anos como analista de investimentos Denis Alves tinha aprendido que imprevistos eram sujeitos bastante dedicados. Faziam questão de sempre estarem presentes na maior parte dos eventos que conseguiam.

Para começar, o hotel era velho. Não era como aqueles luxuosos e confortáveis, com uma super área de lazer, piscina aquecida e um café da manhã que mais parecia com um banquete vitoriano de uma rica família. Muito menos academia particular. Alguém para levar suas malas? Pff! Por favor. Era seu quarto dia ali e ele só tinha visto uma funcionária no lugar. Uma velha que parecia um fantasma errante e mudo andando de um lado para o outro.

Assim, só lhe sobrara a escadaria do prédio para auxiliá-lo em seus exercícios. E estava tudo bem. Seriam apenas 4 dias ali. Ele estipularia alguma meta diária e, toda noite, abriria a porta do corredor, disposto a ter um encontro com as escadas por algumas horas. Só que, com a chuva, os quatro dias viraram sete e ele já não aguentava mais olhar para aqueles degraus carcomidos e sujos. A escuridão e o ar parado começavam a sufocá-lo. Conforme os dias se passavam, as escadarias serpenteantes e contorcidas tornavam-se cada vez mais tuneis intermináveis e confusos. Infinitos.

Porém, ainda assim, ele continuava descendo. Anos de mercado financeiro haviam lhe ensinado a pensar no longo prazo.

Além disso, com a cidade alagada, não havia mais nada para se fazer – nem haveria, mesmo que a situação fosse diferente. O hotel era distante de tudo, de modo que demoraria mais de 40 minutos para ele chegar na “civilização”. Estava entediado. Não aguentava mais olhar para aquele quarto escuro de hotel do qual a última limpeza mais intensa do que simplesmente trocar o lado do lençol da cama devia ter acontecido há mais de dois ano atrás. Não suportava mais atravessar aqueles corredores compridos e secos; seus sapatos lançando nuvens de poeira no ar toda vez que pisavam sobre o tapete manchado e empoeirado. Não havia nem com quem conversar. O hotel parecia inteiramente vazio; tanto em matéria de hóspedes quanto em funcionários, já que apenas uma mulher estranha e meio corcunda parecia fazer todos os trabalhos do lugar. Era recepcionista, limpadora e sabe-se lá mais o quê.

Ele parecia ser o único viajante a ficar preso por ali, na hora errada e no lugar errado. Um solitário forasteiro. Apesar disso, ele pensara ter ouvido vozes nos outros quartos algumas vezes. Certa noite acordou com um grito que o fez saltar da cama. Houve o som de batidas em uma porta distante e ele saiu correndo para o corredor, vestido apenas de cueca e blusa. Quando olhou para fora do quarto, não viu nada. Apenas o silêncio e a escuridão. Não conseguiu dormir naquela noite. Ficou deitado encarando a porta, como se esperasse que, de madrugada, alguém tentasse forçar a maçaneta da porta.

Assim, só lhe restava as escadas. De algum modo, era um jeito de espairecer e se afastar do tédio.

A escadaria era horrível. Selada por portas gastas e pesadas a cada andar, todo o ambiente mantinha um cheiro seco de mofo. As paredes eram pintadas com uma tinta cinza que, em conjunto com o verde escuro do chão e dos degraus, fazia com que as luzes brancas das paredes fossem praticamente inúteis. A parca e pálida iluminação era engolida, desaparecendo em reflexos opacos no verde sufocante que o cercava.

Ele já não aguentava mais aqueles corredores de escadaria, virando-se e virando-se e virando-se infinitamente, como a casca vazia de um caracol cósmico. Cada dia que passava, seu avanço parecia mais lento. O térreo, onde ficava a recepção, parecia mais distante. Como se novos andares fossem adicionados dia após o outro. Hoje não era diferente. Era pior. Ele estava exausto. Suando como frango no forno. O lugar era quente. Não a todo momento. Mas, de tempos em tempos um estranho calor parecia subir pelas paredes. Por alguns momentos, teve de se apoiar nas paredes escuras para tomar fôlego. Sua visão estava turva e a escuridão local deixava tudo pior. Sentia que, se não chegasse logo em algum lugar para tomar água, poderia desmaiar ali mesmo. Os dias de exercício seguidos pareciam estar cobrando seu preço.

Mas ele continuou descendo. Faltava pouco.

Foi quando ele ouviu vozes vindo lá de baixo.

De onde estava, era impossível dizer o que conversavam. Eram duas vozes diferentes e pareciam discutir com ansiedade em vozes esganiçadas e estranhas. Curioso e passando mal, Denis desceu, esperançoso de que conseguiria um copo d’água ou coisa do tipo. Podiam ser funcionários, afinal. E, para falar a verdade, estava tão tonto que nem conseguia pensar direito.

Ele desceu mais alguns lances até que finalmente pôde vislumbrar algum sinal.

Lá de baixo uma pequena iluminação incandescente começava a escalar pelas paredes, quente e chamativa, invadindo a escadaria com seu brilho cada vez mais intenso.

— Vamos, vamos! — Praguejava uma das vozes com tom ameaçador. — Desse jeito a caldeira vai apagar nos próximos dias. Precisamos de alimento, porra! Alimento! Ou ele vai ficar puto.

A outra voz então sussurrou algo em reposta, mas era impossível de se ouvir; as palavras deslizavam escada acima como cobras silenciosas e escorregadias.

Sibilando.

As costas de Denis se arrepiaram por inteiro. Um vento cortante acariciou sua nunca, fazendo-o estremecer em um arrepio assustado.

Vidrado de curiosidade, ele começou a se aproximar da luz e das vozes, mas algo o impediu.

Houve um estalo forte às suas costas que o fez pular e olhar para trás. O mundo pareceu emergir à normalidade outra vez, como se antes ele estivesse imerso em um transe estranho, levado por uma enfeitiçada curiosidade. Ele olhou para trás.

Uma porta estava aberta, deixando a luminosidade do corredor de um dos andares derramar-se sobre os degraus e sobre ele. A mulher estava ali. Aquela que era a aparente única funcionária do local. Trazia consigo um rodo, panos, um balde e vários produtos de limpeza. Do alto, ela o encarou com desdém, pousando aqueles olhos aquosos e distantes de velha sobre ele. Estalando e rangendo, ela deixou a porta ao seu lado bater-se como uma janela sob uma forte ventania.

BLAM!

Denis saltou outra vez.

Arrastando-se com o joelho estalando, a velha subiu as escadas, ignorando-o como se nem o tivesse visto.

Parado no escuro, Denis ficou ouvindo o tec-tec-tec do plástico do balde batendo contra a madeira do rodo enquanto a mulher subia os degraus com os ossos estralando. Aos poucos o som foi se perdendo escada acima.

Atrás dele, nos andares abaixo, tudo era silêncio.

Havia apenas o uivo sombrio do vento.


***


Por dois dias a chuva persistiu, caindo como uma dança de pesadas cortinas geladas sobre a cidadezinha.

Por dois dias, Denis continuou a descer as escadas.

Desde que vira aquela estranha luminosidade vindo dos andares inferiores, ele ficara obcecado. Naquela noite, após a mulher surgir nas escadas e ele voltar à realidade, recompondo-se de tudo após beber uma boa quantia de água e tomar um banho quente, ficou se revirando na cama noite a dentro, pensando no que haveria lá em baixo. Tentando formular sentidos para a conversa que ouvira. Por algumas vezes naquela noite, cogitou calçar os tênis e descer. Tentar chegar no local e ver do que se tratava. Mas conteve-se. Ao invés disso, ficou deitado na cama, olhando para o teto decrépito e ouvindo o sussurrar do vento no corredor. O tamborilar da chuva contra os vitrais das janelas. As vozes que de vez em quando surgiam e desapareciam na noite.

Sendo sincero consigo mesmo, ele nem mesmo se lembrava como havia chegado até ali. Estava dirigindo no meio da pista. Na rádio – e isso ele se lembrava bem, porque aquela era uma de suas favoritas da vida – estava tocando Last Kiss, do Pearl Jam, e isso fez com que ele aumentasse o volume. Sob a voz de Eddie Vedder ele contemplou as montanhas verdes e nubladas que se erguiam no horizonte cinzento. Sem aviso prévio, pingos de chuva começaram a dançar no para-brisa do carro. Os pingos ficaram mais e mais fortes até que se tornara um verdadeiro dilúvio que despencava sobre a rodovia.

E então ele estava ali, naquele fim de mundo onde teve de se refugiar, como um gato indefeso fugindo da chuva.

No escuro do quarto, sua mente girava.

Nenhum passo. Não tem ninguém aqui comigo, ele pensou prestando atenção nos sons do hotel. É como se o mundo lá fora tivesse... sei lá, morrido.

Isso o fez sentir um arrepio.

Virou-se enrolando na coberta mal lavada e dormiu.

No outro dia, não encontrou nada.

Foi só no terceiro que conseguiu resultados em sua busca.


***


Era por volta das 3h27 da madrugada.

Lá fora, a chuva persistia, ainda mais forte do que nos dias anteriores. Talvez uma última investida antes de sua parada. O vento também estava forte e fazia com que as janelas de todo o hotel vibrassem e se contorcessem como animais ferozes nas molduras de madeira velha.

As escadarias assobiavam o nome do vento, subindo e descendo na escuridão, como a garganta insondável de uma criatura abissal adormecida; cada degrau formando um dente.

Denis saltou para fora da cama e calçou os tênis.

Um relâmpago explodiu pela vidraça e, por um momento, o mundo a sua frente desapareceu em um véu branco azulado. Separou tudo que trouxera: carteira, documentos e a chave do carro. Ele havia guardado a mala de roupas no porta malas de tarde, já preparando-se para ir embora de noite, assim que a chuva desse seu primeiro intervalo.

Tomando fôlego, ele saiu do quarto.

O corredor, como era de se esperar, estava vazio. Imerso nas sombras noturnas e delineado a intervalos recorrentes pela eletricidade dos raios no céu. Denis olhou para a esquerda, para onde o corredor ia, perdendo-se ao longe, levado pelo sibilar do vento. Com alguns passos alcançou a porta da escadaria e tateou a superfície em busca da maçaneta.

Sua mão recuou ao tocar o metal, como se tivesse tocado em uma panela quente.

Ele forçou mais uma vez, agora ciente da temperatura, e começou a puxar a porta. A corrente de vento parecia impedir que a porta se abrisse, mas, depois de um tempo, a porta se abriu, como se desacoplada de alguma borracha magnética como a das geladeiras.

Parado no corredor sob o vento e as luzes do céu, ele encarou a garganta negra que formava a escadaria.

Com um passo, ele entrou.

A porta atrás dele se fechou, confinando-o em completa e desorientadora escuridão, já que as luzes de emergência – ainda que praticamente inúteis naquele lugar – nem se deram ao trabalho de acender.

Ouvindo sua própria respiração estranhamente descompassada, ele deu o primeiro passo. A sola de seu tênis se arrastou contra o patamar verde da escadaria e o som se propagou pelas paredes, parecendo ecoar eternamente na escuridão. No escuro, ele começou a descer os degraus. Seus olhos estavam vidrados e brilhavam como duas pérolas negras nas sombras. Com o eco de seus passos repetindo-se a ponto de perderem o sentido, ele foi avançando, o olhar sempre fixado nas sombras do próximo lance, esperando que, de alguma forma, veria a estranha luz ao virar a esquina. A chave em seu bolso tilintava a cada passo.

A chuva lá fora havia se tornado um som abafado e distante, mas ele ainda a ouvia. Era como um lembrete. Uma insistente recordação de que, apesar dos efeitos ilusórios daquela escadaria que o faziam pensar que ele estava em uma estranha caverna, ele ainda estava em um prédio. Em um hotel decrépito.

Eu vou ver o que tem lá em baixo e vou embora... ele pensou, roendo as unhas com ansiedade. É... vejo e dou o fora daqui. Vou embora mesmo que tenha que transformar meu carro em barco. Saio remando dessa merda de lugar se for necessário. Eu só preciso ver o que tem lá em baixo...

Há quanto tempo ele estava ali, descendo na escuridão? Quinze minutos? Trinta? Uma hora, duas horas, porra, como iria saber, parecia já estar ali há pelo menos 3 horas! Rodando e rodando e rodando. De repente, experimentou um efeito de vertigem, que quase o derrubou de uma só vez, como se o mundo se inclinasse de repente. Segurou-se no corrimão e sua mão, empapada de suor, deslizou pela barra, fazendo-o cair de joelhos sobre um dos degraus.

Ele gritou de dor, e sua voz flutuou pelos corredores, tornando-se fantasmagórica e distorcida à medida que se afastava.

— Merda de lugar... — ele murmurou enquanto se punha de pé outra vez.

No fundo, ouviu um ruído.

Esquecendo a dor, ele se pôs de pé e, com uma das mãos na parede, esticou o pescoço para enxergar o próximo andar.

— Deus do céu...

Sob seus pés, os degraus continuavam descendo, mas, em certo momento, sumiam, engolidos por uma camada alta de água cinzenta e paralisada. O local parecia-se com uma sala de máquinas. Havia uma grande e aparentemente abandonada caldeira na direita, armários de aço nas paredes e, bem no fundo da sala, a porta de um elevador.

Denis desceu o último lance. A água lambeu seus calcanhares até a altura do tornozelo. Ele contraiu os dedos quando a água gelada se infiltrou nos tênis e empapou suas meias. A água estava muito fria. Congelando. Buscando apoio, ele tateou com o pé direito por baixo da água, buscando o chão do lugar. Com os movimentos, a água, antes completamente inerte, começou a se balançar, criando pequenas ondas e esticando seus braços pelas paredes de concreto cinza.

A não ser pelo ruminar da água, o local estava em um silêncio total.

Um lugar morto.

Denis estava no meio da sala quando um barulho chamou sua atenção. Do elevador, pôde ouvir o som de um motor trabalhando. Um ronronar baixo que rapidamente ficou mais intenso. Depois de um tempo, uma campainha alta, como uma sirene de um toque só, anunciou a chegada do elevador. Em alguns segundos, a porta diante dele se abriu, apresentando o interior vazio do elevador. Lá dentro havia apenas uma luz fraca que piscava sem parar.

— O que fizeram com esse lugar? — Ele falou olhando para o chão.

Denis observou a água da sala escorrer e deslizar para dentro do elevador, alagando rapidamente a cabine. Pelo espaço entre o elevador e o chão da sala, a água começou a escorrer, e ele podia ouvi-la pingando. Pingando em cascata em algum lugar lá em baixo, no fundo do poço.

De alguma forma, a boca aberta do elevador era atraente. Parecia convidá-lo a entrar. Não. Não era um convite. Era um desafio. Estava zombando dele.

E aí, garotão! Pronto para um passeio?

Sem saber por que, Denis entrou. A indicação no painel acima da porta dizia que o elevador estava subindo e o que mais ele poderia fazer? Não havia mais nada por ali. Não conseguira encontrar a luz do outro dia, que era o que o fizera ir até ali, para começo de conversa. Assim, só lhe restava subir para ir embora. Era melhor aproveitar a carona.

Ele entrou. Quando pisou na cabine, uma sirene estridente e grave começou a soar repetidamente, ululando em ondas pelo local, como um murmúrio angustiado:

PEEEUM!!! PEEEEEUM!!! PEEEEEUM!!! PEEEEEUM!!!!!!

Tomando por um pânico repentino e pela ansiedade que a sirene gerava, ele olhou para os lados, em busca de alguma solução. Olhou então para o painel onde estavam o número dos andares, e um espaço brilhava em vermelho:

PESO EXCEDIDO

APENAS UMA PESSOA POR VEZ.

— Mas que po... — ele começou a falar e percebeu que não estava sozinho no elevador.

Alguém respirava à suas costas.

Tomado de pânico, ele se virou para o fundo do elevador e começou a se afastar. Não havia nada ali dentro. Estava completamente vazio. De costas, ele cambaleou para fora do elevador, empurrando a água com os calcanhares e tentando se agarrar às paredes com as mãos balançantes. Ao deixar o elevador, as portas se fecharam e ele pôde ouvir o som do motor trabalhando, içando a cabine para o alto, em direção a algum andar superior, zumbindo enquanto deslizava pelo prédio silencioso. Alguém estava chamando o elevador.

Ainda atrapalhado pelo susto, seus pés enroscaram em alguma coisa e ele tropeçou, caindo na água.

Por alguns segundos, tudo ficou abafado e escuro.

Aquele alagamento raso que, há pouco tempo, era apenas uma camada de água cobrindo o chão, pareceu se tornar um profundo e hediondo lago. Contorcendo-se e debatendo-se na água, ele chapinhou para a superfície como um peixe desgovernado. Ele emergiu e suspirou, arfando de frio e de medo.

Ao levantar-se, a água ainda batia em seus tornozelos.

Deus do céu, ele pensou, abraçando-se com os braços molhados e tremendo de frio. Olhava em volta, ainda amedrontado pela respiração que ouvira no elevador. Esse lugar tá me deixando louco. Inferno de lugar, porra! Tenho que sair, ele concluiu, batendo os dentes de frio. Tenho que sair daqui...

Atrás dele, o elevador começou a descer outra vez. O tec-tec-tec do motor ressoava pelo lugar, ficando cada vez mais e mais alto.

Eu preciso sair daqui, ele pensou, subitamente sentindo-se em pânico. Preciso sair daqui antes desse elevador chegar.

Era possível ouvir vozes vindo de dentro do elevador. Voavam distantes e abafadas pela estrutura do prédio, mas ele as ouvia. Um festival insano de mil conversas se cruzando em sentidos diferentes. Insanas. Havia risadas e choros. Gargalhadas incontroláveis e frases sem sentido. Até batidas.

— Meu filho ficou resfriado, tô indo buscar ele na escola.

— Não vai doer... Sei que não vai... Vou ser rápido. Prometo que vou. Ninguém vai sentir minha falta, não é, Bob? É só uma bala e BOOM! — Um garoto parecia falar com alguém em uma voz triste.

— Deus do céu, deus do céu, pelo amor de todos os santos, ele tá vindo ele tá vindo ELE TÁ VINDO... — alguém sussurrava no escuro.

— Lucas, seu FILHO DA PUTA! Você matou ele! Você matou ele, porra! Puta merda... — a voz de uma mulher gritava em desespero.

— Não adianta correr, seu merdinha — outra voz sibilava. — Nós todos aqui sabemos das suas cagadas. Ô se sabemos. E tu vai pagar por isso. Vai PAGAR TÁ ESCUTANDO SEU FILHO DA PUTA?! AGORA VEM AQUI! NÃO ADIANTA FUGIR! VEM AQUI! — A voz explodiu pelo poço do elevador, quase como se fosse estourar a porta de metal do elevador.

O festim cacofônico aproximava-se cada vez mais conforme o elevador ia fazendo sua descida. Denis começou a correr em direção a escadaria por onde viera. Sentia que precisava se afastar daquilo. Precisava se distanciar daquela loucura. A ponta de um de seus pés chutou um degrau submerso e, tateando de quatro, Denis começou a escalar a escada para sair dali.

Enquanto subia, a água atrás dele tremulou rapidamente e uma forma cinzenta saltou da água em sua direção. A coisa molhada agarrou seu calcanhar com força, arranhando sua perna no processo. Era grande. Muito grande. E filetes de sangue escorreram das pernas para os degraus. Denis berrou de dor. Os dedos encharcados pela água subiram pela sua perna esquerda, deslizando como enguias pelo seu corpo e começaram a puxá-lo na direção da água. Naquele instante ele não teria como pensar nisso – sua mente só conseguia formular um único pensamento: fugir, fugir, fugir – mas, se estivesse vendo a cena de fora ela pareceria um daqueles momentos que ele vira tantas vezes de madrugada no Animal Planet em que uma pobre gazela com sede é arrastada para dentro d’água por um gigantesco crocodilo que emerge de repente do lago.

Ah, cacete, que merda é essa, que merda é essa, porra?? Sua mente gritava confusa.

Lenta e desajeitada, a mão começou a arrastá-lo escada abaixo, os dedos escorregando e apalpando-o quase como se tentassem reconhecer pelo toque o que era aquilo que capturavam. Com os olhos ardendo por causa da água, Denis olhou para trás e começou a chutar com a sua perna livre aquela mão monstruosa que o segurava. Com desespero crescente, desferiu uma sequência de pontapés nas costas daquela mão ossuda. Os dedos longos daquilo se contorceram e retraíram, como as longas pernas de uma gigantesca aranha recolhendo-se em sua morte. No entanto, os dedos não o soltaram. Pelo contrário, apertaram-se ainda mais, agora agarrando-o pela cintura e o apertando com mais intensidade, quase esmagando seus ossos. O sangue escorria de suas pernas, encharcando seus shorts e vibrando em uma dor lancinante. Um de seus pés já estava outra vez debaixo d’água e respingos voavam para todos os lados enquanto ele se remexia para fugir. Sabia que, se fosse levado para a água, tudo estaria perdido. Não entendia como uma coisa daquelas poderia ter saído daquela água, que só chegava em seus tornozelos, mas, de alguma forma, ali estava ela.

Com uma das mãos, agarrou-se no corrimão na parede e tentou içar-se degrau acima. Oferecendo resistência e olhando em volta em busca de algo que pudesse ajuda-lo, Denis levou a outra mão aos bolsos dos shorts, chacoalhando-os em um desespero alucinado. Sua carteira de couro caiu no chão e foi girando pela escada, até se perder na água. Um cartão qualquer de um restaurante de estrada flutuou até o chão, deixando a imagem de uma galinha segurando uma coxinha virada para cima. Por fim, chorando e tremendo, seus dedos alcançaram algo.

Era a chave do carro. Deveria servir. Tinha que servir. Suas mãos estavam suadas e com sangue, mas ele segurou a chave com toda sua força.

— Por favor, por favor, por favor... — Denis choramingou.

Sem pensar ou medir forças, sua mão voou em punho fechado na direção de um dos dedos que o puxavam. Um brilho metalizado reluziu cortando o ar e, quando o golpe acertou o alvo, um festival sonoro ressoou pela sala. A criatura começou a sacudir-se na água, lançando respingos e ondas para todos os lados. Aquilo que estava submerso produziu um som estático, como um rádio fora de sintonia; um grito de dor.

A mão recuou como um chicote, levando a chave consigo, que estava cravejada naquela estranha pele como a espada de Rei Arthur. Os longos dedos estalaram contra as paredes e bateram contra o corrimão.

— Obrigado, obrigado... — Denis sussurrou enquanto via a coisa se debater na água. Uma sobra magricela e enorme chapinhando na água, debatendo-se e ocupando toda a sala com seu tamanho, do chão ao teto. Aproveitando, ele se virou e começou a subir as escadas.

Atrás dele a criatura berrava fazendo o som de rádio retumbar em seus ouvidos. Enquanto seus pés batiam contra os degraus, ele ouviu o ressoar que anunciava a chegada do elevador. Ouviu a porta se abrindo e liberando a algazarra de sons e vozes que estavam confinadas. Mas ele já estava distante. Estava preocupado com outra coisa.

Cadê as portas, porra, cadê as portas?!!!!, sua mente berrava enquanto ele subia. Todas as saídas para fora daquele manicômio haviam sumido. Desparecido como se jamais estivessem ali. A escadaria tornara-se apenas um infinito e sombrio corredor ascendente de paredes lisas. Sem opções, ele continuou a subir sem parar, arfando como um louco.

A coisa que o agarrara subia atrás dele estalando seus sons de estática que ecoavam pela escadaria. Era imensa. Tão grande que não cabia nos corredores. Quando Denis olhou por sobre os ombros – direto para a escuridão lá em baixo – pôde ver apenas a silhueta negra da criatura; uma coisa magra e definhando. Ela se contorcia, repuxando-se e arrastando-se pelas paredes, teto e chão, como uma minhoca abrindo caminho pela terra. Era horrível. Cada movimento seu era pululante e fazia a estática ressoar em sua cabeça, cada vez mais alta. Ela gemia, como se sentisse muita dor. As enormes mãos seguravam-se nos degraus para conseguir apoio para se arrastar e se puxar para frente.

FOOOOOOOOOOMEEEE — a coisa gemeu atrás de Denis em uma voz horrível demais de se ouvir. Uma voz que parecia submersa, distante. — FOOOOOMEEE.

A voz ressoou pelo prédio, fazendo as paredes vibrarem. Quando a coisa falou, as escadas brilharam. Denis olhou para trás, tomando cuidado para não cair. A boca de seu perseguidor – ou o que parecia ser a boca – estava aberta e, de dentro dela, uma luz vermelho alaranjada irradiava em todas as direções. Era quente. Denis conseguia sentir o calor de onde estava, dois lances acima. Labaredas de fogo dançavam pelas paredes, serpenteando para fora daquela boca que mais parecia uma fornalha viva. Uma caldeira a se alimentar. E ele era a lenha.

Ao ver a cena, Denis quase perdeu o controle, desequilibrando-se por um momento. Suas mãos tatearam pelas paredes, escorregando pela superfície por conta do suor. Estava encharcado. Não havia percebido antes, mas o calor ali era insuportável; muito pior do que das outras vezes. A escadaria havia se tornado um forno. Com as pernas doendo, as mãos tremendo e os pés escorregando dentro das meias, ele correu sem parar, avançando naquele túnel de escuridão.

Depois de subir cerca de quatro andares – ou o que pareciam quatro andares – ele finalmente deu de cara com a primeira porta.

Ah, Deus do céu, finalmente! Ele pensou, chorando aliviado ao ver o portal que o tiraria daquele pesadelo insano.

Quando tocou na maçaneta, ávido como se diante de um tesouro lendário, Denis berrou de dor. Um cheiro de carne queimada flutuou no ar e ele sentiu na mesma hora a textura da carne viva em sua mão. Estava incandescente de tão quente.

A coisa lá em baixo subia lentamente:

FOOOOOOMEE, TENHO FOMEE.

Com as mãos tremendo, Denis segurou a maçaneta mais uma vez e puxou-a com toda a força do mundo. Vamos, porra! Pelo amor de Deus, alguém me ajuda! Abre! Abre! Ele berrava de dor. Era insuportável. Sentia a pele de suas mãos derreter sobre a maçaneta, fundindo-se com o metal e estalando enquanto queimava. Estavam meladas e ardiam em um nível que o fez sentir vontade de arrancá-las à dentadas, só para que a dor cessasse. Vamos, vamos, vamos! A esse ponto, o brilho da criatura já estava visível no canto dos olhos de Denis. A fornalha viva se aproximava, arrastando degrau acima como uma gorda lagarta.

— Abre, porra! Abre! Abre! — Tomado por um frenesi, ele agora chutava e socava a porta que estava selada, derretida contra a parede. Seus dedos estavam tortos, deformados pelos murros desferidos contra o tampo da porta. — Por favor! Alguém me ajuda! Alguém! — Ele gritou de medo, dor e frustração. Mas ninguém apareceu.

O fogo queimava cada vez mais quente. Suas mãos ardiam e sua pele desfazia-se, deixando uma coisa rosada e melada no lugar.

Ele berrou enquanto o calor queimava e derretia seu corpo.

Deus do céu, até o chão em que pisava estava incandescente, derretendo seus tênis e queimando seus pés.


***


A porta se abriu.

Havia uma senhora parada no corredor. Segurava um balde, panos, produtos de limpeza e um rodo e, já do corredor ela sentia o bafo quente que vinha da escada.

— Mas que bagunça.

A velha falou enquanto recolhia as fuligens e os restos carbonizados do que sobrara de Denis Alves, um de muitos hóspedes daquele estranho hotel localizado em algum lugar na esquina de lugar nenhum. Não era difícil chegar ali. Havia muitas maneiras de conseguir fazer isso. Muitas. Mas cada um tinha seu horário reservado naquele hotel e todos chegavam na hora que tinham que chegar. Eram regras bastante rígidas. A parte difícil, ela achava – e ela trabalhara ali tempo o suficiente para ter uma certa noção –, era sair dali. Como dizia na música do Eagles, você podia até fazer seu checkout quando preferisse, mas jamais poderia partir.

Não sem pagar.

Lá fora, reluzindo incandescente sob a chuva noturna, uma placa de neon com a palavra “HOTEL” brilhava convidativa em vermelho, apenas esperando a chegada de seus próximos clientes.

Ali, todos eram bem atendidos.

Aug. 24, 2021, 11:34 p.m. 3 Report Embed Follow story
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The End

Meet the author

Guilherme Rubido Olá, que bom que conseguiu chegar até aqui. Seja muito bem-vindo. Por favor, tire o tênis e sinta-se em casa. Parece que começou a chover. Consegue escutar? É uma chuva daquelas... Teremos muito tempo até que pare. Sendo assim, escolha um assento e fique confortável. Aqui veremos muitas coisas horríveis, então, prepare-se. Tem café quente na mesa e bolachas no armário de cima (não mexa no de baixo, não vai gostar do que tem lá dentro). Caso goste do que viu, não se esqueça de deixar uma gorjeta (like) ou comentário para o escritor, ele agradece pela sua cooperação. Para o caso contrário, deixe um comentário com sua reclamação, estamos sempre tentando melhorar. Espero que se divirta. :)

Comment something

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Wesley Deniel Wesley Deniel
Olá, meu irmão ! Está tudo bem com você ? Faz tempo que não conversamos. Deixe um olá. Tenho-o em alta conta, e me preocupa sua ausência. Grande abraço !
November 20, 2022, 00:45
Wesley Deniel Wesley Deniel
Ah, esplêndido ! Muito bom, meu amigo ! Durante a história eu fiquei pensando em hotéis assombrados e me vieram à mente tanto o Overlook de nosso querido Jack Torrance, quanto o bom e velho Hotel Califórnia. E como foi boa a surpresa de vê-lo citado ! Mais uma vez, eu o saúdo !
August 30, 2021, 08:29

  • Guilherme Rubido Guilherme Rubido
    Salve, Wesley! Acho que, no fim, somos todos eternos hóspedes dessas obras, não? Difícil deixá-las. Este ano mesmo reli O Iluminado, só para encontrar aquela história maravilhosa outra vez. E Hotel California é trilha sonora constante, tanto em minha vida quanto em minha escrita (assim como Ramones, haha). Como já disse em outras oportunidades, é sempre uma satisfação plantar referências ao longo do texto e, com um sorriso de orgulho no rosto, imaginar o leitor as reconhecendo com um sorriso igualmente orgulhoso ao do autor! Acho que nesse momento ocorre uma espécie de telepatia entre as duas partes. Agradeço imensamente pelo comentário, meu amigo! August 30, 2021, 23:06
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