Chovia forte naquela sexta-feira. A rua esburacada parecia um rio e a essa altura, o campinho da 98 havia virado um mar de lama. De braços cruzados diante da janela, Lucas bufou. Detestava dias chuvosos, afinal ficaria enfurnado dentro de casa e contrariar sua mãe era pedir uma sova de cinto. Emburrado pela derrota na partida de ontem, seus joelhos ainda ardiam, lembrança do metido do Diogo e o carrinho criminoso que lhe deu antes que chegasse a chutar pro gol. Com certeza aquele trapaceiro agora se divertia com os jogos do seu Gameboy, mas ao menos não estava lá para se gabar dos pokémons que capturou.
Carlinhos, o baixinho da turma, estava empolgado com os novos quadrinhos do Homem Aranha que o pai lhe trouxera da banca onde trabalhava. O pidão Dudu, ou Bolinha como chamavam, certamente dormia ou fazia o que mais gostava: comer. Não podia ver ninguém lanchando que já vinha pedir um pouco. Já a Lili provavelmente teria essas coisas chatas de menina pra fazer. Lucas não entendia porque ela sempre demorava a chegar durante as brincadeiras. Ela dizia estar se arrumando e que os meninos não entendiam nada de moda. Embora sempre terminasse tão suja e suada quanto eles no fim do dia.
No entanto, para o garoto da Rua 13, não havia muita opção num toró daqueles. Lhe restavam o álbum de figurinhas e cartas, um jogo de botão, bolinhas de gude e um pião de madeira. Não tinha graça nenhuma brincar sozinho. A chuva arruinava um dia inteiro de brincadeiras e a revanche prometida ao Diogo. Lucas ficou tão entediado que acabou pegando uns jornais velhos. E então foi lendo tirinhas e completando palavras cruzadas até que bateu o olho numa matéria. Falava sobre a reforma no Cemitério das Boas Almas, em que o velho mentiroso do prefeito levou o crédito, mesmo que só fizesse as coisas perto da eleição. Lucas achava um absurdo gastarem tanto dinheiro num cemitério quando a pracinha do bairro tinha mais ferrugem e lixo que um ferro velho. "Poxa, eles podiam pelo menos colocar balanços novos e pintar o escorrego." Lamentou-se pelo parquinho, embora já tivesse ouvido histórias sobre o tal cemitério. Escutou sua mãe conversando a vizinha que o lugar havia sido construído onde antes funcionava um manicômio. O povo dizia que durante à noite as almas dos loucos andavam pelos túmulos, gritando em dor e agonia.
"Isso é balela, até parece que gente morta volta. Isso tudo é história pra pôr medo em alguém."
No caminho até o campo da 98, passavam em frente ao cemitério. Um portão de ferro dava acesso para as tumbas. Era um lugar muito quieto, raras vezes viam o coveiro por aquelas bandas. Lucas nem dava bola, geralmente vinha discutindo com Diogo que sempre o ruivo se dizia melhor em alguma coisa. Lili era a guardiã dos lanches, a loirinha os carregava na mochila rosa, sempre armada com um estilingue caso alguém tentasse pegar algo que não era seu. Bolinha apressava os passos e nem olhava pro cemitério, as vezes tropeçava e era segurado por Carlinhos, o menino negro que ia à missa com os pais de vez em quando, era o mais supersticioso e se benzia toda vez. Para surpresa e alívio de Lucas, após uma manhã enfadonha e cinza, o sol deu o ar da graça na tardinha. Restava saber qual dos amigos chamaria primeiro para brincar naquela sexta-feira 13.
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