silva_verso Silva

Vagando até uma próspera cidade do Reino de Cennet, uma caçadora exilada se depara com terríveis relatos nos quais um horrendo mal está à espreita.


Short Story For over 18 only.

#medieval #326 #magia #wendigo
Short tale
3
5.8k VIEWS
Completed
reading time
AA Share

Aylla

“Preparem-se ó reis, pois suas coroas hão de cair! Quando os gélidos ventos do pavor tocarem suas faces e as trevas cobrirem seus orgulhosos castelos, não haverá valentes nos campos de batalha, os escudos serão despedaçados e as espadas perderão o seu fio. Quando Arghon retornar, a era do tormento e da destruição o seguirão, e por fim, rios de morte irão correr pelas nossas terras!“

Profecias de Ewoud





Vagando por estradas tortuosas entre vilas e castelos, o silêncio era seu companheiro na maior parte do tempo. Embora conversasse com Bhob, que lhe murmurava um relincho aqui e ali. Além de seu fiel alazão branco, comum era chegar-lhe aos ouvidos os calorosos elogios sobre o prestígio de sua linhagem exilada. “Amaldiçoada, bruxa, filha de demônios...” Acostumou-se a tempos com o desprezo, ainda que os lordes do Reino fossem os primeiros a implorar por auxílio quando algo saia do ilusório controle deles. A brisa da manhã embalava levemente seus cabelos escarlates que lhe caiam sobre os ombros. Em sua cinta, a bainha envolvia a Igni Fox, cujo pomo carmesim era uma raposa. Ergueu a cabeça levando o olhar azul-esverdeado para o céu. Observou as nuvens prenunciarem seu ajuntamento. Logo aquele belo azul daria lugar ao cinza. Num galope apressado e um pouco de sorte, Aylla teria uma nova espada de aço em breve. Bastava-lhe finalizar mais algum serviço, garantindo o devido ouro ao ferreiro que conhecera quando partiu de Leif.

― Ouvi dizer que matou um lobisomem numa vila perto daqui... ― Comentou o jovem ferreiro que montava num cavalo cinza pouco atrás dela. Sob um gibão castanho e uma capa esverdeada, os ombros de Hector carregavam uma espada bastarda de empunhadura prateada com um lobo acima. Normalmente o rapaz não falava muito, entretanto, era a primeira vez que uma Legorn pedia seus serviços. A curiosidade lhe falou um pouco mais alto.

― Ouviu certo, matei-o com a minha espada de prata. ― Respondeu-lhe diretamente, embora não estivesse sendo arrogante.

― Não costumo acreditar em tudo que dizem. “Aquele que olhar nos demoníacos olhos de um Legorn cairá morto.” ― Hector emparelhou-se ao alazão e olhou para ela. ― Bom, ainda estou bem vivo. Prefiro acreditar naquilo que vejo. Lamento dizer, mas você não me assusta.

― Tem certeza? Quem não me insulta geralmente sai correndo.

― Pouco me importa se seus olhos são diferentes ou sua reputação, pague o combinado e lhe farei uma boa espada. Admito que julgando pela armadura de couro e essa lâmina que carrega, acho que no mínimo tem habilidade, talvez até um pouco de coragem.

― Não se engane ferreiro, um passo separa a coragem da tolice. Muitos homens do vilarejo morreram num ato estúpido de bravura. Terminaram despedaçados pelo monstro. Se o preguiçoso do Tyrhir tivesse me chamado antes, com certeza teriam menos viúvas e órfãos chorando seus mortos agora.

― Os malditos impostos já são o suficiente para os fazer chorar, Legorn. Não vai demorar muito para criarem uma taxa a cada vez que o rei coçar o traseiro.

― É bem possível. ― Aylla concordou com certo humor que se foi tão rápido quanto surgiu. ― Com o inverno prestes a chegar, muitos aldeões vão precisar comprar grãos, ou rezar para que a colheita seja farta.

― Mesmo os grandes agricultores de Joer estão bem insatisfeitos com a coroa, como se as pragas do verão passado não fossem suficientes... Até ouvi que era uma maldição.

― Se maldições fossem causadas por má administração eu até concordaria.

― E você já viu maldições... de verdade? ― Por um momento, o rapaz esqueceu-se que falava com uma Legorn.

― Tão certo quanto vemos essa estrada, ferreiro. ― Afirmou com convicção. ― Maldições são o meu ganha pão afinal, tento revertê-las ou quando não há escolha, mato os amaldiçoados. Magia de sangue, rituais ou em casos raros, obra de Arghon.

― O tal Lorde das Sombras? Acredita mesmo nisso? ― Pigarreou com um ar de riso. ― Pelo santo aço... vai ver ele foi só um velho louco, nem deve ter mais ossos agora.

― Vivo ou morto, suas sombras ainda vivem neste Reino. Arghon foi o primeiro a praticar a magia de sangue. Sua Ordem Sombria perdeu força após as Grandes Guerras, mas ainda existem poucos seguidores.

― Não quero ofender, mas nunca vi magia alguma além do ferro que é moldado pelo fogo, Legorn. Essas lendas sobre o dragão ancestral, um leão voador dourado e o senhor da escuridão... Admito que eram boas histórias quando era pequeno, hoje não me impressionam. ― O ferreiro parou por um instante, observando o feudo ao leste em que camponeses aravam a terra escura com alguma esperança naquele céu nublado. ― Mas entendo porque muitos ainda acreditam. As pessoas precisam inventar coisas para deixar suas vidas sofridas mais interessantes. Não me admira aquele teatro idiota da capital estar sempre lotado.

― Bom, você não lutou com criaturas amaldiçoadas, então não julgo que duvide da magia. Mas sim, há muita fantasia no meio daquilo que realmente é verdade. Aquela canção do Frango Feiticeiro que corre pelas tavernas, é impossível um animal comum conjurar magia. ― Subitamente, um som das alegres cordas dum alaúde se ouviu atrás deles. Hector praguejou antes mesmo de virar-se. Uma figura conhecida do ferreiro pôs-se a cantar:


Cuidado com a mágica bicada...

e o seu cacarejar!

Este frango não podes cozinhar...

Nem depenar!

Ele tem pena, mas não tem dó...

Ouçam seu cocoricó!

O Frango Feiticeiro não teme o caldeirão, pois é sempre o maior bruxão!

O Frango Feiticeiro não teme o caldeirão, pois é sempre o maior bruxão!


Montado sobre um asno, o homem de bigode ralo e castanho tocou o último acorde. Num gibão acobreado e uma capa cheia de remendos, o bardo prestou uma reverência, como se estivesse diante de uma grande plateia. Baixo para a idade, o tal cantor recebeu uma calorosa pergunta de Hector.

― O que diabos está fazendo aqui Jahir?

― Ora, um poeta precisa seguir os ventos do destino como um aventureiro rumo ao desconhecido. ― Replicou ao ferreiro enfaticamente. ― Não faço ideia do que nos aguarda, mas certamente terei um pouco de inspiração.

...

O galope seguiu-se sob murmúrios e cantoria, graças ao poeta e o vasto repertório de baladas sobre as conquistas do Reino. Para alívio de Hector, alcançaram as terras de Köen antes do orvalho cair sobre suas cabeças. Cruzaram os muros pedregosos que davam entrada para a extensa faixa de terra ocupada por senhores menores, vassalos do Lorde Straus. Este administrava as pendências da região em Silverstone, um antigo castelo erguido pelos anões no Segundo Milênio, cujo rochedo cinza e polido dava-lhe um aspecto prateado. Em suas andanças, Aylla conheceu o tal lorde. Um homem perspicaz vindo do Deserto de Órion, fazendo seu nome como um comerciante modesto, comprando pequenos feudos e expandindo seus empreendimentos até fazer de Köen, antes um principado esquecido, tornar-se uma das principais metrópoles em pouco mais de uma década. Um braço forte para o Rei Lucius Magnus, o qual inclusive recebia alguns conselhos a respeito da economia. Para Hector, Straus era só mais um almofadinha, talvez com um pouco mais de sorte, mas não muito diferente dos outros senhores que ditavam os preços de recursos básicos, além dos inúmeros tributos em nome da coroa. Cereais e produção têxtil faziam a prosperidade de Köen ser conhecida por todo Reino. Saindo da zona comercial, mesmo a periferia com seus casebres mostrava-se mais abastada que a maioria dos povoados. Enquanto os olhos do ferreiro ainda corriam por entre os estandartes dos vassalos para entregar um lote de adagas e ombreiras, Jahir fora o primeiro a desmontar, assobiando alegremente na direção da taverna mais próxima. Hector não questionou, dando-se por satisfeito quanto a inconveniente companhia do poeta e suas cantorias. Aylla por sua vez manteve-se em silêncio, embora mirasse o horizonte ao sul, onde o vilarejo dava acesso para a Floresta Púrpura. Para ela, havia algo estranho, embora não soubesse dizer o quê.

― Eu vou procurar os vassalos e... ― Hector olhou para o lado, e para sua surpresa a Legorn havia sumido. Confuso, o ferreiro apenas recebeu em resposta um relincho zombeteiro de Bhob.

...

Reconheceu aquele odor de longe, algo na Floresta Púrpura a fez estremecer e certamente não eram as flores venenosas que nomeavam a mata. Não era um cheiro qualquer como os fedorentos peixes do mercado ou as típicas fezes dos cavalos ao longo da estrada. Köen emanava um odor fétido, o odor da magia de sangue. Com o capuz negro sobre a cabeça, ela corria pelos telhados com a destreza de um felino. Certamente os senhores de terra não se importariam com um pouco terra nas suas belas coberturas em verniz. Desembainhou a pequena lâmina e em agilidade lançou-se para frente num salto. Rodopiou no ar e virou-se de frente na direção do alvo. Aylla alcançou a amurada rochosa ao flanco esquerdo cravando a adaga na parede, subindo e esgueirando-se até a janela.

Sob o fino linho branco de seu amado condado, bebericava uma taça do agradável tinto de Lótus enquanto sua amante adormecida aninhava-se entre os lençóis. Ainda que prezasse pelas aparências, nunca foi um homem preso a laços morais. Afinal, era um conceito ditado por aqueles que detinham a autoridade. O que outrora era um delito cedo ou tarde seria permitido. Levou a destra ao queixo sob a barba negra. Diante de seus olhos acastanhados o mapa do Reino sobre aquela mesa de carvalho talhado erguia-se me toda a sua extensão. Seus ancestrais sequer poderiam imaginar que um orioniano ganharia tamanha posição em Cennet. Sua pele morena sentia a brisa da manhã adentrar gentilmente no quarto, diferente do escaldante e inóspito deserto de onde viera. Pouco depois, Straus virou-se.

Uma fria lâmina beijava-lhe a garganta. Encarando um olhar distinto e ameaçador, o lorde de Silverstone viu-se novamente diante da Raposa Vermelha.

― Acredito... que tenha... pagado o valor devido por aquela cabeça de morcego.

― O que você fez? O que diabos aconteceu naquela floresta?

― As árvores devem ter crescido, embora eu prefira ver as finanças fazerem o mesmo e... argh! ― Sentiu mais pressão na lâmina, interrompendo sua fala sarcástica.

― Todos têm uma lâmina encostada na garganta, Straus... E uma hora, ela vai abri-la, seja por um acidente, uma doença ou pela mão do outro. A diferença é que você vê essa lâmina. ― Advertiu-lhe a Legorn enquanto a morena sobre a cama despertou-se com um olhar perplexo.

― Um pio... ― Aylla ergueu a mão direita para ela, exibindo algumas brasas por entre os dedos. ― E ele morre aqui mesmo se continuar fazendo-se de tolo. ― Voltou-se para o lorde. ― Foi idiota o bastante para deixar que praticassem magia de sangue aqui.

― Eu chamaria... de erro de cálculo. ― Straus dirigiu-se a mulher. ― Zya, pode se retirar. Não se preocupe querida, e pelo bem de minha vida, não chame os guardas. Terei um diálogo pacífico com minha honorável convidada. ― Ela enrolou-se num lençol e fez como ordenado. Pouco depois, Aylla afastou-lhe a lâmina da garganta. Straus encostou-se na mesa e cruzou os braços sorrindo de soslaio.

― Eu ofereceria uma bebida, mas dada a urgência das circunstâncias, suponho ter que deixar a cortesia de lado.

― Basta dessa conversa fiada. Não me confunda com os lordes que você engana. Diga-me o que aconteceu, claramente.

― Como eu disse antes caçadora, foi um erro de cálculo, algo que não estava nos meus planos. ― Levou a mão até a taça de vidro esmeralda. ― Sempre prezei por manter a paz em benefício do comércio. No entanto, a três anos, um crime grave aconteceu em Köen. Pelo bem da reputação do condado, ocultei do soberano tais eventos... inconvenientes. Numa noite, uma jovem foi levada até a Floresta Púrpura por um grupo de homens, e lá eles a violentaram. Na manhã seguinte ela foi encontrada por um de meus vassalos, morta próximo a um altar de ossos. Vestígios de mordidas marcavam seu corpo além de costelas arrancadas, o que indicava que os assassinos consumiram algumas partes. ― Aylla ficou em silêncio ao passo que um olhar atônito surgia em seu rosto. Straus bebeu todo o conteúdo da taça num só gole antes de prosseguir.

― Mobilizei uma patrulha para encontrar os culpados sem alardear o povo. Quatro homens foram condenados por roubo, direto para a forca. Eles tinham algo em comum: Ossos humanos em suas casas. Uma pequena mentira para manter uma frágil paz.

― Um ritual nefasto, uma magia de sangue sob a invocação de Arghon. Atraíram uma maldição e ela ainda corre nessa região. ― Concluiu a Legorn, voltando-se para janela mirando no horizonte a Floresta Púrpura.

― Para meu azar, sim. Desde aquele dia algo ronda aquela floresta. Um espírito vingativo, um demônio ou que quer que seja... todos que vão lá não voltam. Há um mal em Köen, Legorn. E o que mais me apavora é não saber o que é. A maldita conclusão que estou diante de algo fora do meu controle.

...

Ao entardecer, o sol já rumava para seu esconderijo por entre as nuvens. Após percorrer com os olhos as numerosos flâmulas dos vassalos, não demorou muito para que Hector encontrasse o estandarte de fundo vermelho com um morcego ao centro. Desmontou de Cinzento, ainda mirando o branco castelo feudal. Menor e menos impressionante que Silverstone, ainda que a edificação fosse bem-feita e propícia para os ventos do inverno das próximas quinzenas. Praguejou quando percebera que havia pisado numa bolota de merda no meio daquele barro molhado. Um pouco mais satisfeito por receber o soldo pelo serviço do metal, restava-lhe uma última entrega. Entre os nobres menores os Hymer eram uma família abastada e felizmente podiam pagar um pouco mais pelos luxos do aço, ainda que tal generosidade não valesse tanto frente aos tributos. O velho viúvo Vhar Hymer era conhecido por ser um conciliador entre os vassalos e dado aos livros. Ainda que estivesse longe de usar espadas e elmos, intentava adquirir armaduras e espadas para ornamentar sua solitária casa. Há alguns anos uma doença desconhecida o afastara de suas atividades. Ao contrário dele, Ivyor, seu filho e herdeiro vivia sem preocupações entre bordéis e tavernas. O ferreiro levara consigo um escudo redondo de bronze com o símbolo da Casa em alto relevo. Apresentou-se aos guardas nos portões, exibindo o belo escudo que o lorde havia pedido. Um deles lhe respondeu que o senhor dormia e raramente era visto de dia. Se voltasse a noite poderia tratar dos valores com ele. Sem muito o que fazer quanto ao Hymer, decidiu voltar ao centro sabendo que ficaria mais horas em Köen.

― Pelo cheiro, deve ter pisado numa baita bosta... ― O ferreiro virou-se vendo a Legorn puxar as rédeas, interrompendo seu rumo à Floresta Púrpura.

― Por um momento achei que não ia quere mais que lhe fizesse uma espada. Aliás, como diabos sumiu daquele jeito?

― Quando se treina por anos, entrar e sair sem ser notada não fica tão difícil. Você foi atrás do seu trabalho e eu do meu. Straus pode ser asqueroso, mas ele não mentiu. Há uma maldição aqui. Quanto a espada, se eu não voltar, ao menos vai ter um trabalho a menos na forja. ― A caçadora comenta e o ferreiro ri.

― De acordo. Só que se fosse você, não confiaria na palavra daquele desgraçado. Mas seus negócios não me dizem respeito, não vou opinar mais do que isso. ― Hector voltou o olhar para a mata ao longe e indagou ― Então, o que pretende fazer?

― O que um Legorn faz pra sobreviver: Caçar na escuridão.

...

Serviçais iam e viam em alvoroço, levando comida e bebida para os ávidos clientes. Ouvia-se berros de impaciência e alguns xingamentos enquanto a maioria ocupava a boca empanturrando-se com empadões e hidromel além do disputado guisado de carne. O salão enchia-se com murmúrios e risadas tal como o copo de Jahir transbordava de vinho. Rodeado por serelepes anões que tamborilavam na mesa a cada gole, o poeta declamava versos que faziam o grupo se alegrar fervorosamente.


A bela senhora e seu velho marido...

Tão linda dama jamais mereceria tal castigo!

Pois de certo que o velho lorde

entre os lençóis não tem mais sorte!

Tolice achares que és amado

Teu ouro é o cobiçado...

E eis que agora estes lábios que te mentem de dia

De noite são a minha alegria!


Gargalhadas roucas e desafinadas vieram aos seus ouvidos. Todavia, a algazarra cessou quando um dos vassalos foi tirar-lhe satisfações. Jahir não estava sóbrio, mas logo entendeu que o tal velho queixoso tomara as dores dos seus irreverentes versos. Hector apressou-se, tocando o ombro do velhote.

― Milorde, não se coloque no mesmo nível que esse infeliz. É só um bêbado que poderia receber um chute nas bolas e achar engraçado. ― O ferreiro tentou apaziguar a situação, embora um dos anões tenha testado a hipótese. O lorde voltou para sua mesa pouco depois de ver Jahir no chão gemendo de dor enquanto ouvia os risos de seus companheiros de mesa.

...

Floresta Púrpura

Ao cair da noite o vento sussurrava na copa das árvores, caminhava sobre riachos e tocava-lhe o rosto enquanto adentrava na mata. Em sua canhota, repousava a convicção de todo Caçador. A espada em punho cintilava ao luar por entre passos cautelosos. Maldição... O cheiro da morte enchia suas narinas, ainda que a floresta estivesse bem vívida. Raposas nos arbustos, esquilos nas árvores, grilos e sapos pelos afluentes. Fauna e flora em harmonia, ainda que houvessem troncos cortados aqui e ali. Pétalas violeta coloriam as árvores frutíferas além dos belos frutos de mesma coloração. Comestíveis, ainda que o gosto não fosse dos melhores. Já as flores de Sya eram venenosas, úteis para Aylla produzir toxinas e elixires de acordo com os antigos livros que detestava na infância. As lições do velho Solum voltavam-lhe a mente dum tempo distante, quando era apenas menina travessa na fortaleza de Thantor, o esquecido lar dos Legorn. “Lembre-se do nosso lema, Raposinha. “Das sombras resplandece a luz.” Portanto, levante-se e pegue sua espada. A melhora vem com a prática e a perícia com o tempo.” Aylla tornou-se tão hábil como ele sonhara, talvez até mais. Seguiu o Caminho da Raposa, bailando com a espada e a Antiga Ciência, a qual os leigos chamam de magia elementar. Todavia, em toda sua experiência matando criaturas amaldiçoadas, a Legorn estava ciente do que deveria eliminar. Mas não ali, não em Köen, não obteve nada além de descrições vagas e incertas. O monstro não deixava vestígios, e ninguém sobreviveu para contar história.

Parou em frente a uma árvore, cuja a folhagem púrpura balançava-se graciosamente. Tudo estava muito quieto, quieto demais. Todavia, o cheiro não mentia, ela sabia que estava cada vez mais perto do altar de ossos. E então como um vento ligeiro, o ataque veio de súbito. Aylla disparou, apoiando um pé no tronco pouco antes de saltar para trás, girando no ar como uma hábil dançarina. Sequer havia pousado no solo quando chamas saltaram de sua mão direita até o vulto. Um urro medonho ecoou por toda a floresta. Ao aterrissar, ela finalmente o viu. De pé, pôs-se em guarda diante da alta besta que se erguia com pernas de touro e agitava as grandes mãos humanoides com suas garras. A pelugem negra cobria-lhe todo corpo, sua face nefasta era recoberta com um crânio de cervo e dois chifres lhe pousavam sobre a cabeça.

O Devorador de Almas, Wendigo.” A famosa página do Bestiarius criava vida bem diante dos seus olhos. Diferente de outros monstros, não haviam descrições sobre suas fraquezas ou atributos, apenas um desenho vago baseado em objetos perdidos da Ordem Sombria. Uma lenda entre lendas, uma criatura monstruosa que significava medo; até mesmo para um Legorn.

O monstro logo retomou sua investida. Avançou rapidamente contra ela, intentando arrancar-lhe a cabeça com as garras. A Legorn reagiu, escapou do golpe com uma pirueta para a esquerda. Girou o punho no salto, desferindo um corte profundo no braço da criatura. Mas para seu espanto, não havia sangue no ferimento. E o corte logo tornou a fechar-se como se nada tivesse lhe tocado. Franziu o cenho. A Caçadora compreendeu naquele instante que enfrentava um poder desconhecido. Wendigo rosnava enquanto Aylla erguia a mão direita, lançando lhe mais chamas.

...

Saídos do tumulto, Hector ficou calado enquanto Jahir cambaleava balbuciando alguns versos desconexos ao ser puxado pelo ferreiro. Por um momento arrependeu-se de ter salvado a pele do poeta metido a galanteador. Despachou-o na hospedaria mais barata, com sorte ele poderia fazer poesias sobre o colchão duro ou quem sabe sobre os camundongos locais. Lá fora, Hector observava a lua cheia, recordando-se das lendas idiotas que muitos insistiam em acreditar. “A prateada Loba Fengári, a guardiã que governa a noite.” Ainda assim, ouvir aquelas histórias do seu pai sempre lhe pareciam uma aventura, como qualquer criança acharia. Mas onde estavam todos aqueles poderosos guardiões místicos no Massacre de Vylön? No fim, tal fantasia não pôde salvar ninguém, nem mesmo aqueles que acreditavam. Um som distante, o fez sair de seus devaneios. Uma canção de ninar. Ao longe uma mãe balançava suavemente seu bebê nos braços.


Não saia nesta noite vil

Pois não verás o que te atingiu

Não terás lágrimas para derramar

Quando o mal vier te buscar

Durma bem meu amor, sem nenhum temor

Porque longe está o devorador

Durma bem meu amor, sem nenhum temor

Porque longe está o devorador...


Subitamente, algo cruzou os céus. Um rugido distante e gutural prenunciou o terror. Nas estradas, cidadãos corriam em desespero. Hector olhou para o alto e estremeceu. Asas negras e uma mandíbula ensanguentada desciam até ao povoado. Um morcego do tamanho dum homem emergiu da escuridão para lhes trazer o tormento. Gargantas mordidas e cabeças arrancadas, o sangue de inocentes espalhava-se pelo ar. O ferreiro correu, enquanto suas convicções de realidade ruíam diante de seus olhos e ouvidos. Um pai segurava a filha nos braços quando o morcego pousou diante deles. Pôs-se sobre as duas pernas e rosnou, exibindo as presas em carmesim. Por instinto, Hector desembainhou a espada, mesmo com medo, mesmo sabendo que não poderia vencer. A lâmina prateada cintilava enquanto runas azuladas tomavam forma. Memórias desconhecidas corriam em sua mente. Ergueu a espada, gritou, indo de encontro á criatura sanguinária. Milhares de vozes ecoavam em sua cabeça, homens e mulheres declamavam:

Que se ouça em todo Reino o brandir da minha lâmina. Esta é minha benção e minha maldição: Quando a coragem desfalecer e a morte aterrorizar os homens, quando os bravos caírem e os covardes temerem, meu escudo será o guardião da esperança e minha espada trará o alvorecer. Sou o protetor do Reino para glória de Athon, o cavaleiro de Ilíos, o escudo de Fengári. Eu sou um guerreiro de Cennet na vida e na morte!

...

Wendigo dilacerou o tronco onde a poucos instantes estava a Caçadora. Aylla desviou num mergulho, rolando nas gramíneas para a direita e então contra-atacou. Com as duas mãos envolvendo o pomo, grunhiu, empurrando a lâmina contra o tórax do devorador. A extremidade da espada transpassou a carne, mas não havia coração para ser perfurado. Assustada, a Legorn fitou a face bestial que gritava morte, recebendo um potente golpe do casco no estômago. Voou metros para trás quando suas costas foram violentamente ao encontro do tronco duma árvore. Pôde ouvir algumas costelas quebrando com o impacto. A espada caiu a sua frente. Cuspiu sangue. Ofegante, seu corpo fervia sob os efeitos do uso prolongado das chamas, uma dor terrível vinha-lhe à tona. Já havia usado suas melhores táticas, alternou-se entre a prata e as chamas, mas o maldito continuava a se regenerar. Fincou a lâmina no chão e ergueu-se com um doloroso sorriso vermelho nos lábios. Ela sabia que não lhe restava outro jeito. Uma última tentativa. Se morresse ali, que fosse com sua espada nas mãos, como uma guerreira orgulhosa e uma caçadora, uma Legorn. E novamente o devorador vinha como um touro ensandecido, erguendo seus chifres para a próxima vítima. Aylla fechou os olhos e levantou a lâmina. Firmando seus pés, a Legorn declarou seu ultimato:

Sanctus gladio... DIVINUS IGNIS! ― Chamas tomaram o metal. Um salto e um golpe. A espada flamejante rasgou o ar e o grito de Wendigo ecoou por toda Koën. Brasas consumiam a garganta da besta em agonia. Aylla sentiu as pernas fraquejarem e a vista escurecer. As chamas da raposa cessaram e sob um silêncio sepulcral a Legorn caiu.

Nov. 13, 2021, 2:11 p.m. 1 Report Embed Follow story
5
The End

Meet the author

Silva Alguém que escreve para escapar das garras do tédio.

Comment something

Post!
Wesley Deniel Wesley Deniel
Ah, como tem me fascinado esse universo de Cennet ! Como disse noutra das histórias com outro querido personagem, o rei anão Lörth, é sempre bom fazer uma pausa no horror para entrar numa fantasia tão bem idealizada, bem escrita, com personagens marcantes, diálogos afiados e, claro, essa boa e velha aura de intrigas ! Hoje conheci Aylla e Hector, descobri mais de suas vidas, das cidades... Mergulharei cada vez mais fundo nesse universo, pois seu misticismo me encanta. Ah ! Me fez lembrar muito de The Witcher também, o que é sempre um prazer. Esteja em paz, meu amigo ! Grande abraço. 🙏🏻
July 03, 2022, 05:25
~