investigationman O Marceneiro

Um conto singelo, nascido da forte ligação entre pai e filho --- e de como boas ações podem ter trágicos desfechos.


Short Story All public.

#suspense #misterio #horror #agonia #pesadelo #drama
Short tale
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O Lago de Cromo

“… A meia-estação se fora.

As árvores ganharam uma coloração de bronze,

que brilhou algum tempo e depois desbotou.

Ao término de uma chuva fina e persistente,

em meados de outubro as folhas começaram a cair…”

Stephen King, O Cemitério.


O sol brilhava no céu como uma imensa gema de ovo flutuando na imensidão azul, embora uma brisa atípica nos envolvesse enquanto subíamos a Trilha do Rato Morto até o início da Floresta de Afogados, ziguezagueando animados entre o mato alto e ruidoso.

Petty corria na frente igual aqueles cachorrinhos desembestados que nunca saem de casa, a camiseta vermelha escrita Mamãe Me Ama empapada de suor e as pernas das calças jeans salpicadas de carrapicho, e eu (um tanto gorducho devido à rotina de lanches, refrigerantes e cappuccinos no refeitório do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas), seguia atrás levando a cesta de piqueniques, acompanhando a programação da Bosque dos Querubins FM num radinho Sony amarelo.

— Você está na BDQ, a rádio que toca o seu momento! — anunciava a vinheta, sendo complementada pelo locutor: — E para embalar esta bela manhã de terça-feira de 1989…

Sutilmente os arranjos de Stand By Me se iniciaram, fazendo os versos de Ben E. King ecoarem pelos arredores como uma espécie de trilha sonora debatendo-se pelos recônditos da famigerada Floresta de Afogados.

(…)

Não, não vou ter medo

Oh, eu não vou ter medo

Enquanto você ficar

Ficar comigo


— Devagar, Petty! — gritei, pois o danadinho estava prestes a sumir numa curva do caminho.

— Está vendo, quem manda comer demais?

— Espertinho… duvido você correr… levando isto.

Peter sorriu em seu modo espirituoso de criança arteira, as bochechas salientes e o suor escorrendo pelo rosto engraçadinho parecido com o da mãe, e voltou a correr. Ah, e como meu rapazinho corria! Corria e brincava, pulando atrás de borboletas, espantando passarinhos, recolhendo mamonas e atacando em inimigos imaginários, por vezes empunhando gravetos e fazendo poses, berrando "Pelos poderes de Grayskull. Eu tenho a força!" ou "Thunder, Thunder… Thundercats - Ho! Ela era nosso único filho e devido ao meu emprego e certos problemas de saúde vivíamos afastados numa residência da zona sul paulistana. Diversão ao ar livre era rara e quando a oportunidade surgia Peter se esbaldava.

Lembrar disso fez meus olhos se encherem de lágrimas, mas seguirei o conselho de Ben. E. King:


(…)

Não vou chorar, não vou chorar

Não, eu não vou derramar uma lágrima

Enquanto você ficar

Ficar comigo…


A manhã estava agradável e prosseguimos animados como uma dupla inusitada de velhos amigos, trocando gracejos, vencendo breves percursos de matagal, passando sobre troncos caídos ou minas d'água e coletando um e outro fruto silvestre.

— Olha isso — pedi, mostrando uma frutinha vermelha. — É morango-do-mato.

Peter se aproximou, as mãos cheias de maria-pretinha e amoras do campo, o rosto rechonchudo comicamente lambuzado.

— Vou levar para a mamãe…


(...)

Quando a noite tiver chegado

E a terra estiver escura

E a lua for a única luz que veremos

Não, eu não terei medo.

Desde que você fique.

Fique comigo…


Eram quase dez da manhã, quando consultei meu Casio digital de pulso, após finalmente atravessarmos a Floresta de Afogados, alcançando a extensa clareira flanqueada de figueiras-brancas e eucaliptais — e, ao centro, o lendário Lago de Cromo.

— A água é de ouro, pai! — disse Peter, encantado.

À distância, o sol se avolumava no céu de tal modo que seus raios incidiam feéricos no lençol ondulante d'água, refletindo-se num fulgor cromado em todas as direções. A paisagem era de fato estonteante.

— Ele é mais precioso que isso, Peter — murmurei, passando o braço sobre seus ombros.

Aproximamo-nos aos poucos, o brilho tornando-se tão intenso que tivemos de bloquear os olhos com as mãos. O local em si nada mais tinha de atrativo, algo prosaico como se um trator houvesse escavado um imenso buraco e a natureza se encarregado de enchê-lo de água, decorando suas margens com uma coroa verde de grama. No entanto, era o seu passado de glória que o tornava especial; glória que se fazia presente na memória de muitos adolescentes que viveram em Bosque dos Querubins nos anos 60 e 70, quando a vegetação nos arredores era menos densa e a lagoa recebia afluências do Rio Itatinga ao norte, permitindo nadar e até pescar.

Naqueles dias de sol, em meio às férias ou fins de semana, a gente se encontrava sob o coreto da Praça Chora Menino, lá no centro da cidade, e quase nunca reclamava do longo trajeto a percorrer: era mais de uma hora de caminhada e pouco recordo sobre o que conversávamos, mas sem dúvida era tempo precioso para reforçar a importância de nossa interação física e o apreço à amizade. Que época maravilhosa aquela, estampada em minha mente por flashs de dias inteiros na companhia de amigos que se preocupavam apenas em curtir a liberdade da juventude.

Moradores de cidade grande definitivamente não sabem o quão renovador é se livrar das comodidades cosmopolitas e se embrenhar na natureza —e quem via aquele meu rapazinho tagarelando e se divertindo jamais imaginaria o significado de poder estar naquele lugar.

(…)

Não, eu não terei medo.

Desde que você fique.

Fique comigo…


Contornamos o lago, indo para um ponto de terra batida, sob uma exuberante figueira-branca.

— Pai, tem um monte de nomes aqui.

Peter fez a observação caminhando em volta do tronco, ao passo que eu limpava o chão com os pés para estender a toalha verde de piquenique. No rádio Michael Jackson embalou Bilie Jean, após o locutor anunciar uma possível mudança brusca de temperatura à tarde.

— A gente pode colocar o nosso?

Fui até ele, notando a vasta quantidade de nomes garatujados na superfície da árvore.

— Difícil será achar um lugar para escrever…

Mas encontramos; na verdade, tivemos que escrever "Petty e Papai" numa das grossas raízes que se projetavam do solo — e não foi tarefa fácil.

— O que está fazendo?

Ele fez a pergunta assim que me viu se afastar e retirar a camisa e desabotoar as calças.

— Indo pegar minha recompensa… ou acha que vou deixar aquela banheira gigante dando sopa?… Quem chegar por último beija a bunda do padre!

II

Enquanto relembro os acontecimentos daquele dia, sinto que faltam partes e que outras não se encaixam. Talvez por que ocorreram há muito tempo e certos detalhes se perderam com o arrastar dos anos ou tenham sido inadvertidamente substituídos para anestesiar a dor.

Morei aqui em Bosque dos Querubins até terminar o colegial e, após cursar medicina em São Paulo, pretendia regressar e me estabelecer no C.A.U.S. — Centro de Atendimento a Urgências Sumárias —, onde meu pai era diretor clínico e duas de minhas irmãs pediatra, porém, nem tudo saiu como o planejado: no início do primeiro semestre de residência médica conheci a Pamella, que também fazia especialização em Ortopedia e Traumatologia na USP, e em fins do quarto semestre ela me entregou um envelope em pleno refeitório, contendo um par de pezinhos de um lado e a inscrição Só Abra se estiver preparado para fortes emoções do outro. Abri-o às pressas, as mãos suando, sendo presenteado com a fantástica notícia de que teríamos um bebê. Foi uma festa aquele dia, com amigos que estavam à espreita se aproximando para nos parabenizar com abraços e desejando o melhor para nós.

Entretanto.

Terminantemente haveria mudança de planos, apesar disso éramos jovens e estávamos contentes com a ideia de paternidade, embora complicações tenham surgido desde o princípio: Pamella desenvolvera hipertensão, acarretando pré-eclâmpsia e deslocamento da placenta e com quinze semanas mal podia ir desacompanhada ao banheiro. Seria uma gestação de altíssimo risco, sabíamos, e, através de alguns contatos, o próprio reitor sugeriu que migrássemos para o campus e que ela fosse internada em tempo integral nas dependências do hospital sob os cuidados da faculdade.

Melhor assistência impossível, mas decerto hoje conhecemos e temos mais recursos clínicos que em meados de 1982 — e, quando na vigésima quinta semana Pamella reclamou de ardência e vermelhidão nos olhos, os médicos foram ineficientes em detectar e reverter uma uveíte. Quando o fizeram, havia ainda percentual relevante de cirurgia, porém os riscos ao feto eram grandes e ela preferiu não corrê-los. Pamella perdeu a visão em 35 dias.

A notícia foi devastadora e irremediavelmente ocasionou novos transtornos à gestação: às portas da vigésima sétima semana, resultantes do quadro de eclâmpsia, Pamella passou a sofrer perda de consciência e intensas dores de cabeça, forçando-a a uma cesariana prematura extrema.

Nosso pequeno Peterson (Petty ou Peter como gostávamos de chamá-lo) veio ao mundo com 821 gramas e um leque imenso de disfunções inerentes à prematuridade: problemas cardíacos e respiratórios, má formação dos vasos sanguíneos, cegueira, paralisias. Num apanhado geral, poderíamos ter uma criança que ao longo da vida viveria isolada numa cama e em constante tratamento apenas para manter-se sobrevivendo.

Opressivos e desgastantes, é assim que defino os quatro anos que se seguiram; contudo, não desistimos: lutamos com todas as forças, nos utilizando de todos os recursos possíveis, embora admita que Petty e Pamella fossem os verdadeiros guerreiros e motivadores desta batalha. Os tratamentos eram exorbitantes e, ainda que recebêssemos ajuda financeira de minha família e apoio da faculdade, cheguei a trabalhar 96 horas semanais para garantir que tudo o que poderia ser feito estava sendo feito.

Foi uma fase angustiante, mas faria tudo de novo se preciso fosse, porque não houve recompensa maior que, entre outras coisas, chegar em casa e Peter me chamar para colar figurinhas no álbum que sua mãe havia comprado na banca de jornais da esquina, contando que a ajudara a atravessar a rua e a escolher as notas que seriam entregues ao jornaleiro. Pode parecer um capricho poético do destino, entretanto nosso garoto se desenvolvera sem sequelas, tornando-se a luz dos olhos de Pamella, que, apesar dos esforços, perdera 80% da visão.

Eu verdadeiramente os amava, mas o tipo de devoção que eu via entre eles era incomensurável.

II

Já me perguntei inúmeras vezes o porquê de ter levado Peter àquele passeio e sempre me vem como resposta a lembrança de minha adolescência, quando subíamos em fila a Trilha do Rato Morto, falando sobre desenhos animados, se voltaríamos a tempo de pegar a Sessão da Tarde — ou quem sabe reunir os garotos para jogar taco ou futebol na rua. Nossos pais viviam nos dando bronca para não ir à lagoa devido à distância e à má fama da Floresta de Afogados, mas tínhamos a idade da insensatez e tudo era diversão.

Floresta de afogados.

Existem lendas que se tornam "verdades" e verdades que se tornam lendas; acredito nisso, afinal os mais velhos contam que este nome surgiu após repentino alagamento ocorrido em 1918, — época em que a lagoa recebia afluência do Rio Itatinga e abrigava moradores às suas margens —, matando famílias inteiras e deixando seus corpos dependurados nos galhos das árvores como frutos podres e intumescidos de um nefasto outono.

Dizem que após o incidente o local tornou-se mal-assombrado pelas infelizes almas de mães atormentadas que gritavam por seus filhos, assim como indivíduos que ficavam parados no meio da mata sondando o topo da floresta à procura de algo. Claro que não acreditávamos, embora a Trilha do Rato Morto tenha ganhado tal alcunha por que sempre havia ali um odor forte de carniça, algo muito intenso, como se brotasse das entranhas da terra — e, vez por outra, ouvíamos risadinhas abafadas e passos que sabíamos não ser nossos.

Não sei o motivo, mas enquanto nadávamos naquela manhã, Peter se mostrando à vontade devido às aulas de hidroterapia, me peguei pensando neste assunto, não me atentando à ideia de que, mesmo com o arrastar das horas, éramos os únicos no lago e que os arredores estava sinistramente quieto — e que se houvesse algo ou alguém nos espreitando entre as árvores sequer teríamos percebido.

II

Era quase meio-dia, quando avisei que deveríamos sair, comer algo e descansar. Peter resmungou não estar com fome e que queria continuar na água, entretanto seus olhinhos brilharam ao ver as Seven Boys com geleia de uva e patê de atum que Pamella havia preparado — e após comer algumas com seu Quick de Morango já bocejava, perguntando se podia deitar e dormir um pouco. Lembro-me de olhar em redor: estávamos sob o conforto da figueira e com o sol a pino seria impossível regressar para casa (e, para completar, eu tinha dado plantão na noite anterior e o sono começava a exigir seus honorários), portanto apenas escorei a cabeça em nossos tênis e falei que deitasse em meu peito.

No Sony posto sobre a cesta de piqueniques, Sara Branigan cantava Self Control

Na noite, sem controle

Através da parede algo está quebrando

Vestindo branco enquanto você está andando

Na rua da minha alma…

e lembro-me de apreciar a paisagem: a luminosidade amarela do sol aprontando-se para o início da tarde, o vento criando ondas na superfície do lago e chacoalhando os imensos eucaliptais, estimulando suas folhas ressequidas a despencar como kamikazes rodopiantes em direção ao solo.

E o sono veio tão sorrateiro que jamais consegui me libertar de seus pesadelos.

II

Quem mora em cidade de clima temperado como São Paulo sabe que em determinadas épocas do ano ocorre algo bem inusitado: o dia amanhece quente e ensolarado, cingido de uma brisa gelada que chega a doer no rosto, mas com o espraiar da tarde a temperatura vai cedendo de forma quase antinatural, dando lugar a uma neblina tão baixa e densa que parece termos sido engolidos por um fantasma.

Despertei com o dedilhar friorento dessa neblina eriçando os pelos do meu braço e instintivamente levei a mão onde Peter deveria estar. Nada! Sem nem me dar conta, levantei num salto alucinado, esquadrinhando os arredores, procurando aqui e ali, gritando, rodeando o tronco da figueira, tentando vestir minha calça e camisa, chamando Peter, praguejando… e a única resposta que tive foi o silêncio e a frialdade daquele abraço pálido que envolvia tudo à minha volta.

Consultei meu Casio. 16:52!

Havia dormido demais e no rádio anunciara a queda repentina de temperatura. Aliás, procurei o radinho Sony e ele também tinha sumido. Não me importei com a isso, afinal em breve escureceria — e, se me aguilhoava o peito a ideia de atravessar a Floresta de Afogados na semi-escuridão, sabe-se lá Deus com o quê nos espreitando, quem dirá saber que o breu noturno libertaria seus monstros sem que eu estivesse junto ao meu garoto. Ele só tinha seis anos!

Gritei, chorei, me amaldiçoei, corri em círculos abobalhados, ciente que aquilo não levaria a nada, entretanto, incapaz de me afastar e correr o risco de Peter estar perto de mim, apavorado, encolhido em silêncio num canto próximo, e eu deixá-lo ainda mais desamparado.

Inúmeras possibilidades me tumultuavam os pensamentos e eu bloqueava a mente para o como e o porquê de Peter ter desaparecido. Queria apenas encontrá-lo, nada mais. Foi então que me ocorreu que, tendo acordado e me visto dormindo pesadamente, ele tenha resolvido ir ao lago sozinho. Gelei até o tutano naquele instante, ainda que soubesse que ele praticava hidroterapia desde muito novo, tornando-se excelente nadador. Uma coisa é você acompanhar com os olhos enquanto seu filho atravessa a rua, por exemplo, e outra bem diferente é pensar nos riscos que ele corre ao fazer isso sozinho. E quanto mais eu pensava, mais me desesperava, ondas de terror escalando-me as pernas e as fazendo fraquejar.

Subitamente.

Comecei a captar uma melodia fantasmagórica unida a uma voz sussurrante que dizia:

…Como você pôde me abandonar

Quando eu mais precisei?…

Usando a figueira como referência, constatei que ela só poderia vir do lago e

…Pesadelos na noite

Me disseram que eu perderia a batalha…

desembestei em sua direção, aquela névoa alvacenta lambendo-me o corpo com finas línguas gélidas e mal me permitindo ver um metro adiante.

… Eu definho tanto, eu percebo que o destino

Fracassa sem você…

Não sei o quanto avancei, só recordo do choque inicial e de ser empurrado para frente num salto contorcido e desengonçado, desabando com tanta violência que só não desmaiei por que meus próprios gritos não permitiram: descalço, tropecei numa raiz pontiaguda que se projetava perigosamente, caindo de cara no chão, arrancando cruentas tiras de pele do peito e barriga ao arrastar pelo solo pedregoso.

Levei alguns segundos para erguer a cabeça, desnorteado, logo sentindo o sangue verter do meu rosto numa profusão quente e vertiginosa — e, ao passar a mão, constatei que meu nariz estava quebrado, ao compasso que fragmentos de ossos e dentes comprimiam minha garganta, forçando-me a tossir e expulsá-los junto a uma bola vermelha de muco.

E gritei, liberando de mim um urro capaz de apavorar animais e pássaros nos arredores, e sei disso por que ouvi sons de asas batendo em debandada, meu corpo subitamente experimentando dores semelhantes a múltiplas ferroadas de abelha, enquanto a voz dizia:

… Oh, aqui é escuro e solitário

Deste outro lado, longe de você…

Aos poucos fui girando para o lado, meu joelho esquerdo e pé direito oscilando entre dores e cãibras atordoantes. Sangue empapava meu rosto, mas eu precisava saber o que tinha acontecido, e fui tateando os ferimentos, trêmulo, vislumbrando, enfim, uma lasca de pedra encravada abaixo de minha rótula e, mais adiante, meu dedão num ângulo estranho, a cabeça estropiada. Gritei, acessos de choro e tosse sacudindo convulsivamente meu corpo: era difícil crer que num segundo eu corria a toda velocidade e que, instantes depois, estava literalmente inutilizado ao chão — tais palavras martelando terrores em meus ouvidos como pregos quentes penetrando meus tímpanos:

… Há tanto tempo vagueio pela noite…

… Sinto tanto frio…

Mas não desisti, nunca desistiria, uma mescla de adrenalina e desespero agarrando-me e forçando meu corpo a se arrastar em direção ao lago, a boca destroçada gritando por Peter, o coração latejando num ritmo urgente, tresloucado, à medida aquele maldito manto cor de ossos me enclausurava numa intransponível redoma de aflição.

Meu único pensamento era: se eu, homem feito, estava desesperado, qual seria o estado do meu menino?

II

Lastimavelmente.

Passou-se tempo considerável até que eu chegasse às bordas do lago, permitindo que as mãos negras da noite se alastrassem ainda mais pelo céu — os versos finais de Wuthering Heights, no soprano inconfundível de Kate Bush, ainda ecoando em meus ouvidos:

Sinto tanto frio, deixe-me entrar pela sua janela

Heathcliff, sou eu, Cathy, eu voltei para casa

O desespero nos desnorteia e, a princípio, ao ouvir aquela voz, não me dei conta que se tratava de uma canção tocada pelo radinho Sony em meio à neblina — e que ela me serviu de guia.

Coincidência?

Provisão divina?

Uma maldita anedota do diabo?

Jamais saberei, mas quando a canção cessou, absorvendo e tensionando os arredores num silêncio quase sepulcral, pude ver o radinho amarelo posto religiosamente sobre a camiseta vermelha de Peter, às bordas do negrume do lago, semelhante um sinaleiro ante a tempestade. Aquilo foi terrível e me senti como num elevador descendo rápido demais que, de súbito, pára, lançando meus órgãos internos violentamente contra a cavidade abdominal, forçando a bexiga a libertar um irrepreensível jorro de urina.

Como médico-traumatologista, conheço casos em que pessoas comuns realizaram atos além da compreensão humana para se salvar ou salvar entes queridos. Uma mãe que pulou no terceiro andar em chamas com o filho no colo e apenas quebrou as duas pernas e uma costela, mas salvou a criança. Um indiano que se atracou com o leopardo que atacava sua família, matando-o estrangulado…

E.

Por um momento, senti-me como que impulsionado por uma força que não sei de onde veio, então levantei e dei uma arrancada… caindo igual um fruto apodrecido no chão. Era ingenuidade demais pensar que algo sobre-humano resolveria meu problema, afinal eu sabia o estrago que aquela pedra havia feito em meu joelho.

Tive que me arrastar até a margem, agarrando a camiseta e langorosamente me erguendo para sondar a superfície do lago, as pernas vibrando de dor e os ferimentos encharcados de urina comichando como se insetos tentassem fazer residência dentro deles. Eu procurava com avidez, mas a sensação de elevador socou-o o estômago, quando avistei o corpinho pálido boiando de bruços a uma distância considerável, camadas de névoa pairando sobre ele como que facilitando seu encontro.

Sem pensar, pulei na água desajeitadamente, chocando-se contra o leito irregular e batendo os braços numa euforia alucinada. A água estava muito fria e por mim poderia estar tórrida como as entranhas de Oymyakon ou gélida como o vômito incandescente do Etna, porque eu nadaria para resgatar meu filho.

II

Eram 17:22.

E não tenho como descrever quais mecanismos foram ativados em meu cérebro para exemplificar o que aconteceu a seguir, afinal, numa composição distorcida de realidade e fantasia, brotou-me à mente as noites de sábado em que sentávamos no carpete da sala de estar para assistir Gigantes do Ringue, um dos programas preferidos de Peter. Contudo, desta vez não havia a teatralidade das lutas e nem plateia animada e sim um ringue às escuras com holofotes apontados para o centro, onde o visor agigantado do meu Casio cronometrava em números laranja-luminosos 17:22:49, 50, 51... E havia também a voz grave e sorumbática do locutor:

Caros espectadores, que se faça do silêncio nosso mais alto grito para acompanharmos César à salvação de seu filho Peter. Lembrem-se, ele tem apenas cinco minutos!

17:23:03

Cinco minutos!

Este é o tempo máximo que o cérebro humano suporta sem oxigênio, ainda que acometido de sequelas; entretanto, queria o meu garoto… e nadei, esmurrando a água numa fúria obstinada, sendo engolido pela imparcialidade da temperatura e desorientação do crepúsculo, a perna direita pesando como chumbo e os músculos destreinados se retesando em dores agudas que pareciam rasgar a pele.

17:24:12

Ele está a meio caminho, senhoras e senhores! Mas vê-se que o cansaço drena suas forças.

E drenava.

17:24:30

17:24:49

17:25:06

Mas não fraquejei, a adrenalina dispersa em meu cérebro revestindo-me com cargas extras de energia e fazendo-me avançar até alcançá-lo — aquele letreiro distópico oscilando diante dos meus olhos como um informe infernal cravando em meu peito cada segundo esgotado. Afoito, abracei-o com devoção, virando-o para cima: Peter estava sereno, de olhos fechados e o corpinho ainda quente!

17:25:58

A frialdade da morte não o atingiu, há esperança!

O locutor imaginário parecia extasiado com minha conquista, assim como a silente plateia, e isso me estimulou a nadar de volta o mais rápido possível, cônscio que quanto mais depressa o tirasse da água maior seriam as chances. E nadei.

17:26:09

17:26:32

Nadei com todo empenho, porém estaquei por um instante, drasticamente esgotado por fazê-lo com somente um dos braços e aquele peso morto que era minha perna arrastando-me para o fundo — e descobri que, no aparvalhamento do resgate, perdi o senso de orientação, deslocando-me para o centro do lago, ao invés da margem.

Por Deus! Será o fim?

II

17:27:01

Talvez fosse impressão, mas o corpinho de Peter começava a esfriar… e, no ápice do desespero, remontei a memória do dia em que travei amizade com o Dr. Albert Pazzanese, na época médico-legista em Bosque dos Querubins. É formalidade no âmbito do curso de medicina visitar o IML e conhecer os trâmites do óbito; entretanto, na ocasião ele me esperava emparelhado a uma das mesas de necropsia, tendo à sua frente um indivíduo que morrera afogado após seu veículo colidir e cair numa ribanceira. E Albert me explicou todas as etapas da morte…

17:27:17

O tempo é precioso!

Bloqueei a lembrança e voltei a nadar na direção que julguei correta, a densidade da água parecendo elevar-se devido a câimbras que me agrilhoavam braços e pernas, unidas a violentos espasmos que me pressionavam o plexo solar. É mais comum do que se imagina pretensos salvadores morrerem tentando resgatar vítimas de afogamento… e quer saber de uma coisa? Eu morreria mil vezes se preciso fosse, por isso continuei: gemendo, gritando, respirando e cuspindo água, afundando e emergindo, parando, continuando…

II

17:27:22

Cheguei à margem em plena escuridão, subindo e deitando Peter sob as pedras, desabando ao seu lado como se me tivessem tirado da tomada, a exaustão e os ferimentos chacoalhando violentamente meu corpo. Havia perdido bastante sangue através do ferimento na perna e meu rosto parecia projetar-se intumescido como um pedaço morto de carne pulsante.

17:27:32

Falta pouco, não desista!

O locutor gritou, a plateia de olhos arregalados e respiração suspensa.

17:27:38

Ergui-me, tremendo e chorando, avaliando respiração e respostas de Peter. Nada, absolutamente nada. Afobado, juntei seus braços e pernas e iniciei os procedimentos de reanimação cardiopulmonar, praticando cinco ventilações boca a boca e trinta compressões cardíacas por um bom tempo.

Esta não é tarefa fácil e tentei todas as possibilidades possíveis e admito que um crescente desespero foi me invadindo quando vi que os resultados não eram satisfatórios. Instintivamente comecei a me recriminar, rilhando os dentes e, envolto em devaneios, procurando formas de explicar a Pamella e ao restante da família como pude deixar tamanha tragédia acontecer. Um médico que permitiu a morte do único filho! Por Deus, com isso pode acontecer?! Berrando blasfêmias, amaldiçoei este lugar, ao compasso que fragmentos daquela minha "visita" ao necrotério e as explicações do Dr. Albert passaram a me acossar.

E pensei no velório de Peter. Todos os familiares reunidos, chorando e me olhando como o mais pérfido dos seres humanos.

Por conseguinte, vieram cenas do cortejo fúnebre, pés se arrastando pelas alamedas tumulares, lágrimas doloridas, os contidos desfalecimentos. E chegar diante do retângulo aberto no solo, sob um céu cinzento em prantos, o diminuto caixão lacrado descendo para a bocarra negra da cova. Incomensurável desespero, sensação de infindável desamparo, mais lágrimas e sucessivos desmaios. Ao fim, todos se retirariam, permanecendo tão-somente eu, ignorado e esquecido ao pé da sepultura. E dormiria ali por dias, sem comer ou beber, morrendo física e mentalmente. E neste estágio as explicações do Dr. Albert se tornariam visuais: primeiro o corpinho inchando devido à água podre acumulada e os gases pútridos resultantes da ação de bactérias alojadas no estômago, seu rostinho arroxeado se expandindo numa deformação monstruosa para depois irromper em rachaduras purulentas, os olhinhos antes tão lindos se afundando nas órbitas e dando lugar a cavidades que nunca mais enxergariam a beleza da vida… e eu talvez escavasse a terra para vê-lo mais uma única vez…

Não!

17:27:47

Ele não o salvou.

Sentenciou o locutor, trazendo incontido pranto à plateia, à medida que tudo se apagava.

— Não, não, nãããão! — berrei, abraçando Peter com toda a força que me era permitida, chorando um pranto sufocado, amordaçado sob as amarras do mais plangente horror. Pensei em Pâmela indo e voltando até a frente da casa, em vão procurando com olhos cegos as sombras do nosso retorno. — Me perdoe, me perdoe…

E.

Fui milagrosamente perdoado, quando, de súbito, senti o coraçãozinho ausente de vida recomeçar a bater, trazendo esperança e calor ao corpinho antes frio e que julguei morto.

— Pai, é hora de ir; preciso levar as frutinhas da mamãe — ele falou, despontando em mim as lagrimas mais felizes de minha vida.

II

Agora são 23:48, do dia 28 de fevereiro de 2021 e estou sentado sob a mesma figueira-branca de 1989.

Hoje é uma daquelas noites em que a lua-cheia assemelha-se a um titânico olho raivoso a observar a Floresta de Afogados, tornando suas sombras difusas e fantasmagóricas. Pode parecer loucura minha presença aqui, ainda mais que ao meu lado há uma cruz branca de madeira fincada exatamente onde deitei para dormir naquela fatídica tarde — e nela está escrito o meu nome.

Jamais soube o que realmente houve com Peter e por isso assombro este lugar em busca de explicações. Perdi tudo, deixei que se perdesse, afinal o fardo que sobrecarrega meus ombros ninguém pode aliviar. Meu pequeno completaria 38 anos, 38!, no fim deste mês e, assim como alguém que passa por um evento traumático e é incapaz de superá-lo, constantemente me pego sentado neste ponto, vislumbrando a superfície espelhada da água ao longe e reescrevendo em saudosas páginas mentais bons desfechos para aquele passeio.

Naquela tarde acabei por me transformar numa espécie de assombração viva desta floresta, afinal sucumbi a um trapo de gente que perambula por suas entranhas em busca de redenção pela perda de Peter.



June 15, 2021, 11:22 p.m. 0 Report Embed Follow story
3
The End

Meet the author

O Marceneiro Hoje apenas um autor que, na correria do dia a dia, se propõe a dar voz aos fantasmas que se debatem dentro de nossas mentes.

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