À luz metálica do luar de outubro se passou esta breve e aterrorizante história. Quem a ouviu duvida de sua veracidade, no afã de não considerar tamanho horror como possível aos olhos e ouvidos humanos. Mas bem lá no fundo a alma se retorce em angustiante curiosidade e procura ávida pelo que é inexplicável e sinistro.
Final de tarde de outono. Temperatura ainda amena. Muito agradável a ausência de neve por vários anos, ainda mais para quem vinha de uma região chuvosa e fria. O calor seco do último verão dera lugar a uma brisa reconfortante.
A Srta. Jennins caminhava solitária pelas pradarias próximas à mansão de sua família, os Morgan, imigrantes ingleses e prósperos agricultores do Texas. Já por muitas vezes havia sido advertida a não perambular a sós ao cair da noite, em função dos últimos acontecimentos do lugar, mas a inquietude de seus 19 anos a impedia de agir com a devida prudência.
Gostava de assistir ao pôr-do-sol nos descampados e testemunhar a algazarra dos pássaros em bandos nas últimas réstias de luz diurna. Nestes momentos intimistas podia se despir da rigorosa aristocracia vitoriana de sua época, da qual se sentia prisioneira e tolhida em suas aspirações feministas, que faziam corar as senhoras e causavam a ira dos senhores de escravos sulistas.
Secretamente apoiava à distância os movimentos abolicionistas e não se conformava com o destino imposto às mulheres de sua época, verdadeiras damas em sabedoria e subjugadas em suas vontades. Ainda não sabia como, mas sonhava em migrar para os territórios mais ao norte, onde as pessoas pareciam mais evoluídas e sensíveis às questões humanitárias.
Mas foi durante um destes passeios que, ao se desequilibrar num montículo de pequenas raízes expostas, acabou caindo de uma pequena encosta, desmaiando ao bater com a cabeça por sobre uma raiz mais encorpada. Ali permaneceu inerte até altas horas, quando despertou no início da madrugada, assustada por estranhos sons.
Ruflar de asas de morcegos rente ao seu corpo e o som monótono de grilos, entremeados pelo coaxar de sapos silvestres faziam pano de fundo para uma profusão de grunhidos sonoramente ameaçadores. A jovem sentiu gelar sua espinhela e custou a se lembrar do que havia acontecido. Ainda vacilante, levantou-se, desgarrando-se dos pequenos galhos dos arbustos, que insistiam em aderir às suas vestimentas nada adequadas àquele ambiente.
Já um pouco mais refeita, apesar da intensa dor que martelava o lado direito de sua fronte, caminhou em direção a uma clareira de onde emanavam aqueles sons guturais, semelhantes a uma grotesca voz humanoide. Aproximou-se vagarosamente, movida pelo seu espírito aventureiro ao mesmo tempo que era freada pelo medo do desconhecido.
Tantas vezes ouvira falar de desaparecimentos na propriedade. Muitos escravos haviam simplesmente sumido. Seus pais atribuíam o fato a fugas para as terras nortistas, mas o que se falava nas míseras moradias agregadas à sede da fazenda era bem mais amedrontador.
O que viu então foi estarrecedor: a criatura era enorme, de uma coloração pálida em tom acinzentado, e se movimentava de forma ameaçadora, lentamente, como que à espreita de uma possível presa. Seus olhos eram grandes, amarelados e multifacetados, com fendas felinas acentuando o feroz aspecto de sua face, emoldurada por inúmeras presas denteadas de um marfim intenso, dispostas em várias camadas. As espessas garras curvas que ostentava denunciavam o pesadelo que se abateria quando fossem colocadas em ação. Sua cauda, portentosa em sua origem, afilava-se progressivamente e parecia revestida por formações semelhantes a escamas. O efeito final transmitia a impressão de uma mortífera lança viva, a serpentear em busca de uma pobre criatura que cruzasse seu caminho.
Uma máquina mortífera, resultado de uma desconhecida evolução com um único propósito: o de matar e estraçalhar...
Do interior da mata no entorno da clareira um cheiro acre emergia; qual não foi o misto de horror e repulsa que se apoderou da jovem donzela ao vislumbrar inúmeras ossadas humanas, espalhadas por toda a área próxima. A pobre então caiu em si e percebeu o horror em que havia se metido. Imediatamente deitou-se por sobre a relva e contendo o choro, reviu num relance toda a história de sua ainda curta vida.
Sua formação luterana a havia ensinado sobre espíritos dotados de grande poder, oriundos do inferno e inimigos implacáveis de Deus. Certamente estava diante de um deles, convertido àquela forma medonha. Sim, o que tinha acabado de presenciar jamais seria deste mundo. Aliás, um mundo tão injusto e desigual, onde imperava a devassidão e a exploração hedionda de mão-de-obra, talvez não merecesse outro destino.
Almas corrompidas e corrompedoras estariam talvez sendo recrutadas a engrossar as hordas das profundezas. O arauto da macabra vingança espreitava a poucas centenas de metros dali, onde a jovem se recolhia ao seu desespero.
Foi quando uma lufada de vento eriçou seus belos cabelos e soprou em direção à besta-fera, a qual subitamente voltou-se em direção à fonte daquele odor humano. A senhorita Jennins não teve tempo de esboçar qualquer reação...
Em vão as buscas pela jovem Morgan desaparecida se estenderam por vários dias. Todos ali sofreram terrivelmente com mais uma, entre tantas outras tragédias que recentemente haviam assolado o amaldiçoado lugarejo.
Moradores campesinos de regiões interioranas do sul do Texas ainda hoje carregam consigo as histórias contadas de geração em geração, herdadas de seus antepassados, que se referiam aos gritos de horror explícito e misteriosos desaparecimentos que assombraram as famílias de imigrantes do século XVIII. Alguns atribuíam os acontecimentos a disputas territoriais entre famílias em litígio; outros aos embates abolicionistas. Mas muito se falava sobre aparições demoníacas. O fato é que esses relatos já haviam tomado corpo em outras épocas, sempre cercados pelo mesmo tom macabro.
No Texas tais histórias ainda são contadas e ainda hoje assustam. Estão enraizadas no imaginário popular. A ameaça ainda é palpável, pois germina na mente fértil, transmitidas de pai para filho, num eterno retorno de sobressaltos. Ficção, crendice, fantasia ou realidade... O certo é que o medo acompanha e estimula a natureza humana, desde o início dos tempos, passando pela agonia dos imigrantes texanos.
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