melpomene Melpomene Arinne

Douglas e Isaac se conhecem de outros caminhos, numa época que a pessoas como eles não direito a nada além do silêncio. “Amigos de armário”, pegos por seus medos na curva mais acentuada da vida.


Post-apocalyptic All public.

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One-Shot - Special Needs



O barulho de fora parecia abafado ali em cima, toda situação lembrava um pouco anos que pareciam distantes e mais distantes na memória dos dois. Eles tinham se esgueirado para os andares superiores, enquanto os outros convidados pareciam bêbados demais para se importar. O mais novo ficou um tempo parado na porta da varanda da biblioteca naquele andar, recuperando o fôlego. Com a mão no peito riu da situação, quando era mais jovem suportava mais que alguns lances de escadas subidos as pressas. Ele caminhou para a área aberta, ouvindo os passos atrás de si. Segurou o peitoril, observando em silêncio o céu escuro se misturando as vozes e ao som vindos da festa abaixo deles. Ele se manteve ali por um momento, sentindo o vento gelado daquela noite, pouco depois se acomodou no chão, as pernas entre as grandes e um cigarro acesso nas mãos.


Douglas se juntou a ele pouco depois, atento a cada movimento do rapaz, cuja a mente custava conceber a ideia de não ser mais o garoto do centro oeste e fugas além do porão do colégio.


Eles não tinham trocado uma palavra. Fazia tanto tempo que nenhum dos dois pensou como reagiriam estado um na presença do outro novamente. Isaac seria sincero ao confessar a certeza de que não se veriam nunca mais. Um dia um deles partiria e outro receberia a noticia por um de seus velhos amigos e tudo o que um dia foram seria enterrado com eles.


Eles dividiram alguns cigarros num estranho silêncio, tão cumplices quanto eram no passado. Douglas sentia-se estupido como antes por não poder desviar sua atenção do menor. Pelo menos naquele momento ele sabia qual era sua reação de merda, enquanto Isaac parecia relaxado, ele se sentia tenso, como se qualquer movimento pudesse leva-lo a um colapso e então ele não poderia resistir ao impulso de saber se o beijo deles ainda era o mesmo.


Não se deram conta do tempo, parecia leve e de qualquer forma era irrelevante se importar naquele momento. Isaac encostou o rosto nas barras, sentindo a superfície gelada contra a pele. Ele olhou para baixo e então para os céus, parecia refletir sobre algo. Douglas notou a mudança sutil. Engoliu seco, de repente parecia agitado e nervoso, atingido pela melancolia a sua volta.


Isaac ainda tinha a expressão suave. Se outra pessoa olhasse para ele, ali, de olhos fechados concordaria que nada naquele “encontro inusitado” parecia perturbá-lo. Ao contrario de Douglas que estava sobre a beira desde o momento que o viu, ao chegar na festa. Ele leu seu sorriso, e sua forma descontraída e os olhos que nunca o traíram. A pele escura que parecia mais suave do que ele poderia lembrar em verões passados, tão deslumbrante quanto ele pensou que Isaac seria depois da adolescência.


Ele paralisou antes de ser recebido com sorrisos e abraços de seus antigos colegas, mesmo que ninguém tivesse notado seu breve estado catatônico ele esperou não se repetir, pois sabia que ignorar Isaac durante toda a noite era uma atitude inconcebivelmente imatura. Ele foi lançado para fora daquilo quando, em um momento seus olhares se encontraram entre as outras pessoas. Não foi necessária uma aproximação publica depois do sorriso sugestivo do rapaz, enquanto o mesmo se afastava em direção as escadas. Douglas o seguiu, era o estupido menino de 15 anos outra vez.


Então ali estava ele, olhando para um rosto completamente diferente do que ele costumava lembrar, mas os olhos...Os olhos eram os mesmos.


— Você se lembra quando costumávamos acreditar? — ele perguntou. O sorriso que poderia convencer Douglas de que a terra era quadrada, que eles poderiam dar a volta ao mundo e conhecer toda beleza de um mundo em guerra e de que ficariam juntos para sempre.


Ele queria se ofender e ficar tão chateado que toda chateação viraria raiva e ele faria uma cena. Teriam uma discussão em que terminariam deitados e ofegantes sobre o piso polido, ou qualquer outra situação que tivesse o mesmo fim, mas era o tipo de coisa que acontecia nos filmes dos anos 2000 e era uma coisa estranha para se desejar na vida real, porque as coisas não funcionavam daquele jeito.


Nenhum dos dois tinha o direito de se chatear. Foi uma escolha dele ir com a resistência e uma escolha de Isaac não ir.


Douglas suspirou, sem poder disfarçar o quanto aquilo ainda o afetava e estava por toda parte nele. Ele claramente lembrava da última vez que estiveram juntos, talvez não de todas as vezes, mas a primeira e a última estavam acessas em sua memória. E pelo tempo em que estiveram juntos, compartilhando o “conforto” do mesmo armário, ele sabia que também eram lembranças bem vivas para Isaac.


Ele gostava de pensar que em algum ponto de todo aquele colapso global, enquanto a natureza tomava de volta um espaço que era seu por direito, na grande São Paulo ele e Isaac estavam destinados a se encontrar. Não que muita gente acreditasse em almas gêmeas naqueles dias, não que acreditassem em muita coisa, ainda mais algo bom. Ainda mais que almas gêmeas podiam ser feitas do mesmo sexo, mas ele acreditava que aquela era a realidade de ambos.


Em 2034, no Brasil, os governantes tinham excluído das leis todo e qualquer direito das minorias com um discurso barato que dizia “Somos todos iguais”, dando margem para atos preconceituosos, misóginos e elitistas. Diversos grupos sofreram massacres que não eram vistos desde a 2° guerra mundial. Isaac tinha 14 anos na época, Douglas faria 15 no fim daquele ano. Eles estudavam na mesma instituição desde pequenos, mas não tinham se encontrado antes.


Aconteceu naquele mesmo ano, no verão, quando os alunos do colégio das freiras São José “fugiram” para o outro lado da cidade, para a famosa “Lagoa dos Mortos” um local formado a partir de um abalo sísmico ocorrido 10 anos antes. O nome foi dado devido a quantidade de vítimas mortas na tragédia. Muitas explicações surgiram depois da tragédia, mas a verdade é que ninguém soube explicar como aquilo originou a lagoa, visto que estudos comprovavam a inexistência de lençóis freáticos, ou outras fontes naturais de água naquela região. Aquele lugar se tornou o refugio de alguns jovens que ainda se permitiam “sonhar” em dias como aqueles, principalmente os pirralhos que estavam crescendo e sabiam o que teriam de enfrentar pela frente.

A lagoa dos mortos não foi o único lugar que surgiu após um evento natural. Mudanças climáticas e atmosféricas trouxeram para o Brasil cataclismas que até então eram vistos apenas em países estrangeiros. Douglas tinha 7 anos quando a inundação do Rio Tietê destruiu a usina hidrelétrica engenheiro Sousa Dias e varreu grande parte de São Paulo do mapa, uma região atualmente tomada pelo rio recuperado através do reflorestamento natural.


A paisagem daquela cidade era muito diferente do que costumava ser. Grande parte dos prédios tinham sido abandonados diante dos desastres naturais e a situação econômica catastrófica do país. Quem não abandonou a cidade se refugiou no interior, ou se acostumou a nova realidade em que eles eram os visitantes em prédios e ruas tomados pela natureza. A energia elétrica era produzida através de placa solares e geradores eólicos, com o pouco que sobrara da tecnologia para se aproveitar e eram destinadas a atividades prioritárias como hospitais e colégios.


Mesmo com a ajuda dos países desenvolvidos, não era como se o Brasil estivesse vivendo uma realidade diferente do resto do mundo. Havia uma mudança global que todos temiam, não queriam acreditar, mas não podiam evitar. Enquanto o mundo mudava lá fora, Douglas sabia que algo nele seguia o mesmo curso, e quando ele e Isaac se encontraram na lagoa, naquela tarde de verão ele soube que não era o único.


A aproximação entre eles foi instantânea, natural. Para qualquer um eles eram apenas amigos, mas quando os boatos da resistência continuaram cada vez mais fortes suas famílias decidiram que amizade entre garotos não era saudável para o momento que o Brasil enfrentava. De uma maneira dolorosa eles entendiam, todos sabiam o que acontecia com as minorias naquele país. A terra que abraçava a todos no passado, não acolhia mais ninguém.


Eles estavam mais cientes das mortes a cada ano que envelheciam. Era assustador o mundo que conheciam se desmanchando para uma realidade que alimentava tantos temores. Não foi o suficiente para impedir que se apaixonassem e a lagoa dos mortos foi testemunha de todo amor e toda descoberta por muito tempo. Enquanto as ruinas da cidade acobertavam os dois, ela assistiu ao primeiro beijo, tocou seus corpos na primeira vez, e se misturou a suas lágrimas em momentos de conflito e solidão.


Douglas gentilmente afastou o rosto de Isaac das grades, e ele deixou, inclinou-se para as mãos do mais velho. Sentiu tanta falta, precisou tantas vezes daquele toque...Não seria estupido, não naquela noite.


Em 2042 quando os boatos sobre a resistência deixam de ser apenas boatos Douglas decidiu que largaria a faculdade para se juntar aos movimentos que viam crescendo e se fortalecendo em varias cidades. Ele se juntou ao grupo de resistência em São Paulo e Isaac o acompanhou por muito tempo, até a primeira morte. Ele ainda lembrava de como tinham sido atacados e Douglas ficou desaparecido por uma semana, corpos tinha sido recolhido nos principais pontos de conflito e cada um que não era Douglas se tornava um alivio e uma dor para carregar. 11 de seus amigos estavam mortos, 11 deles foram cruelmente assassinados e quando Douglas voltou ao local em que aconteciam as reuniões Isaac soube que era muito para lidar. Douglas partiria com os sobreviventes para se unir a um grupo maior, mais cedo ou mais tarde ele teria que escolher e sabia disso.


Enquanto o mais velho não parecia abalado pelo que acontecera, e sim mais forte e decidido a lutar, Isaac ainda acordava atormentado durante a noite, porque em seus sonhos eles continuavam morrendo. Ele queria se afastar, queria ir para qualquer lugar esquecido por deus e passar o resto de suas vidas sem precisar sacrificar a vida de mais alguém por liberdade, justiça e direitos que deveriam existir sem todo aquele sangue.


Douglas escolheu a resistência, Isaac não. Eles nunca imaginariam se afastar por aquilo. Seus medos antes da revolução eram outros, que tinha como principal objetivo não serem descobertos.


“— Se um dia você se cansar disso, se cansar de man... —


— Isso não vai acontecer Isaac...


— Se um dia acontecer. Só me escuta. Promete que vai ser sincero comigo. Se um dia você se cansar de manter esse segredo e quiser alguém para andar de mãos dadas em público, ter uma família, um lugar onde você não vai precisar se esconder. Se um dia se cansar de mim, de tudo, você vai me dizer? Por favor...


— Isaac eu te amo e...


— Então promete.


— Eu prometo.”


— Eu me lembro — ele disse, ambos envoltos num universo só deles. A festa a muito esquecida. Ali, naquele momento eles eram dois garotos no armário.


O beijo foi suave e bem recebido pelo menor, ele podia sentir o rosto molhado e mãos tremulas. 2054, 12 anos depois e eles lembravam.


O calor de Douglas ainda era acolhedor como ele lembrava, suas mãos ainda eram macias e quentes, e o mundo deles ainda era seguro.


— E se não for nessa vida, haverá uma em que não precisaremos nos esconder — ele disse, secando o rosto do menor sem se afastar.


Novamente seus lábios se tocaram, estavam agarrados aquele momento. Eram apenas respirações e uma dolorosa saudade. Eles voltaram a se encarar, eram cumplices.


Ficaremos juntos, eu prometo.



Feb. 17, 2021, 7:18 p.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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Melpomene Arinne ⚡💔 sad but lovely💔⚡

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