jcgray J.C. Gray

Se você tivesse o poder de tocar e sentir a memória das coisas, o que gostaria de ver? Este é um conto em homenagem ao nosso Museu Nacional


Short Story Not for children under 13.

#museu-nacional #incendio #memória #memórias #museu
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A memória das coisas

Desde muito criança eu sabia que era diferente. Eu sentia e via coisas que ninguém mais podia ver.

Muitos insistiam que não passava de uma invenção, ou uma criatividade muito aflorada. Apenas minha querida avó, com toda a calma do mundo, dizia que eu tinha um dom: eu era capaz de ver as memórias das coisas.

É, eu sei, parece loucura. Afinal, como um objeto pode ter memória?

Todo objeto tem suas memórias. Pode ter pertencido a alguém, ou sido usado para o bem ou para o mal. Isso deixa marcas nas coisas, e as mais importantes passam a fazer parte da essência dele.

Eu era criança da primeira vez que fui a um museu e quase enlouqueci. Minha mente foi baleada por uma confusão de tantas memórias que eu, sem controlar meu dom, não conseguia compreender.

Demorei muito até conseguir voltar a um museu, e foi com minha avó que consegui.

Lembro como se fosse hoje: era meu aniversário de dez anos, e minha avó ia me levar ao zoológico. Eu mal podia esperar para ver os animais!

A Quinta da Boa Vista parecia ainda maior aos meus encantados olhos infantis. Fiz minha avó comprar um balão flutuante em formato de peixe e um macaquinho de pelúcia com um vendedor no local. O sorvete que eu tomava derretia com o calor e sujava minha mão enquanto andávamos na direção da entrada do zoológico e, do nada, eu simplesmente parei.

Eu sentia um chamado forte dentro de mim, quando percebi, já subia as escadas para os jardins do paço que se tornara o museu. Ao meu lado, vi um menino com roupas pomposas descer ao meu lado às pressas e se esconder atrás de uma das paredes laterais. Em seguida, uma moça negra de saias longas e avental passava depressa, seguindo reto sem nem ver o menino que ria.

— Você viu isso, vó? — perguntei, inocente. Mas, ao olhar novamente, não havia ninguém lá. Nem mulher, nem menino.

O choque de realidade foi tão grande que soltei meu balão, que voou sem rumo para o céu. Anos antes eu certamente choraria pelo balão, que provavelmente teria um triste fim preso ao teto do meu quarto até murchar em poucos dias.

— Não se preocupe, eu compro outro! — Ao meu lado, minha avó sorriu e afagou meus cabelos. Eu olhei para frente, o museu me chamava. Quantas lembranças teria para descobrir?

— Vó, podemos entrar?

— Acho que estamos prontos para conhecer as outras memórias do museu, não?

Até hoje eu não tenho certeza se minha avó via o mesmo que eu ou só tentava me fazer sentir um pouco normal.

Corri pelos jardins até a entrada do Paço de São Cristóvão. A ansiedade para conhecer o que tudo aquilo tinha para me contar até me fez esquecer do meu aniversário.

A primeira coisa que vi foi o enorme bloco de ferro e níquel na sala ao lado da entrada. O meteorito Bendegó me atraiu como um ímã, senti sua energia pulsar como se quisesse me mostrar algo: calor intenso, alta velocidade e o som de impacto. Quase caí no chão naquele bombardeio de sensações. Porém, ao contrário da outra vez, eu amei e agora queria mais.

Fósseis de preguiças gigantes que me levaram de volta à idade do gelo, e alguns fósseis de dinossauro que me levaram apenas a processos de molde por serem réplicas.

Pude sentir e ver como viviam nossos antepassados de espécies, e admito, criei um carinho especial por Luzia. Desejei que todos pudessem ter a experiência que vivi, olhando aquele crânio tão antigo, cheio de coisas para contar sem ter quem lhe ouvisse.

Senti as pedras sendo talhadas em pontas de lanças e a dor dos animais empalhados enquanto eram mortos. Revivi marcos das vidas de pessoas que hoje são múmias, conheci segredos de tribos indígenas e senti a dor da colonização dos povos africanos, marcada profundamente em cada um de seus itens.

Descobri como era viver em Pompeia e no Antigo Egito e vi perfeitamente o amor e carinho que a Imperatriz Teresa Cristina e dom Pedro II possuíam por esses povos e culturas. Inclusive, descobri que era ele o menino brincando de esconder nas escadas. Cada parede daquelas salas carregava tantas histórias da Família Real que desejei nunca mais sair dali.

E, de certa forma, tornei esse sonho uma realidade: me formei em Antropologia e não desisti até ser parte do corpo de funcionários do museu.

Naquela fatídica noite de 2 de setembro, eu assistia com aflição ao meu amado museu queimar. Como tantos outros que trabalhavam ali, tentávamos, contra as ordens dos bombeiros, salvar o que podíamos.

Aguentamos o calor insuportável sem nem sentir, anestesiados pelo choque.

Era o trabalho de nossas vidas que queimava ali., e só por isso já justificava o nosso desespero. Mas para mim era pior: eram milhares de itens que se perdiam, milhões de memórias consumidas pelo fogo, e tantas outras que jamais se formariam.

Quando o retiramos o que foi possível, eu desabei. Não consegui conter as lágrimas pelo silêncio da minha mente. Agora só havia um som: o crepitar do fogo. Não conseguia nem ouvir as sirenes e o tumulto à minha volta. O fogo era hipnotizante, e nossa perda, incalculável.

Pela manhã, a fachada seguia de pé, entre escombros e fuligem. O cheiro forte de queimado não sairia tão cedo.

Era difícil passar pelo que um dia fora a porta, e ver o estado em que tudo se encontrava. Especialmente cada vez que minha mente me trazia imagens de tudo em seu devido lugar, como estava no dia anterior.

Os bombeiros ainda não permitiam que fôssemos à frente. Cada um de nós preocupado com o que poderíamos salvar. Será que Luzia havia “sobrevivido” mais uma vez?

Andei lentamente entre os escombros no hall de entrada, no chão encontrei um caco. A memória que trouxe me fez chorar. Fogo. Tão forte e intenso que pude sentir a ardência queimado na minha mão, e por reflexo o soltei.

Memórias traumáticas ainda são memórias.

Olhei para minha frente pelo arco que levava à sala ao lado. A primeira peça que conheci do museu, o velho Bendegó, permanecia de pé, como se estivesse ali para nos trazer esperanças. Para me trazer esperança.

O que era um incêndio perto da sua entrada na atmosfera? Ali estava o meteorito para me lembrar que nem mesmo o fogo é capaz de destruir memórias. Ao lado dele, minha avó. Exatamente do jeito que me lembrava aos meus dez anos.

Uma memória dessas naquela hora só me abalou mais. Já tinha tempo desde que um câncer a havia tirado de nós. Porém, ela levou a mão ao meu rosto e secou minhas lágrimas como sempre fazia em vida.

— Não chore, minha criança. Vamos sempre viver enquanto você lembrar de nós!

Suspirei, tentando engolir o choro. Mas antes que eu pudesse responder ou falar qualquer coisa, não havia mais nada.

E foi em meio ao cenário pintado de cinza pela fúria das chamas que percebi que não era preciso o meu dom para resgatar o que foi perdido.

Cada um daqueles objetos agora vive em nossas lembranças. E cabe a nós resgatar a memória das coisas.




Nota da Autora:

Este é um conto in memoriam do nosso Museu Nacional, que foi destruido por um incendio em 2 de setembro de 2018

Feb. 7, 2021, 2:44 a.m. 1 Report Embed Follow story
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The End

Meet the author

J.C. Gray Caos organizado em forma de escritora. Louca do planejamento e leitora compulsiva, curiosa por natureza. Amante de musicais e nunca satisfeita. Sempre em busca de mais conhecimento, seja por meio de cursos, pesquisas, ou as vezes se encontrando as 4 horas da manhã lendo sobre a Babilônia ou buracos negros na Wikipédia.

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Alexis Rodrigues Alexis Rodrigues
Olá, J.C.! Tudo bem? Meu nome é Alexis, do Time de Verificação, e estou aqui para lhe parabenizar pela verificação da sua história! Gostaria de começar dizendo que o tema da sua one-shot foi o que mais me chamou a atenção, pois remete a uma tragédia nacional sem chance de remediação. A perda do nosso museu, e todas as coisas que estavam lá dentro, não pode ser devidamente expressada em palavras, mas, ainda assim, você o fez de forma tocante, mesclando esse tema tão triste com sua própria ideia, a de a personagem-narradora ser capaz de ver a memória dos objetos. Essa mistura por si só já é fascinante, mas vamos analisar por partes. Diferente da maioria das histórias que vemos, onde os personagens são lentamente tragados para um universo sobrenatural, aqui a personagem sabe, desde sempre, que é diferente e é honesta sobre isso, ela não esconde dos outros. Naturalmente, a reação das pessoas é a de tentar normalizar a situação e dizer que ela apenas tem uma imaginação aflorada, mas a reação da personagem frente a isso é o que me chamou a atenção: ela não duvidou de sua capacidade de forma alguma, ela sabia o que estava vendo. E o melhor disso tudo é que ela tem o apoio de sua avó, quem afirma que aquilo se tratava de um dom. Uma construção enxuta, direto ao ponto. A personagem segue explicando como seu dom funciona, o que logo nos deixa curiosos, afinal, seria ela capaz de ver a memória de absolutamente tudo? A resposta, é claro, vem quando ela relata sua visita ao museu, onde é bombardeada por memórias dos objetos lá presentes, nos conduzindo brevemente por algumas das histórias mais marcantes. Seu carinho por Luzia, nossa antepassada distante, foi a outra coisa que mais me chamou a atenção. Gosto de pensar que se todos nós tivéssemos o dom da personagem, o mundo teria mais respeito por sua história, e foi esse o motivo pelo qual a sua história me tocou tanto. Anos depois, o mundo não aprendeu com nada. Torçamos para que isso mude. Sobre sua escrita, não notei erros de pontuação ou acentuação. Seu ritmo é rápido, escrito de forma simples, mas intimista, nos conduzindo pelas emoções da personagem. O único defeito dessa one-shot é que ela acaba. Muito obrigada por essa história <3 Espero ver mais de suas histórias por aqui <3
September 19, 2021, 02:49
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