antes de tudo, preciso dizer que esse texto saiu de controle enquanto eu estava escrevendo ele. eu pretendia fazer um conto sobre uma história completamente diferente, uma que fosse feliz, mas meu estado psicológico não se encontra em seus melhores dias. eu precisei me segurar para não ter uma crise de choro com o desespero que eu senti enquanto escrevia esse conto. isso significa que aqui tem gatilhos (morte de entes queridos, enfermidade, guerra). se você, assim como eu, não está bem emocionalmente, eu recomendo que não leia. pode ser que não te afete nem um pouco, pode ser que te afete muito, então eu não recomendo.
uma musiquinha pra acompanhar.
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Saudade: sentimento nostálgico causado pela ausência de algo, de alguém, de um lugar ou pela vontade de reviver experiências, situações ou momentos já passados.
A gente costumava velar os nossos mortos.
A gente costumava velá-los depois de lavá-los e vesti-los. Rezávamos por eles ou pedíamos a algum sacerdote que assim o fizesse.
A gente tinha tempo pra se despedir deles, de sofrer, de viver o luto e superá-lo, seguir em frente.
Sim, a gente costumava...
Mas desde que o vírus se espalhou, desenvolveu novas mutações uma atrás da outra, nosso direito ao luto sumiu.
Entendo que talvez a gente tivesse culpa nisso, e quando digo a gente, não digo todo mundo. Essa culpa eu não carrego, eu fiz o que podia, mesmo que não fosse muito. A humanidade não é perfeita, mas eu pensei que depois de tantos milhões de mortos, as pessoas iriam entender, iriam aprender.
Eu fui ingênua pra caralho.
O vírus era só uma desculpa que os governos mundiais precisavam, mas, como sempre, tudo no Brasil sempre piora muito.
Primeiro algumas leis foram mudadas no país. Isso não foi feito às escondidas, não. Foi bem na nossa cara e ninguém fez nada. Depois alguns projetos começaram a ganhar força, a construção de uma bomba atômica própria do país, algo que eu ainda não entendo como conseguiu acontecer.
E é claro, o maldito presidente tinha que declarar guerra aos inimigos de seus aliados.
‘‘Quando ele fizer merda, a gente tira ele do poder’’.
Hm, certo. Centenas de milhares morrerem por um vírus e outras centenas de milhares serem enviados para lutar contra países com os quais nunca tivemos problemas políticos antes não era o suficiente? Cacete, o que mais seria preciso?!
Logo a gente começou a ter problemas muito mais sérios a nível nacional, obviamente. Rios secando, matas queimando espontaneamente com ainda mais frequência, poluição da pouca água doce que tínhamos...
Obviamente, nosso presidente era um genocida. Ele queria nos matar, ele ria de nós. A gente avisou que daria merda e ninguém levou a gente a sério.
Até o momento em que outros países que nos cercavam ameaçaram nos atacar.
Ah, a ironia! Um país como o nosso querido Brasil, que cuidava mal de sua própria população e que tratava de forma ainda pior refugiados que fugiam de outros países próximos, logo percebeu que sua população estava debandando.
Óbvio, ninguém queria morrer.
Eu e minha família, todos do Amazonas, estávamos financeiramente fodidos demais pra conseguir fugir para a Venezuela. Quem não tem o dinheiro do pão não tem dinheiro pra pagar uma passagem. Que escolha a gente tinha, a não ser permanecer em casa?
E assim ficamos.
Todos que podem estão fugindo. Os ricos estão ilegalmente fugindo para a Europa, como é de se esperar, ou pedindo asilo político, ou qualquer coisa do gênero.
Mas a gente, que é pobre, sempre se fode. Mesmo que grupos de resistência se unam e se ajudem, sempre há alguma coisa que gere discórdia, sempre há conflitos com a polícia ou com os militares.
Eu acompanho as notícias pelo celular, como tenho feito desde o começo. As coisas não dão sinais de melhora.
Encaro o teto do quarto, deitada em nosso colchão fino e manchado. O gesso azul do teto está descascando e cai um pouco mais cada vez que chove.
No quarto ao lado, meu marido e meu sogro estão em decomposição, mas ninguém virá aqui para buscar os corpos. Eles não são prioridade.
Eu abri as portas de casa há muito tempo para deixar que as minhas duas cachorras e meus cinco gatos decidam se querem ir ou ficar, pois não temos ração e a única ajuda financeira que eu tinha foi cortada. As duas ficaram, mas eu sei que é uma questão de tempo até que elas arrombem a porta do outro quarto para se alimentar da carne disposta ali. Eu já não tenho forças para brigar com ninguém, que dirá com a fome delas.
A gente costumava velar os nossos mortos.
A gente costumava velá-los depois de lavá-los e vesti-los. Rezávamos por eles ou pedíamos a algum sacerdote que assim o fizesse.
A gente tinha tempo pra se despedir deles, de sofrer, de viver o luto e superá-lo, seguir em frente.
Sim, a gente costumava...
Mas desde que o vírus se espalhou, desenvolveu novas mutações uma atrás da outra, nosso direito ao luto sumiu. Eu não posso lavá-los e velá-los. O terreno é pequeno demais até para enterrá-los, e desconfio que mesmo que eu enterrasse eles, as cachorras cavariam a terra para comê-los.
A maioria dos vizinhos decidiu ceder às milícias ou aos traficantes por ajuda. Eu não tinha dinheiro e nada que pudesse usar para pagar pelo que eu precisava pra sobreviver. Eu não tinha como me defender.
Então enquanto eu encaro o teto descascando acima de mim, eu espero ansiosa pela morte, porque sempre pensei que aquelas coisas não aconteceriam enquanto eu vivesse, que eram coisas de filme. Eu já estava morta por dentro desde que o meu amor morreu sem que eu pudesse fazer nada. Maldito vírus em constante mutação, o matou silenciosamente. Não percebi até que fosse tarde demais.
Eu estava puta por ser a única viva. Eu tinha pegado várias variações do vírus em um período de dois anos e estava imune aos principais tipos, mas Deus, se é que esse merda existe, sabe que eu preferia ter morrido há muito tempo.
Lembro que vi em algum filme que os mercadores de armas herdariam o mundo, pois seriam os únicos vivos depois que todo mundo se matasse, independente dos motivos. Eu concordo com isso.
Porque agora só me resta saudade dos tempos que não voltam mais, da saúde e das vidas que foram tomadas de mim. Da minha inocência, da minha vontade de viver. Só me resta saudade do Brasil que eu mal conheci. Só me resta saudade dos meus mortos, os mortos que eu não consigo enterrar.
Só me resta saudade e esperar pela morte.
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sobre a bomba atômica brasileira: por favor, por favor, votem contra isso.
eu não quero viver no país que o Brasil se tornou nesse conto.
p.s.: editei o texto porque vi uns errinhos.
Thank you for reading!
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