dissecando Edison Oliveira

Gosto de dizer que, colocar sinopse nas histórias que escrevo, é uma tarefa da qual não gosto, já que acabaria entregando partes da história. Neste caso, creio que não sei o que falar sobre tal conto, além de confirmar que se trata de algo incômodo.


Short Story Not for children under 13.
Short tale
1
2.7k VIEWS
Completed
reading time
AA Share

APRESENTANDO ALEXANDRE



O senhor Dorival estava com o corpo esticado para frente, olhando mais de perto ainda para o neto que dormia dentro do berço.
Ele olhava sem muita admiração, até com certa angústia, para a criaturazinha que pouco se movia. Às vezes, o neto mexia um dos bracinhos ou uma das perninhas, como se quisesse tocar algo visível apenas para ele, e Felipe, o pai de primeira viagem, sorria e tentava camuflar o próprio sofrimento. Dorival analisou a situação um pouco mais; pôs uma das mãos enrugadas no queixo, olhou o bebê de cima até embaixo e espiou para seu filho, parado a seu lado com um sorriso forçado.
— Imagino que tenha nascido prematuramente, não? — perguntou, olhando outra vez para dentro do berço.
— Na verdade, não. Foi nove meses completos, com a barriga de Ariane cada vez maior. Mas… Por que perguntou algo assim?
A expressão de Dorival mudou imediatamente.
— Como por quê? Não consegue ver?
— Vejo apenas o meu filho, pai. Meu querido Alexandre, — e pegou aquela coisinha minúscula nos braços, que se debateu e quase começou a chorar.
Dorival fez um gesto negativo com a cabeça, coçou a nuca e disse que desceria até a sala de estar, onde sua esposa Matilde e sua nora Ariane provavelmente ainda estavam, bebendo chá e falando sobre o parto, comendo biscoitos e rindo, fazendo comparativos básicos entre o bebê e os outros familiares.
Assim que o pai deu as costas e deixou o quarto, Felipe encarou o filho minúsculo e quis beijá-lo, mas por alguma razão desistiu enquanto ainda pensava a respeito. Deitou-o novamente no berço, aguardou até que ele se virasse e dormisse e só então andou até a sala, onde encontrou os pais e a esposa conversando sobre a terça-feira da semana passada, dia em que o pequeno Alexandre veio para este mundo, chorando como deveria ser, pesando três quilos e duzentos gramas, um peso excelente, que logo começou a sumir. Sentou-se ao lado da esposa e passou o seu braço em torno dos ombros dela.
— Ele dormiu? — quis saber Ariane, sorrindo.
— É, ele dormiu.
— É uma graça! — falou Matilde, orgulhosa, olhando para o filho que lhe dera seu primeiro neto.
— É um tanto miúdo, — resmungou Dorival, recebendo um cutucão da esposa.
— Logo ele vai encorpar, — disse Felipe, mas não tinha certeza alguma do que estava dizendo. — Os bebês são assim mesmo. Nasci com pouco mais de dois quilos, e olhem para mim hoje.
Todos deram risada, menos Dorival. Este seguiu sisudo o resto da manhã, pouco almoçou, conversou menos ainda, e já no fim de tarde, quando todos estavam reunidos diante da casa, sendo reverenciados pelo pôr do sol alaranjado, ele finalmente disse alguma coisa carinhosa. Falou que amava aquele neto e pediu desculpas pelo péssimo comportamento.
Ariane sentiu-se emocionada e admitiu que aquelas desculpas não eram necessárias. Felipe agradeceu o velho pai, mas sabia que nada do que ele dissera poderia ser verdade; provavelmente ele só estava seguindo ordens da esposa, como sempre ocorria toda vez que fazia alguma besteira. Todos se despediram e o carro com os pais de Felipe andou até desaparecer na curva, e só então os sorrisos falsos do casal sumiu de seus rostos.

Eles entraram em casa, quase não olharam um para o outro, e assim que Ariane sentou-se no sofá segurando uma taça de vinho, Felipe surgiu no corredor que ligava a sala e a cozinha e resmungou alguma coisa.
— Pode repetir? — pediu Ariane.
— Disse que meu pai estava certo. Tem alguma coisa errada com o bebê.
— Ele está bem.
— Está diferente. Mais magro, eu acho. Menor também.
— Vai ver ele sabe que não deveria estar aqui, não é querido?
Ouviu-se um estouro, e o punho cerrado de Felipe estava na parede, as veias em seu pescoço pulsando e pulsando.
— Precisa beber para criar coragem, como sempre. Admita que não queria ter um filho agora. Seria uma atitude mais digna.
— Se você também admitir…
— Foda-se!
E os passos pesados de Felipe foram ouvidos, cada vez mais distantes, até sumirem assim que ele se enfiou em seu quarto. A porta foi batida e Ariane sorriu, terminando as quatro próximas taças de vinho muito rapidamente, até sentir sono e pegar no sono ali mesmo, deitada no sofá e não conseguindo sonhar.
Acordou duas horas depois, sentindo a boca seca e a cabeça latejando, com a voz de Felipe lhe chamando pelo nome, bem diferente de meses atrás quando ele a chamava de amor.
— Mas o que foi?
— O bebê, — respondeu ele, calmamente. — Tem alguma coisa errada com ele.

Subiram até o quarto (Ariane na frente, perguntando e não obtendo respostas) e Felipe insistindo em falar pouco, apenas o básico, dizendo que nada daquilo estava certo, que bebês não deveriam ser daquele jeito, que o pai estava coberto de razão e coisas assim.
Dentro do quarto, Ariane correu até o berço. Felipe permaneceu parado no batente da porta, olhando para aquela cena.
— Viu? — perguntou ele.
— Vi, — respondeu ela, encarando o bebê. — Estes olhos… Não estavam assim antes, estavam?
— É evidente que não. Isso é horrível, Ariane. Tudo nesse bebê é.
— Não fale assim!
— Ora, não banque a sentimental agora. Por você, isso nem teria nascido.
Ariane engoliu as palavras e abaixou-se para tomar o bebê nos braços. Agarrou-o praticamente com uma única mão e olhou para ele, tão frágil, o rostinho fazendo caretas, uma coisa nojenta lhe escorrendo pelo nariz. Quis dizer que o amava, até aproximou seu rosto do dele, mas as palavras não vieram, simplesmente ficaram para si, guardadas em algum lugar, talvez no porão secreto onde só as mães que amam de verdade sabem o caminho.
Largou-o novamente no berço e passou diante do marido, dizendo que a chamasse caso fosse necessário.
Felipe puxou-a pelo braço, devagar.
— Amanhã são seus pais que virão, — disse ele.
— Isso.
— Eles não vão gostar do que vão ver.
— E o que você quer que eu faça? Esconda o bebê no armário?
Após isso Ariane saiu, desvencilhando seu braço da mão do marido. Felipe permaneceu em pé onde estava por mais algum tempo, evitando chegar diante do berço, até mesmo de olhar na direção dele. Não sentia medo do que iria ver, apenas não queria olhar. Para ele, aquilo era completamente indiferente.

Na outra manhã, bem próximo das dez, os pais de Ariane anunciaram sua chegada com a buzina de sua caminhonete.
Eles entraram e estacionaram debaixo da árvore, sendo recebidos pelo casal que os aguardavam abraçados na varanda. Dali, Ariane e Felipe representavam perfeitamente a fotografia de um casamento feliz; ambos de branco, sorridentes, o sol tocando seus rostos jovens enquanto a brisa fazia com que os cabelos loiros de Ariane esvoaçassem na direção contrária. Tudo estava perfeito. Os cumprimentos foram inúmeros, os elogios em relação aquele jardim foram diversos, e minutos depois todos subiram até o quartinho azul do bebê. O senhor Edgar foi o primeiro a debruçar-se sobre o berço. Ele abriu um enorme sorriso e tocou no pequeno nariz de Alexandre com a pontinha de seu indicador.
— Que menino mais abençoado! — falou ele, com voz de criança.
— Deixe eu olhar também! — pediu a senhora Valquíria, abrindo caminho e olhando para o pequenino Alexandre.
Ela o olhou com dúvida por um instante, depois encarou a filha, que lhe retribuía o olhar, mas mantinha um sorriso esquisito nos lábios. A senhora Valquíria abriu a boca para dizer alguma coisa, depois pôs uma das mãos sobre o peito e preferiu o silêncio. Ela ficou assim até o final do almoço, onde só então, pediu por gentileza, que lhe mostrassem a direção do banheiro.
Os pais de Ariane ficaram ali até a tardinha, com a senhora Valquíria observando a filha segurando seu neto no colo, com seus olhinhos miúdos e diferentes, com seu macacão azul muito maior do que ele, com seu nariz escorrendo sabe-se lá o que e seus dedinhos apontando para tudo. Despediram-se horas depois, já com as estrelas no céu, e assim que os faróis da caminhonete despareceram na curva, Ariane e Felipe se afastaram um do outro e retornaram para dentro de casa.
Eles ficaram em cômodos diferentes desde então, Felipe na sala de estar, atirado no sofá, encarando o teto, e Ariane preparando o jantar na cozinha, cortando batatas e fervendo a água. O bebê seguia em seu quarto, sem chorar porque isso ele não fazia, apenas se remexendo no berço, agoniado, escutando os pais começando a discutir em algum lugar, e aquilo o fazia sentir dor.
Lá na cozinha, Ariane gritou que estava cansada. Felipe respondeu que assim que encontrasse um lugar, faria as malas e partiria.
— Pode ficar com aquilo para você, — acrescentou ele, referindo-se ao bebê.
Naquela mesma noite, ambos dormiram em quartos diferentes, ignorando dar uma olhadinha no berço, e Felipe até torceu em segredo para que ele se afogasse e tivesse uma morte rápida.
Quando amanheceu, Ariane foi acordada pelo marido, que cutucava a beirada da cama com o bico do tênis.
— Já estão chegando? — ela queria saber, referindo-se aos amigos que marcaram de vir na semana passada.
— Ainda não. Mas levante-se de uma vez. Precisamos parecer um casal feliz, lembra?
— Faça o café, hoje. Não estou afim.
— Farei o meu. Você se vira depois. — Quase na saída do quarto, Felipe se deteve e virou-se. — O bebê está ainda pior hoje, só para que saiba.
— O que ele tem?
— Sem esse tipo de pergunta, por favor. Honestamente não sei o que é aquilo que está naquele berço.
Felipe mandou-se até a cozinha, onde preparou o próprio café, comeu sua única torrada, e em seguida aguardou a chegada dos amigos sentado na varanda, fumando e brincando com a fumaça que saía de sua boca. Esses amigos chegaram uma hora depois, em um único carro, e eles estavam entre três.
Eram Paloma (amiga de Ariane, com um vestido curto que fez com que Felipe sentisse algum desejo sexual após meses), Bernardo, amigo pessoal de Felipe desde a época da escola, e Sofia, prima distante de sua esposa ou algo assim. Os três subiram, elogiaram o lugar, parabenizaram Felipe, que sorriu e agradeceu, e em seguida fizeram o mesmo com Ariane que os aguardava na entrada da casa.
Colocaram a conversa em dia, falaram sobre trabalho, família e férias, até que finalmente Paloma comentou que estava na hora de conhecerem o bebê e cruzou as pernas, fazendo Felipe esquentar as virilhas.
Ariane concordou e convidou a todos para subir. Já lá em cima, circundaram o berço. Ficaram ali, com os olhares fixos, as palavras fluindo, todos nitidamente incomodados. Até que Bernardo resolveu dizer alguma coisa.
— Para mim, é a sua cara, amigo.
Felipe sorriu e concordou.
— Mas os lábios são seus, Ari — opinou Paloma, sem ter muita certeza se deveria ter dito aquilo.
Ficaram ali, ao redor do berço, até Felipe pegar o celular em mãos, fingir ler uma mensagem de texto e dizer que logo teria de partir a trabalho.
Todos (exceto Ariane, que percebeu imediatamente a estratégia do marido), aceitaram aquilo e logo foram se despedindo, com abraços, frases bonitas e desejos de felicidades para toda família. Mais uma vez o carro sumiu na curva, e assim como em todas as outras vezes, o casal afastou-se e passou boa parte da noite discutindo, apontando dedos e pensando no divórcio.
Era um pensamento comum de ambos, principalmente de Felipe, que ainda naquela noite, telefonou para os pais e explicou parte de seus problemas, saindo de casa pouco depois, com uma mala em cada mão e sem se despedir ou tampouco dar uma olhadinha no berço.
Ariane ignorou o fato. Fez o jantar, lavou a louça, bebeu algumas taças de vinho.
Preferiu não subir até o quartinho do bebê. Não sem antes beber a garrafa inteira. Então subiu até lá, um pouco tonta, e assim que chegou diante do berço, começou a chorar. Não gostava do que estava vendo. Aquilo não podia ter saído de dentro dela, era algo abominável de se pensar, mas ela pensava, lembrava-se de toda gravidez, e chorava ainda mais, querendo mais uma bebida, dormir e talvez nunca mais acordar. Cogitou descer até a cozinha e buscar uma faca. Para ela e o bebê. Depois a ideia sumiu, e tudo que ela enxergava era uma coisinha dentro do berço, talvez com algumas gramas, pequeno demais, e aquilo seria mesmo um terceiro olho?
Ariane não fazia ideia, havia bebido demais, chorado incontrolavelmente, tido pesadelo mesmo estando acordada e agora queria apenas desparecer. Acabou dormindo ali mesmo, no piso, ao lado do berço.
Quando acordou, levantou-se utilizando o berço como apoio. Olhou inevitavelmente para dentro dele. Não sentiu absolutamente nada. Decidiu que desceria as escadas muito devagar, e enquanto o fizesse, decidiria se utilizar uma faca poderia ser viável.
Desceu os degraus com lágrimas nos olhos, e quando todos eles acabaram, Ariane Pontes havia tomado sua decisão.

Nov. 30, 2020, 12:20 a.m. 0 Report Embed Follow story
1
The End

Meet the author

Comment something

Post!
No comments yet. Be the first to say something!
~