O matagal crescia em volta de um pequeno trajeto de gramíneas baixas, chamado de “caminho de roça” pelo povo popular, eram pequenos trajetos que já tiveram tantas indas e vindas que até mesmo a natureza se adaptara a eles, como uma lembrança natural de tempos perdidos. Tempos esses que Roberto gostaria de manter coberto pela natureza e jogado no esquecimento. Mas ali estava ele, andando por aquela trilha depois de trinta anos, relembrando de acontecimentos perdidos, enfrentando todos os seus medos e demônios passados para procurar o seu filho perdido.
Roberto sempre foi um homem de fé, acreditava que o mundo era regido por um Deus justo, que enchia os bons de graça enquanto jogava a miséria naqueles que faziam o mal. Enquanto o trigo era semeado e cultivado com todos os louros, o joio era jogado as chamas, se tornando cinzas e sumindo da face da terra. Por toda sua vida acreditou nisso, viveu uma vida nobre e honrada como um trabalhador rural, sempre servindo a igreja e os desígnios de Deus. Só para descobrir que não havia justiça no mundo em que vivia.
Ele começou a descobrir isso depois que perdera seu primeiro filho por causa de uma doença súbita, uma febre maldita que tirou sua vida antes mesmo dele completar dez anos. Uma criança tão feliz e alegre, que possuía tanto amor pela vida foi arrancada dela sem a misericórdia de nenhum Deus justo. Enquanto pessoas piores andavam por aí, sem nem merecer a vida que possuíam. Por isso que quando teve o segundo filho, Luiz, jurou a si mesmo que não dependeria de nenhum Deus para protegê-lo, que faria isso custe o que custar.
E novamente teve a prova da injustiça do mundo, quando Luiz, um garoto doce e amoroso, que gostava de se dedicar aos estudos e ajudar os pais em casa, desapareceu subitamente. Trazendo ao velho homem do campo de volta a mesma sensação de viver em um mundo onde nenhum deus teria clemencia ou piedade dele.
Antes do dia acabar, Roberto tinha juntado amigos, conhecidos e familiares para a sair a procura de seu filho, indo nas casas das outras crianças até alguns terrenos baldios ali perto. Ele conhecia bem aquelas áreas, já que o mesmo brincara lá quando era mais novo. Reviraram toda a área rural e alguns foram procurar até em povoados vizinhos quando as luzes laranjas do crepúsculo deram a Roberto uma idéia que ele tentava negar a si mesmo, suas memórias trouxeram eventos que jurava que bloqueara de sua mente. Eventos de quase trinta anos atrás, quando este era uma criança sapeca de nove anos de idade, assim como o filho.
Em uma época que ele mais quatro amigos encontraram um enorme casarão do século XIX, abandonado em meio a um enorme matagal que o ocultava do resto da cidade. O lugar parecia emanar uma energia macabra para as crianças quando chegaram da primeira vez, só que mesmo assim decidiram fazer dali seu centro de aventuras.
As paredes da casa, que pareciam ter sido brancas a muito tempo atrás, eram permeadas por marcas negras do que aparentava ter sido um grande incêndio. Dentro dela, móveis destruídos e marcas de do antigo incêndio se alastravam por todo o local, o cheiro da fumaça parecia impregnado tudo ali que ganhara um ar macabro com as paredes negras, pintadas pelas chamas já extintas. Toda a histórias, todas as vidas que já passaram por ali, foram devoradas pelo fogo que deixou apenas os ossos de uma antiga maravilha. Só que nem mesmo aquilo atrapalhara a empolgação das crianças, todos os dias eles brincavam naquele lugar, fingindo que eram mestres de uma grande fazenda de café dos tempos do imperador, ou aventureiros que encontraram um castelo antigo, colocando toda a imaginação para trazer graça a velha mansão.
Todos ali tinham uma regra, brincavam de de manhã até a tardezinha, cabulavam a aula e iam brincar na casa velha, mas nunca ficavam até depois do sol se por. Por causa dos barulhos estranhos que ouviam de um casebre ali do lado, barulhos esses que também ouviram no andar de cima do casarão onde ninguém tinha coragem de ir. Certa vez acabaram esquecendo a hora e ficaram até mais tarde lá, então o som de lamentos, maldições e sons de correntes se arrastando, barulhos gulturais ficaram tão altos que trouxeram a tona as coisas ruins que seus pais contavam antes deles dormirem. Entretanto, aqueles barulhos não apareciam na luz do dia o que deixava o lugar perfeita para brincadeira das crianças.
O casarão não trazia nenhum medo se evitasse o andar de cima. Mas o que eles descobriram nos fundos foi o começo de toda uma desgraça. Em um caminho no quintal da mansão existia uma pequena trilha, já quase totalmente oculta, que levava até um poço. O mato ao redor do lugar caía sobre ele como se tentasse erradicar o local da existência, mas sua estrutura ainda poderia ser vista.
Principalmente por causa da luz que saía dele.
Uma luz branca emergia suavemente entre as brechas das tábuas que selavam o poço. Apesar do evento totalmente sobrenatural, nada demais parecia vir dali, as crianças brincavam e acharam as sombras bonitas vindas da luz dentro do poço. Todas, menos Roberto, algo naquele fenômeno possuía uma natureza nefasta oculta no lindo espetáculo, algo pior que os lamentos do andar de cima. Enquanto os quatro admiravam e tentavam ver o que provocava a luz que vinha do poço, o jovem garoto apenas sentia sua barriga se embrulhar e um frio percorrer sua espinha como uma garra de gelo que o cortava da cintura a nuca.
Naquele dia Roberto deixou os amigos no casarão e correu de volta para sua casa, com um medo profundo de um motivo desconhecido. Ao chegar cedo ele não falou nada com os pais apenas ajudou o pai na lavoura e ficou lá, feliz por estar longe daquele poço. Cansado, já prestes a desmaiar na cama por causa do esforço de ter trabalhado na terra, os pais dos amigos do garoto bateram em sua porta, todos preocupados porque nenhum deles tinha voltado pra casa.
Ele poderia ter dito sobre o casarão, poderia ter dito sobre onde eles iam quando cabulavam aula, mas ninguém sabia onde ficava aquele lugar. Se Roberto contasse sobre o poço seria obrigado a voltar lá e se deparar com o que seja lá que existisse, se deparar com os amigos que abandonara. Então, mesmo vendo os pais de seus amigos preocupados, mesmo sabendo que ainda poderia ajudá-los, o garoto Roberto decidiu mentir. Falou que não tinha visto o dia todo e preferiu guardar o segredo do poço com ele.
Era por causa daquilo que agora ele corria pelo matagal que dava até o casarão, se embrenhando nas plantas com carrapichos que lhe flagelavam a pele, os matos que deixavam aqueles irritantes pontos verdes em suas pernas e os mosquitos que o atacava aos bandos, fazendo-o espalmar toda hora e matar vários a cada espalmada ou tapa em seu próprio corpo. Seu coração apertava quanto mais sentia o casarão se aproximando. O crepúsculo começava a se formar nas nuvens quando enfim viu a estrutura, ainda com as marcas negras do incêndio, as janelas destruídas e o telhado despedaçado; sem nenhuma vegetação ao seu redor, um lugar totalmente estéril que nem os animais ousaram entrar.
Conforme se aproximava do casarão, lamentos ecoavam do interior escuro, os mesmos choros as mesmas súplicas, os mesmos horrores que motivavam ele e os seus amigos a irem embora antes do sol se por. Por um momento pensou em procurar lá dentro, mas em seu âmago ele sabia onde procurar seu filho. A cada passo que dava o frio percorria seu corpo como garras que alisavam sua pele, mesmo com o suor empapando toda sua camisa colando-a no seu corpo como uma segunda pele. Seu estômago embrulhava com uma tempestade lá dentro que acompanhava o seu coração acelerado e a respiração irregular.
Com muito esforço ele avançou pela trilha dos fundos até ver novamente, a mesma estrutura de pedras envelhecida pelo tempo, só que agora com as tábuas que o selavam jogadas ao chão e a luz saindo do fundo do poço. A sensação era pior do que antes, o medo enfraqueceu suas pernas e o fez cair de joelhos, a bile ameaçou subir. A luz que agora saía com bem mais força possuía uma coloração diferente, da última vez que a vira era um branco opaco e inexpressivo, mas agora, trinta anos depois, era um amalgama de quatro cores, vermelho, verde, amarelo e azul, que se moviam e se devoravam criando um espetáculo bem mais belo, só que ainda mais assustador.
Novamente seu corpo o repelia contra aquilo, seu instinto de sobrevivência gritava para fugir e tentar esquecer novamente aquele lugar, mas não iria aguentar a perda de outro filho. Da última vez a luz levara seus amigos, agora poderia estar com a coisa mais importante da sua vida. Enquanto ele buscava forças para seguir em frente, a iluminação do poço se enfraqueceu e de lá uma voz surgiu.
- Alguém me ajuda! - A voz do seu filho o chamou de volta para realidade, ele estava lá, vivo pronto para ser salvo. A força voltou para suas pernas e ele finalmente correu até o poço onde não havia mais nenhuma luz.
- Luiz! Luiz! Luiz meu filho eu tô aqui! - Gritou o pai desesperado, mas nada havia dentro do poço além de uma corda e um córrego.
- Pai! Eu tô preso! Pai me ajuda! - O medo ainda o dominava, mas ouvir o choro do seu filho trazia mais força que nunca para ele. Reunindo toda coragem ele finalmente segurou na corda e desceu no poço tão temido e lá dentro viu algo que nunca esperaria.
Uma caverna, grande e ampla com dezenas de metros de altura, um rio raso que e molhava até metade da canela, musgo nas rochas perto da água e uma galeria de cristais que refletiam o brilho da noite por todo lugar. O rio seguia reto e chamou a sua atenção a outra câmara ao lado do túnel. Ele adentrou no local escuro e quando estava as bordas da outra câmara, a luz voltou a aparecer, imediatamente o gelando de medo, observando a luz refletir em vários pontos da caverna até chegar na abertura, ali estava a fonte de tudo aquilo, de todos os seus medos mais obscuros, de seu grande pecado cometido a trinta aos atrás. Se entrasse poderia salvar seu filho, mas também teria que enfrentar tudo aquilo enterrado em seu coração. A luz novamente se apagou e a voz voltou a ecoar na caverna.
- Pode aparecer, nós sabemos que você está aí. - A voz de Luiz se uniu a voz dos seus antigos amigos. A euforia o fez girar e novamente tremer ao ver o que tinha ali.
Metade do corpo do seu filho estava dentro de um verme anelídeo de pele branca, a boca circular repleta de dentes o segurava e o resto do corpo estava oculto nas sombras da câmara. Os olhos do garoto brilhavam no mesmo amalgama colorido da luz que vinha do poço, aquelas quatro cores em tempestade.
- Você demorou Roberto – Agora a voz dele era um coro com a dos seus amigos desaparecidos. - aquela época era para tudo ter terminado, mas você me impediu.
- qu… - que… - Quem é você? - Toda a força de vontade só foi capaz de fazê-lo entoar aquelas palavras, ele queria lutar, queria tirar seu filho das garras daquele verme, mas não conseguia fazer nada a respeito além de ficar alí, congelado pelo medo.
- Eu não sou nada que possa ser compreendido por vocês – A voz saía sem nenhuma expressão – Assim como minhas ações, só o que você poderia entender era não era para eu estar aqui e por causa da sua fuga eu tive que adormecer por mais trinta anos. Mas agora eu finalmente posso ir embora, graças a sua linhagem. - Assim que ele disse isso o corpo de Luiz começava a entrar mais e mais na boca do verme.
- Não! Por favor! - Nenhum medo poderia ser maior que aquela dor novamente, ver seu segundo filho morrer, assim como Matheus que morreu em seus braços anos atrás. - Você disse que precisava de mim! Disse que tudo isso foi atrapalhado por minha causa! Eu estou aqui! Não precisa levá-lo!
- Então dessa vez você aceitaria? Trocaria a vida do seu filho pela sua?
– Sim! Você tem a mim… não o machuque! - Dessa vez não havia medo em seu coração, Roberto olhava o verme com toda determinação necessária. Não seria Deus que o salvaria daquela situação, seria ele que salvaria a vida do seu filho com suas próprias mãos.
- Então está decidido. - Assim que disse isso os olhos de Luiz pararam de brilhar e se fecharam; o verme se esticou e o colocou no chão com certa suavidade. Roberto segurou seu filho e a satisfação de senti-lo em seus braços o fez abraçar ainda mais forte o garoto desmaiado, mesmo dormindo, ele ainda trazia alegria ao velho pai que aproveitava cada segundo do seu último abraço. Por um momento o impulso de sair correndo o dominou, se corresse com todas suas forças poderia levar a criança o mais rápido possível. Por um momento a esperança inflou seu coração para a tarefa mais difícil de toda sua vida, mas assim que virou para ver onde estava a criatura, ele percebeu que naquela caverna a esperança não iria ajudá-lo.
O “verme” na verdade era apenas a cauda daquela aberração, saindo das sombras da caverna, quatro pares de pernas aracnídeas peludas, erguiam um corpo longo coberto de escamas, totalmente branco, uma cabeça sem olhos também alongada e achata exibia dentes pela borda da boca do lado de baixo. O máximo que Roberto conseguiu fazer foi afastar o filho para longe da criatura. Nem em um milhão de anos conseguiria imaginar um ser tão horrendo quanto aquele, um retrato físico da loucura que o dominava.
Mas o pior aconteceu quando a abominação abriu sua boca. A parte de cima se dividiu em duas partes que se abriam em diagonal enquanto a de baixo desceu, formando um Y repleto de fileiras de dentes afiados. No fundo da boca um grande olho o fitou, o globo emanava a luz amalgama de vermelho, verde, amarelo e azul, as quatro cores se devoravam e lutavam em um frenesi assustador enquanto a mente do pobre homem era tragada até sua pupila em formato de X, aluzes se moviam ferozes dominando os olhos do homem e levando-o ao ápice do abismo da loucura. Ele só conseguia ver aquilo, continuar vidrado naquela fonte de poder enquanto sua mente se dilacerava descobrindo o segredo de tudo aquilo. Tudo era luz, tudo se resumia aquele ser e quando finalmente seus olhos se derreteram a cauda do monstro o engoliu e tudo se tornou escuro.
...
A luz do sol forçava por entre suas pálpebras tirando o escuro e trazendo o vermelho irritante que o fez acordar. Luiz acordou todo empapado de suor e ouvindo o zumbido irritante dos mosquitos que pousavam em sua pele para sugar seu sangue, olhando de um lado para o outro, viu que se encontrava em uma cratera, algo bem profundo, mas muito fácil de sair. Com certo esforço ele subiu andando pelo terreno acidentado até chegar na superfície que dava em um grande matagal, repleto de mangueiras cajueiros palmeiras e outras plantas que nem dava para saber o nome e virando para trás ele viu um enorme casarão.
O mesmo casarão que ele encontrou quando foi atrás da luz estranha que apareceu enquanto voltava da escola. Devia ter avisado a alguém, mas a atração foi tão forte que ele não pôde resistir. Enquanto fazia o caminho de volta, Luiz olhava para aquela antiga mansão com certo medo, ecos saíam dela parecendo som de lamentos, mas em vez de procurar a criança tapou os ouvidos e correu de volta para a trilha da estrada. Antes mesmo de chegar em casa se deparou com um amigo de seu pai que o abraçou firme e o levou de volta para casa, lá encontrou sua mãe em prantos.
O tempo passou e dessa vez seu pai, Roberto, que não havia chegado da busca por Luiz, todos estavam preocupados. Mas a criança sabia, lá no fundo que ele não voltaria, todos o chamavam de canalha, do homem que abandonou a mulher e o filho quando tava desaparecido, histórias sobre o marido bruto e infiel correram a cidade, mas Luiz nunca acreditou e quando ele falou para sua mãe que na verdade o pai fez tudo por amor, a mulher também acreditou.
Durante o resto da infância, quando a noite vinha quente e as estrelas surgiam no céu escuro, Luiz sempre subia no telhado e perdia horas olhando para apenas uma estrela que ficava distante das outras, mas possuía a luz mais bela. Uma luz amálgama de várias cores irradiando verde, vermelho, amarelo, azul e roxo.
Vielen Dank für das Lesen!
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