tsrsilva Thiago Silva

Passado e lembranças. Lembranças e sonhos. Sonhos à beira mar.


Kurzgeschichten Nicht für Kinder unter 13 Jahren.

#monstros #lembranças #infância #fantasia #historiasdecuarentena #fiqueemcasa
Kurzgeschichte
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Sonhos à beira mar

Eu tinha onze ou doze anos, acho.

É difícil dizer ao certo em qual momento da nossa vida algo acontece e se fixa na memória. A nossa mente é uma coisa tão complexa, tão incompreensível.

Acho impossível que algumas pessoas possam se lembrar exatamente de memórias muito antigas. No sentido de datas e essas coisas. Não é exatamente desse modo que o cérebro funciona. Lembranças dificilmente são processadas e concebidas do modo como realmente ocorreram. De certo, quando pessoas falam sobre o conteúdo de suas lembranças, estão mentindo descaradamente.

Minha irmã, por exemplo. Diz que se lembra exatamente do dia de cada evento importante da sua infância. Dos meus aniversários, dos aniversários dela. E é impossível não olhar para ela com uma cara de desgosto quando ouço coisas desse tipo. Sinto vontade de dizer que não compreendo como ela conseguiu se formar em uma faculdade e arranjar um emprego. Um excelente emprego, aliás. Ela gosta de dizer que se importa com lembranças, com memórias, como se fossem relicários ou algo parecido. Adora dizer que não me importo com nada, que não sou empático com as pessoas e que não valorizo nossas lembranças.

Eu entendo por quê ela gosta de dizer essas coisas. Eu realmente entendo. Afinal, ela passou sua vida inteira batalhando com o único objetivo de esfregar suas conquistas na minha cara, esperneando para se mostrar superior. Uma piada!

Preciso marcar uma consulta com minha terapeuta.

Acho que perdi o fio da meada. Não que me importe. Conversar consigo mesmo abre possibilidades para essas digressões. Se um homem não fala consigo mesmo, alguma coisa etc etc, já dizia aquele...filósofo?

Como a mente é louca.

Enfim, eu devia ter doze ou treze anos na época. Normalmente me lembro muito pouco das coisas que aconteceram quando eu era uma criança. Ironicamente, eu me lembro exatamente de um fragmento específico desse dia. Quase que vividamente. Talvez, o que eu vi - ou o que acho que vi - se enfurnou em algum reduto da minha psique e se aninhou confortavelmente naquele espaço subutilizado do meu cérebro. Aquilo me ficou impregnado de modo tão agradável que decidi carregar comigo durante toda minha vida. Fato é que, mesmo estando diante de um cadáver neste momento, me sinto tranquilo e relaxado, enquanto penso naquele dia.

Morávamos perto de uma praia. Era um lugar bem parado na maior parte do tempo. As vezes alguns turistas chegavam no vilarejo totalmente perdidos, mas tomando os ares daqueles viajantes que sabem o que fazem. Tiravam fotos, perambulavam pelas ruas sem saída colocando suas cabeças para fora das janelas dos carros e fingiam apontar para algum lugar de interesse especial. Ao encontrarem as placas indicando que seu destino era acessível apenas através da segunda saída a partir da rodovia, aceleravam pelas pequenas ruas de areia e sumiam. Fora isso, nada anormal acontecia lá.

Era um lugar diferente se comparado com as outras cidades encostadas no mar. Ela ficava do lado norte de um conjunto de morros que se esticavam a partir do continente em direção ao oceano, separando nosso pacato recanto da cidade turística que se erguia do outro lado. E se alguém fosse caminhando pela praia em direção ao norte a partir dos morros, chegaria em um pequeno e bucólico povoado de pescadores.

Assim, entre o caos do turismo predatório e a languidez dos pescadores, repousava nosso bolsão domiciliar. (Talvez isso não faça sentido.)

Eu gostava de sair de casa e caminhar até um dos morros que se deitava no canto sul da praia. Gostava especialmente de caminhar até lá durante os dias nublados e frios. Eram meus dias favoritos. Talvez por serem tão raros na minha região. Me pareciam momentos únicos, quando coisas mágicas podiam acontecer, escondidas sob o véu salgado da garoa que vinha do mar.

Aquele dia foi realmente um momento único. Decidi sair de casa para escapar da gritaria e das discussões que transbordavam os limites do quarto dos meus pais. Havia deixado para trás minha irmã, assustada e prestes a se desfazer em lágrimas. Normalmente, era o que fazíamos naquelas situações, que por muito tempo foram tão frequentes. Mas naquele dia eu não queria repetir aquilo. Estava cansado e com medo. Por isso, decidi escapar.

Desci os degraus na ponta dos pés, peguei meu casaco no aparador de perna bamba que dormia no canto da sala e sai pela porta dos fundos sem incomodar viva alma.

Sempre fui muito discreto e silencioso. Me lembro que, quando era bem mais novo (antes dos dez anos?), decidi que usaria devidamente meus atributos quando fosse adulto e trabalharia como ninja. Tempos atrás, descobri que não havia mercado na área. E, por mais uma vez, o capitalismo destruiu meus sonhos.

Digressões.

Lentamente fechando a porta atrás de mim corri pelo jardim nos fundos da casa, chegando em um estreito caminho de areia além do portão de madeira que estabelecia os limites do terreno. A trilha aberta à mão - por alguém que nunca soube quem era - entrava fundo na restinga densa. Lá dentro, mais ou menos no meio do caminho entre minha casa e o mar, a trilha se dividia em duas: um dos trajetos levava direto até as dunas e, depois, para a praia, enquanto o segundo levava para os morros ao sul.

Eu me lembro de ter demorado mais do que o necessário para percorrer aquele trajeto que me era tão familiar. E lembro que construíra em minha mente duas ótimas justificativas para minha lerdice.

A primeira justificativa fazia referência ao vento intenso daquele dia atípico, que percorria todo o espaço alguns metros acima da minha cabeça e empurrava com violência as copas rígidas das árvores baixas da restinga, criando sons ligeiramente aterrorizantes, mas ao mesmo tempo interessantes para uma mente fantasiosa. Na minha cabeça juvenil, me senti como um agente secreto esgueirando-se através dos amplo dutos de ventilação de uma base inimiga. O caos acima de mim indicava que meus inimigos sabiam da minha existência no perímetro de sua base, percorrendo os corredores dos andares acima em desespero e fúria. E eu, como um excelente infiltrador, caminhava lenta e pacientemente pela trilha, evitando os galhos finos e folhas secas que se espalhavam pelo chão de areia.

A segunda justificativa era que eu não queria voltar para casa. Queria ficar o maior tempo possível longe das crises da minha família.

Me lembro de me esforçar em me preocupar apenas com minha primeira justificativa.

Por todo o caminho em direção aos morros eu sonhei aquela minha fantasia, escapando das dores da realidade. Até hoje carrego comigo esse tipo de escapismo, esse comportamento de negação do inevitável e incontrolável. Não exatamente do mesmo modo, claro. Busco conforto em outros temas, outras fantasias. E acho engraçado como prender-se a este mundo imaginário, construído nas loucuras de nossa mente, possa ser algo tão libertador. Ainda que tão viciante e perigoso.

Um pouco assustador, as vezes.

Eu achava estranho e um tanto engraçado como a restinga parecia acabar abruptamente quando chegava naquela parte dos morros. Era como cruzar um portal, uma barreira para outra realidade. Tão vazio e tão quieto, parecendo o limite da existência, o final do mundo.

Logo que deixei a trilha, sai correndo em direção a uma rocha que se projetava a partir da parte mais rasa do solo. Sentado lá, eu conseguia ver muito além no mar e todo o povoado dos pescadores. Costumava dar as costas aos prédios que se erguiam do outro lado dos morros, apagando-os do meu mundo. Normalmente sonhava acordado, olhando para os pequenos barcos cheios de varas de pesca que navegavam para longe. Imaginava que eu estava em um deles, como um velho pescador partindo em busca do seu último grande pescado no longínquo mar bravio.

Que nem aquele velho daquele livro que não me lembro o nome.

Porém, naquele dia não haviam barcos navegando para longe do vilarejo. Tudo estava muito parado nas terras abaixo.

Olhei o mar agitado. Lembro que fiquei me perguntando o que deixava o mar tão bravo. Algo devia irritar ele, em alguns dias. Talvez sua irmã mais velha. Talvez seu irmão mais novo. Talvez seus pais. Não sabia ao certo onde começava o nervosismo do mar. Não sabia, na realidade, onde começava o mar.

Me lembro que, quando era bem mais novo (sempre era bem mais novo), eu e minha irmã perguntamos ao nosso pai onde começava o mar. E por quê ele nunca secava. “Ah!” disse ele “O mar começa logo ali, depois daquela curva que desce. Lá longe. Tem uma torneira lá atrás que é de onde o mar sai. Como sempre deixam ela aberta, o mar nunca seca.” Me lembro de ter soltado um longo “Ah” de compreensão. Fazia todo sentido! “Mas,” pensei eu “é um baita desperdício deixar a torneira sempre aberta. A mãe do mar deve ficar baita brava com ele.” Desde aquela época me preocupava com sustentabilidade e recursos naturais. E com o chinelo da minha mãe.

Não me lembro se a história da torneira do mar surgiu na minha mente exatamente no momento em que procurava algum barco deixando o vilarejo dos pescadores. Eu sei que a lembrança veio depois, quando percebi a gigantesca silhueta escura escondida atrás da parede de chuva que se estendia no horizonte, pairando sobre o mar.

O som do trovão nunca havia me incomodado ou assustado. Diferente da minha irmã. Céus, por quê ela fazia tanto drama para as coisas? Era só um barulhão que vinha depois de um raio. Que, aliás, esse sim me dava um medo gigantesco. Ainda me dá, para dizer a verdade. Mas, enfim...

A diferença era que os trovões naquele dia foram assustadores. Talvez porque não vieram depois de raios. Ou relâmpagos. Me lembro da ausência de luz e de alguns estrondosos trovões, um seguido do outro. Como se um elefante tivesse tropeçado enquanto corria pelo sótão.

Lembro de olhar assustado para a tempestade que caia no horizonte, lá longe. Estava bem assustado com o que via. E tinha certeza que estava vendo alguma coisa real. Uma sombra muito grande saindo do mar e se erguendo além do céu. Parecia uma cabeça gigantesca com duas enormes orelhas de coelho que, de tão escuras, pareciam fendas no espaço.

Tinha certeza de que era um monstro. Alguma criatura adormecida no fundo do mar, mais antiga do que o próprio tempo e que agora se erguia das profundezas abissais do oceano em direção à luz do dia, carregando a chuva torrencial consigo, porque sua mãe havia falado para ele fechar a torneira.

Maldita torneira.

Como se fosse hoje, recordo a criatura abrindo seu gigantesco e circular olho vermelho - já que havia acabado de acordar - e virando-se lentamente em direção à curva do mar. Languidamente, procrastinando o dever que fazia a contragosto, a sombra se arrastou, pé ante pé (?), em direção ao horizonte, enquanto trovões bradavam ao seu redor.

Conforme a sombra desaparecia depois da chuva, minha angústia crescia no meu peito. Quando já não podia mais ver a silhueta do monstro movimentando-se no horizonte, sai correndo em direção a minha casa. Enquanto percorria apressado a estreita trilha repleta de galhos e folhas, apaguei completamente da minha mente todas as minhas fantasias. Estava completamente focado na imagem do monstro olhudo fechando a torneira.

Passei desajeitadamente pelo portão entreaberto do jardim de casa e o deixei do jeito que estava enquanto me dirigia, desvairado, até a porta dos fundos.

Lembro do rosto da minha irmã, sentada na sala, quando me viu entrando correndo ma casa, berrando que o mar ia secar. De certo, pensou que não éramos irmãos de verdade; pelo menos, foi o que me falou um tempo depois.

É engraçado como certas coisas despertam lembranças tão particulares. Apesar desta memória atuar, para mim, como uma escapatória para situações tensas - como o assassinato que agora investigo - me parece também que ela sumariza uma parte do que fui. Ou do que sou.

E acho que é sempre bom, vez ou outra, contemplarmos a nossa própria identidade.

15. April 2020 18:55 4 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Isís Marchetti Isís Marchetti
Olá, tudo bem? Faço parte do Sistema de Verificação e venho lhe parabenizar pela Verificação da sua história. Ah! Que história maravilhosa! Apesar de no começo ele comentar que achava que era impossível ter lembranças do passado, ele se lembra muito bem de várias coisas! Eu achei fascinante essa pequena contraditória. Eu não sei se era essa imagem que você queria passar através do seu texto, mas no fim eu acabei me deparando comigo mesma pensando em várias memórias e lembranças agradáveis que construí na minha infância, e fui obrigada a um certo ponto discordar do seu personagem, pois tenho a absoluta certeza que essas memórias foram tão reais quanto quando aconteceram. Mas não estou aqui para entrar nesses pequenos e insignificantes detalhes. Aliás, amei a menção ao livro de Hemingway. A coesão e a estrutura do seu texto estão maravilhosas, eu particularmente gosto muito de textos e histórias escrito em primeira pessoa, mas hoje em dia é tão difícil encontrar! Textos em primeira pessoa me proporciona uma experiência única, sempre me colocando no lugar daquele personagem e fazendo com que eu vestisse a camisa dele, é engraçado, mas é uma experiência única e magnífica. A sinopse do seu texto também está magnífica, apesar de ser pequena, ela já deixa espaço para muita imaginação e deixa a gente com várias espectativas a respeito do texto em si. Quanto ao personagem, eu consegui me indentificar muito com ele, e não é só porque também quis ser ninja algum dia, é tudo que ele representa e me fez sentir, claro que eu não me recordo de ter fugido de casa e ter entrado em uma bifurcação, mas acredito que em algum momento da minha vida eu imaginei algo inimaginável só para fugir daquilo que eu passava no momento. Usar a fantasia para um escape é mais comum do que eu pensava. Quanto à gramática, você está de parabéns, seu texto está ótimo e muito encantador, me deu uma experiência incrível ao lê-lo. Desejo a você sucesso e tudo de bom! Abraços.
June 24, 2020, 15:51
Jordana Jordana
Me identifiquei bastante com o personagem 🥰
May 10, 2020, 09:10
Kaline Bogard Kaline Bogard
Olá! gostaria de começar essa análise dizendo como eu acho arriscado a narrativa em primeira pessoa. São poucos os autores que conseguem dominar essa técnica de modo eficiente e acabam confundindo o desenvolvimento da história. Mas você mostrou que tem uma ótima técnica, a história traz os elementos mais importantes do personagem-narrador. O leitor consegue sentir e conhecer a personalidade dele, se aproximar e "conhecê-lo". Também destaco o tom de saudosismo da história, quanto mais a gente envelhece mais a infância parece preciosa, com todos os seus mistérios e sonhos impossíveis. Acho que muita criança pensou em ser ninja um dia. Eu entendo perfeitamente a atitude dele nessa questão da memória, porque a minha também é péssima, então fica um bom tom de identificação, a gente sente o personagem na "pele". E, como não poderia faltar, aquele tom de fantasia que mais marca nossa infância, que torna o mundo mágico aos olhos de uma criança, e alguns adultos também, hum? Parabéns pelo texto e pelo ótimo português!
April 21, 2020, 13:07
DC David Cassab
Bom, quem nunca sonhou em ser ninja? Ah e o livro que você não lembrou o nome era O Velho e O Mar escrito por Hemingway. Bela escrita!
April 20, 2020, 22:28
~