guilhermerubido Guilherme Rubido

Em um confortável sobrado no topo de uma ladeira de uma pequena cidade, Edmilson e seu beagle, Billy, vivem sozinhos uma vida tranquila e rodeada pela natureza. No entanto, é em uma certa noite que essa existência é perturbada. Quando Edmilson recebe uma visita inesperada no portão de sua casa que fará com que lembranças esquecidas venham a tona.


Horror Alles öffentlich.

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Kurzgeschichte
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Aquele que bate à porta

Aquele que bate à porta

Lá fora, carregada pelos odores salinos e fortes do balançar das ondas marítimas sobre uma areia que, pela manhã, era branca e brilhante, a noite flutuava tranquila sobre as aconchegantes casas apagadas da pequena cidade litorânea. Na escuridão, lamparinas de luz amarelada flutuavam como fantasmas à frente das residências silenciosas, erguendo-se em pequenos anéis de luz dispersos. Vaga-lumes solitários que formavam a ínfima iluminação da madrugada em um esforço débil contra a obscuridade presente. Sobre elas, a maresia vinda da praia viajava pelo ar, agarrando-se aos telhados de um vermelho escuro e às tábuas de pinturas desgastadas que revestiam as casas com cores amarelo pastel, verde esmeralda e, de vez em quando, as tábuas gastas sendo substituídas por tijolos empoeirados. Ao longe e já no nível do mar, pairando sobre o horizonte caliginoso que se estendia abaixo do pequeno morro, algumas janelas ainda emitiam suas luzes pálidas sobre a orla, estendendo compridos rastros fosforescentes pelo caminho da praia, onde, passando pela areia cinza e chegando na água, perdiam-se em meio a escuridão densa e negra de um mar que agora era submetido a vigília de uma doentia lua no céu.

Apesar da luminescência distante, a região em que Edmilson morava já estava completamente envolta em sombras. Sua casa era um dos muitos sobrados que cobriam as margens de uma estreita rua de paralelepípedos; uma comprida estradinha que subia, íngreme e ladeada por diversos e fracos postes de luz, até o topo da pequena ladeira, onde, em um movimento brusco de proteção, as casas se fechavam em um semicírculo que encerrava o caminho civilizado. Além delas, oculta, erguia-se uma floresta. Alguns galhos e folhas suspensas curvavam-se sobre os telhados e muros, encimando-os e balançando como mãos ansiosas de prisioneiros que tentam trespassar uma barreira.

Eram 3:19 da manhã. Excitados pelo calor de janeiro, os grilos cricrilavam. Invisíveis, cantavam por dentro da mata que circundava a pequena colina, escondidos por detrás do confuso emaranhado de arvoredo que formava a fronteira que separava a cidade do desabitado. Um local por onde provavelmente – e não certamente – apenas os habitantes mais antigos dali saberiam se locomover. Embora, mesmo com esse conhecimento, a maioria não fosse tola o bastante para desafiar a mata virgem.

Sentado em sua poltrona, um Edmilson meio adormecido assistia à televisão. As luzes da tela brilhavam e explodiam pela escuridão da sala em uma série de flashes incessantes. Aos seus pés, com a cabeça apoiada nas patas da frente, Billy – um gordo beagle de 11 anos que acompanhava Edmilson em cada passo que dava – grudado em seus calcanhares, imitava seu dono, tomado também por uma profunda soneca. Exceto pelos sons emitidos pela TV que se alastravam pelos cômodos da casa de maneira fantasmagórica, escalando a grande escada de madeira da sala e desaparecendo nos quartos apagados de cima, a casa inteira repousava em completo silêncio. Lá em cima, nada se ouvia.


***


Remexendo-se na cadeira desconfortavelmente, Edmilson despertou no meio da madrugada. Abriu lentamente os olhos que, incomodados com os brilhos da tela à sua frente, acostumavam-se com dificuldade à iluminação.

— Diabos, que horas são? — Resmungou ele para o nada com voz sonolenta. E, virando-se na poltrona, olhou para o relógio na parede da cozinha: eram 3:48 da manhã. Com um suspiro cansado, falou: — Hm... hora de ir para a cama, Billy.

Levantou-se da poltrona e procurou o controle remoto na almofada do assento. Aos seus pés, Billy bocejava e, cambaleante, começava a se levantar e marchar pela sala. Encontrando o controle, Edmilson desligou a televisão. A sala imergiu em silêncio e escuridão, dando espaço para o cântico dos grilos na mata. O pouco de luz que agora restara vinha da cozinha ainda acesa.

A sala de TV ficava um patamar abaixo do resto da casa, separada da sala de estar e da cozinha por três pequeníssimos degraus. Edmilson os subiu ­– o que era basicamente a mesma coisa que levantar o pé para não pisar em alguma coisa durante uma caminhada – e, passando pela sala de estar, rumou até a cozinha. Fiel, Billy o seguia de perto e, chegando lá, após cheirar alguns cantos, partiu para cima do pote de ração.

Edmilson abriu a geladeira, tirou de lá uma garrafa de plástico e a deixou sobre a mesa de madeira que ficava no centro da cozinha. Foi até a pia e, antes de pegar um copo, olhou pela grande janela com tela que ficava atrás da torneira: apenas mata, galhos e um completo breu. Nada mais. O balançar das árvores negras, o chacoalhar das folhas sob o vento acariciando com leveza as telhas e tábuas da casa. Deus, como ele amava aquilo tudo. Amava o som da natureza. Poder respirar o ar puro da noite e dormir ao som de corujas e cigarras. Pegou o copo e voltou para a mesa. Sobre o tampo, uma toalha de plástico com estampa xadrez se estendia bucolicamente. Sua esposa escolhera aquela toalha há muito tempo atrás, quando haviam decidido que morariam ali, distantes de todo o resto. A toalha os fazia lembrar de coisas como fazenda, campo e o cheiro da terra molhada. Era sempre mágico tomar café sobre ela, escutando os pássaros lá fora. Era mágico...

Bebeu o copo d’água e apagou a luz da cozinha. Voltou-se para a sala de TV (ouvindo o som das unhas de Billy batendo contra o chão atrás de si) e abriu a gaveta inferior de um robusto criado-mudo que ficava ao lado de sua querida poltrona. Era uma gaveta extremamente larga e funda. Lá dentro, escondida, havia uma carabina. Uma Puma .38 já bem desgastada. E, pela segunda vez naquela noite, Edmilson a acariciou com pensamentos intranquilos.

Fechou a gaveta e passou por cima dos três degraus. Na sala de estar, viu Billy sentado imóvel à frente da porta dupla de madeira que dava lá para fora. Havia alguns pedaços da porta cobertos por rede contra mosquitos, e Billy olhava através deles.

— Vamos, Billy. Vamos para a cama, garoto. — Mas o cachorro nem se virou. Nem mesmo pareceu notar a voz de seu dono. Suas orelhas estavam de pé, agudas como antenas, e prestavam atenção em outra coisa mais importante. Billy estava vendo alguma coisa lá fora. — O que é que deu em você, hein... — Edmilson resmungou, aproximando-se do cachorro para acalmá-lo.

Em pé perto de Billy, Edmilson olhou ansioso por um dos grandes janelões que ficavam aos lados da porta. Não havia nada na varanda em frente à porta. A rede em que Márcio costumava dormir pela tarde depois do almoço balançava suavemente, mas nada fora do comum. Acontecia todas as noites por conta do vento. O caminho do jardim até o portão também estava tão silencioso quanto todo o resto. Seus arbustos e flores dançavam levemente ao som do vento litorâneo. E, apesar das duas lamparinas na parede exterior não concederem a maior claridade, parecia não haver nada por trás do portão de ferro mal iluminado da entrada que flutuava nas sombras.

Estranhamente aliviado, virou-se de volta para a sala:

— Ora, é só o vento, garoto. É sempre assim desde que ficamos só você e eu, não lembra? — Disse Edmilson, dando uns tapinhas carinhosos nas costas de Billy.

O cão finalmente se virou para ele, agora de orelhas totalmente abaixadas e corpo retraído, como se estivesse acuado. Com ganidos chorosos, aproximou-se e se encolheu perto do dono.

— Vamos, Billy. Pare co...

Cleng! Cleng! CLENG! CLEng!


Ouvindo o barulho, Billy enlouqueceu. Com as orelhas ainda baixas, começou a latir ensandecido em direção a porta. Em direção ao portão lá na frente.

— Mas o que é isso?! — Perguntou-se confuso. Olhou novamente para o portão, mas não viu nada. Deixando Billy para trás, correu até a cozinha. Seu coração batendo forte de repente.

Antes que chegasse onde queria, o som recomeçou:


CLENG! CLENG! CLEng! Cleng! cleng! cleng!


O som variava de intensidade, mas era impossível negá-lo. Havia alguém em seu portão. Talvez só uma criança, um arruaceiro bêbado ou bandido. Seja o que fosse, gostaria de ao menos vê-lo antes que pudesse apontar a carabina em sua direção.

Foi até o lado da geladeira e lá apertou o botão redondo de um aparelho que se prendia à parede. A tela preta do interfone piscou uma vez e, conectando-se ao sistema por alguns segundos, mostrou uma imagem em tempo real da frente da casa.

Com a visão noturna da câmera, Edmilson pôde enxergar melhor. Na parte de baixo da imagem, em preto e branco, via-se o portão. E, acima, a rua vazia e mal iluminada. Além disso, mais uma vez, não havia nada. Completamente desértico.

— Diabos! Só me faltava essa. Agora estou ficando louco, é?! — Sabia que não estava. Seu coração retumbante não o deixava mentir. Atrás de si, embora continuasse rosnando de uma maneira que Edmilson nunca havia visto o dócil cão fazer, Billy parara de latir. Irritando-se com tudo aquilo e, na verdade, ficando bem aterrorizado com a reação estranha do cachorro, virou-se para ele e, aproximando-se um pouco (sem, no entanto, sair da cozinha) gritou: — Pare com isso, Billy! Já!

Edmilson percebeu que estava suando e até mesmo tremendo um pouco. Apesar do barulho, não era evidente o que o estava fazendo ficar amedrontado. Por enquanto, não passava disso: um barulho. Um barulho muito estranho e perturbadoramente alto, é claro, mas, ainda assim, um barulho. O que o apavorava de fato era a maneira como Billy estava agindo. Era... era simplesmente a imagem do medo puro! O terror instintivo que apossa um animal quando diante de uma ameaça pungente e malévola, tão impetuosa em sua perversidade que quase se fazia sentir no ar. E era isso que assombrava Edmilson no momento. Essa presença no ar que ele começava a sentir.

Terminou de esbravejar e tornou a olhar para a tela do interfone, agora não tão próximo:


CLENG!! Cleng! cleng!


O som de metal ressoou novamente, e agora, para sua desgraça, Edmilson via quem o produzia. A princípio, ainda não via nada. Mas, quando se dirigira para o interfone, com o canto do olho, parecia ter percebido algo lá fora. Tinha certeza que vira alguma coisa. Agora não via nada, mas antes... Então, remexeu-se diante da tela, se aproximando e recuando, testando diversos ângulos, como em uma imagem 3D que deve ser virada para tomar alguma forma. Até que, em certo momento, passou a perceber algo: via o portão da frente vibrar fortemente sob os impactos mecânicos de uma barra de aço enferrujada. Via a mão que a segurava, tão longa e flácida. Embora não visse cores além do preto e branco, soube, no mesmo momento, que o tom de pele daquilo variava entre alguma cor que jamais havia visto em pessoa alguma. Aquilo que batia à sua porta era asqueroso. Embora humanoide, não era humano. Era alto – talvez uns dois metros e meio – e erguia-se sobre o portão, empoleirando a cabeça por cima dele feito um cão faminto e louco. A cabeça... Meu Deus! Quando Edmilson viu aqueles olhos, titubeou para trás e, em um movimento desajeitado, segurou-se em uma das cadeiras da mesa para que não caísse no chão.

— Meu Jesus, o que é isso?! — Ele sussurrou incrédulo, atordoado pela revelação. Conforme terminava a frase, as palavras iam morrendo em sua boca, desaparecendo sem que pudessem ser ouvidas completamente.

Os olhos dele olhavam por sobre o portão, para o quintal de Edmilson. Olhavam fixamente lá para dentro da casa, sem, no entanto, jamais se virar para a câmera que captava apenas a lateral degradante de seu rosto. Entretanto, a metade percebida já era o bastante. Naquele rosto, duas pérolas negras flutuavam em meio à uma face pelancuda e viscosa. Olhos redondos e grandes, pretos e sem luz. Em seus interiores, não havia pupila. Apenas a escuridão abismal do ébano negro. A cor do mar profundo quando a noite se eleva. Entre eles, pendendo sobre o que poderia ser chamado de testa, havia uma fina antena. Em sua ponta, uma esfera luminosa.

A aparência do visitante era, de alguma forma, familiar a Edmilson. Fazia-o lembrar de anos atrás, quando, recém-chegados, ele e sua mulher ainda eram estrangeiros naquela vila. Era começo de inverno, 24 de dezembro e sua esposa já andava muito fraca. O frio matinal fazia suas juntas arderem e o peito queimar, assim, por essas horas Edmilson costumava alimentá-la na cama. O vento marítimo já castigava as casas com seu frio intenso, chacoalhando as tábuas e vidraças. O mar se agitava. Eram 6 horas da manhã quando Edmilson acordou e, deixando Helena dormindo na cama, desceu as escadas de madeira com Billy em seu encalço. Ela havia tomado um remédio forte, dormiria mais umas quatro horas, no mínimo. Até lá, ele já teria voltado e poderia ajudá-la. Prepararia um bom café para ela.

Arrumou-se no banheiro do primeiro andar, longe ar viciado do quarto e daquelas pilhas de remédios espalhados sobre a bancada do banheiro da suíte que deixavam a língua de Helena amarela. Ele vestia um casaco pesado e uma capa de chuva preta ia por cima dele. Seus pés estavam cobertos por resistentes botas. Tomou um café reforçado, acariciou Billy e, deixando a casa, desceu a pé pelo caminho que os moradores da região chamavam de Colina da Mata Fechada. Quando já estava na rua que cruzava o fim da estrada de paralelepípedo, pôde ouvir Billy latindo no portão de casa. Andou por três quilômetros sob um céu cinza e volumoso. O vento rasgando-o por debaixo das roupas. A cidade estava vazia, os moradores se abrigavam do inverno em suas casas. Apesar do clima apático, Edmilson sentia uma excitação reconfortante. Passou por uma lanchonete em que costumava – há poucos meses atrás – tomar café pela manhã com Helena e, reconhecendo Sérgio – o dono da lanchonete – fez-lhe um meneio com a cabeça e um aceno com a mão. Sem se mexer, Sérgio deu um trago profundo no cigarro de palha que fumava e respondeu com uma voz arrastada e carregada:

— Dia, seu ‘Dmilson!

Descendo por uma trilha estreita e descendente de terra que cortava por entre árvores e rochedos, Edmilson chegou à praia. O vento ali era ainda mais forte eferoz, fazendo sua roupa sacolejar sem parar. O lugar parecia completamente vazio. Bem à sua frente, um mar cobalto fundia-se no horizonte com o céu, arrastando-se com velocidade por sobre a areia. Ali, ligado a um píer improvisado, um velho barco pesqueiro flutuava em águas mais fundas. Na beira da praia, dois homens o aguardavam. Pelo movimento das ondas, Edmilson viu o casco carcomido da embarcação. Cheio de limo e crostas. Parecia tão frágil em meio àquela imensidão. Lembrando-se de Helena, sentiu uma pontada de arrependimento por tê-la deixado sozinha.

A pesca foi dura e difícil. Durante a navegação, uma tempestade torrencial os surpreendeu. Esperavam chuva, mas aquilo parecia como se os céus os estivessem castigando. O mar se remexia loucamente abaixo deles, fazendo com que Nando, o pescador experiente que convidara Edmilson em uma noite no bar e que agora tomava conta do leme, perdesse o controle do barco. Como um simples brinquedo, a água os girou e arremessou. Nem mesmo tiveram tempo para içar a rede de pesca submersa. Arrastaram-na com eles durante o percurso e, quando finalmente conseguiram atracar com vida em terra, viram o que tinham conseguido. Felizmente, a pesca não fora em vão. Apesar da paz que buscavam não ter sido encontrada.

Havia alguns peixes, como era de se esperar. Alguns que Edmilson reconheceu com seu pouco conhecimento foram: anchovas, pampos, ubaranas e até mesmo pequenas manjubas entrelaçadas. Não obstante, havia entre os peixes algo que nem mesmo os pescadores nativos da região que o acompanhavam conseguiam identificar. Os outros peixes – eles repararam depois e puderam confirmar com os biólogos marinhos que vieram analisar a situação – ostentavam marcas de mordidas pelo dorso e faces. Alguns pontos dos nós da rede estavam claramente roídos, como se algo tivesse tentando fugir desesperadamente. Um tempo depois, perceberam que alguns nós já não estavam mais atados, tinham sido completamente cortados. O que os fez concluir que, se não tivesse sido esmagada pelos outros peixes, aquilo teria conseguido fugir. Provavelmente lutou até seu último instante. Aquilo era – e, novamente, o que foi confirmado pelos biólogos – um Peixe Diabo-Negro. Um animal extremamente raro que, na verdade, jamais havia sido capturado, já que sua natureza abissal os levava a viver nas águas negras do abismo oceânico, a cerca de 3 mil metros de profundidade, onde os corpos humanos não podem aguentar a extrema pressão exercida. Pelo tamanho da carcaça detonada do animal, aquela era uma fêmea, medindo por volta de 14 centímetros. Esse fenômeno repercutiu por toda cidade e por além dela. Por dias e dias, a cidade se tornou alvo de holofotes jornalísticos. A criatura pescada, o Diabo-Negro, embora já morta, era terrivelmente assustadora, e Edmilson jamais esqueceu aquelas formas horrendas. Estava meio esmagada e disforme. A bocarra gigantesca abria-se em direção ao céu feito um alçapão obscuro e espinhoso. Sua antena bio-fluorescente apontava para o alto como um totem grotesco sob o céu que, àquela hora, se tornara lúgubre em sua escuridão. Olhando para aquilo sobre a bancada, Edmilson sentiu um calafrio pelo corpo. Uma sensação agourenta. Olhando para o peixe moribundo, pensou na esposa mais uma vez. Helena deitada na cama e definhando aos poucos.

Era isso que, agora, se erguia por trás de seu portão. Era essa cópia grotesca do que vira no dia da praia. E, embora uma cópia, era mais terrível em seu horror e realismo. Aquilo – aquele peixe vindo de cantos abissais – apoiava-se sobre seu portão feito um cão faminto esperando por comida. A boca preenchida com dentes agudos e finos como agulhas abrindo-se e fechando em uma cena monótona. Edmilson não entendia se ela respirava ou apenas mastigava o ar debilmente. Na imagem preto e branco do interfone, a antena do animal brilhava loucamente, convidando Edmilson a sair pela porta da frente para caminhar até ele.


Cleng! CLENG! Cleng!


Com movimentos bruscos, o animal afastou a protuberante cabeça e investiu com a barra enferrujada contra o portão. Um prisioneiro com sua caneca a bater nas grades de sua cela. Após as batidas, prostrou-se novamente sobre o arco do portão e pôs-se a abrir a boca. Repetindo este processo algumas vezes,

Ao lado de Edmilson, Billy rosnava ensandecido. Apavorado, Edmilson abriu a porta da frente e gritou para o portão, sem, no entanto – e atribuiu isso à falta de luz – ver a criatura:

— Deus! Saía daí! Já! Já! — Estava berrando. Sua voz ecoava pela casa vazia e se dissipava na noite. — Vou chamar a polícia, seu desgraçado!

E, quando já se preparava para fechar a porta para pegar o telefone, Billy passou pelos seus calcanhares e saiu correndo pelo jardim da frente.

— Billy! Volta aqui! — Confuso, correu para dentro da casa em busca da carabina. — Droga, droga, droga. — De dentro da sala, enquanto preparava a carabina e ouvia Billy latir do lado de fora, chamou pelo cão: — Billy! Seu cachorro desgraçado, volta aqui!

Contudo, Billy não voltou. Apenas continuou a latir freneticamente para o portão.

Cambaleando desajeitado, Edmilson correu através da porta com a arma em punhos:

— Billy, Billy! Volte aqui, garoto! — Gritou, sentindo a friagem da madrugada descer por sua garganta. A arma escorregava em suas mãos suadas.

Arfando, alcançou Billy, que rosnava em direção à rua. O coração de Edmilson disparava. Sentia pontadas de dor na barriga. Porém, toda dor se foi quando ele constatou que, por trás do portão, onde antes havia uma assustadora criatura, agora havia apenas o vazio da entrada da casa. Nada mais.

— Billy, para onde ele foi, garoto?! Viu alguma coisa?! — Perguntou tolamente ao cão, parando de vez em quando para respirar.

Billy, de orelhas retraídas e em posição de ataque, apenas rosnava por entre os dentes, rondando lentamente o portão de ferro. Com cuidado, Edmilson destrancou a porta da entrada que ficava ao lado do portão. A porta de madeira maciça rangeu nas dobradiças oxidadas e se abriu para fora. Em silêncio, Edmilson e Billy aguardaram alguma coisa. A rua estava completamente vazia. As pedras que formavam a estrada refletiam as luzes dos postes. O vento fazia a areia embrenhada nas pedras flutuar pelo ar. Na mata, os grilos cricrilavam. Colocando-se para fora dos muros de casa, Edmilson avançou com a carabina empunhada. Billy o seguia em vigília.

— Cuidado, Billy — ele sussurrou para o cachorro.

Subindo a estrada, as casas adormecidas se fechavam em silêncio. Alguns carros descansavam pelo meio-fio. Mirando lá para baixo, onde a ladeira descia agudamente até se encontrar com a rua que a cortava e, para além do asfalto, uma outra parte da floresta, também não encontrou nada.

— Ora, essa... — disse a si mesmo. Trazendo a arma contra o peito e experimentando a sensação de vergonha e alívio.

No entanto, ao olhar para baixo, viu que Billy farejava algo.

— O que encontrou, Billy? — Perguntou, aproximando-se para tentar encontrar algo.

O cachorro girava em círculos em frente ao portão, indo de vez em quando até o meio da rua e depois voltando ao mesmo local que farejava. Com a ajuda dos postes, Edmilson deixou a porta e foi se aproximando de Billy. Já no quarto passo, com horrível surpresa, ele percebeu o cheiro que era exalado daquele lugar. Um cheiro nauseabundo de podridão e algas marinhas pegajosas. O cheiro negro do mar. Ali, o sal parecia suspender-se no ar, impregnando-se em tudo à sua volta. O odor de peixe era enlouquecedor, possível de causar náuseas e fazer os mais fracos vomitarem. Apenas os sopros frios da madrugada amenizavam a situação, afastando um pouco daquele odor asqueroso. Quase palpável.

— Pelo amor, que diabos é esse cheiro?!

Então, olhou para o chão, para os paralelepípedos cobertos por areia. Ali, em uma trilha que parecia vir da mata, pegadas prosseguiam até o portão de Edmilson. E, a um passo de distância de onde ele estava, as pegadas paravam, no epicentro de onde o cheiro se irradiava. A criatura estava ali, a apenas um passo. Estava ali; erguendo-se em uma sombra acima dele e de Billy, talvez olhando para eles hipnoticamente com aqueles olhos aquosos de ébano. A boca aberta respirando o ar a sua frente. Mas eles não o viam. Não viam nada além das pegadas. A ideia de uma presença invisível era assustadora.

Com aquela estranha sensação de estar sendo observado durante a madrugada, Edmilson recuou. Tropeçou em Billy enquanto andava de costas, fazendo o cachorro ganir. Em um frenesi de pavor, engatinhou rapidamente até a porta e chamou pelo cachorro:

— V-vamos, Billy! — Ele gaguejou em uma fala baixa, como se não quisesse despertar a coisa a sua frente. — Direto pra casa, garoto!

Acuado, o cachorro o seguiu. Edmilson bateu a porta atrás de si e trancou-a nas duas fechaduras. Não sabia se duas fechaduras para bandidos seriam capazes de parar aquilo, mas pareceu o certo a se fazer. E foi difícil, porque suas mãos tremiam muito e a carabina dançava em seus braços.

Quando conseguiu, correu para dentro da casa. As lâmpadas à porta oscilavam e piscavam sem parar. Esperou Billy entrar na sala e então trancou a porta principal com uma batida forte.

— Estamos seguros, Billy! Eu vou pedir ajuda, garoto. Vou chamar a polícia.

E, decidido, moveu-se até o telefone na sala que ficava em cima de uma mesinha no canto do cômodo. Tirou o telefone do gancho, mas suas mãos tremiam muito e ele sentia uma angústia tremenda. Queria ligar; pedir ajuda e ficar seguro. Ele e Billy. Porém, havia um pequeno verme dentro dele que se remexia sem parar. Um verme que dizia “e se você estiver vendo coisas? E se?”. Sim, e se? A pergunta brincava no ar.

Vou esperar até de manhã, ele pensou. Porque, de alguma forma louca, naquele momento, aquilo parecia fazer muito sentido. Afinal, não era sempre assim? Como quando a luz da manhã dissipa as coisas hediondas que nos perturbavam em nossos pesadelos, como se nada fossem além de meras ilusões oníricas de sombras disformes. Sim. Sentar-se-ia, esperando pela luz salvadora do sol. A luz da sanidade.

Engolindo em seco, levou a mão tremulante que segurava o telefone até o gancho. Os nós de seus dedos estavam brancos. Depois, estupefato, caminhou até a cozinha sem tirar os olhos do chão. Lá, pousou a .38 sobre a mesa, puxou uma cadeira e colocou-a ao lado do interfone. Na tela, não havia nada. Ajeitando a cadeira em um novo ângulo – como quando conseguira ver a criatura pela primeira vez, mudando o ângulo –, de uma forma que a cadeira ficasse em uma linha diagonal com o interfone, conseguiu ver aquilo outra vez. Seus pelos se eriçaram frente àquela forma. Como era terrível. Ali, observando feito um vigia – quem vigiava quem seria algo difícil de precisar – ele esperou pelo alvorecer. Tentava manter os olhos no pesadelo marítimo, mas, por vezes sem conta, não aguentando a pressão do horror, rendia-se ao medo e desviava os olhos. Billy estava com ele, aninhado em seus pés, que batucavam o chão incessantemente. Edmilson tremia como um motor de carro em um dia frio. Mas aguentou. A luz demorava.

Lá fora, a criatura nada fazia, apenas espreitava por cima do portão em direção à casa, fitando com aqueles olhos vidrados. A cabeça da criatura Peixe Diabo-Negro balançando de um lado para o outro como se nadasse no ar. As guelras repugnantes abrindo-se sem parar, parecendo sondar ou buscar algo ao redor. Já não batia mais no portão com sua barra de ferro. Na verdade, desde que Edmilson começara a observá-lo, aquilo não usou a barra nem uma única vez.

Duas horas se passaram sem que nada acontecesse. A ansiedade corroía Edmilson por dentro, a expectativa do futuro incerto fazendo-o enlouquecer, até que começasse a gritar e praguejar contra a tela do interfone, tentando expurgar aquela praga maldita que se instaurara em sua casa. Expulsar aquilo de sua visão. Exausto, Edmilson dormiu.

Apenas meia-hora se passou até que as trombetas abissais soassem uma outra vez, quebrando o silêncio sepulcral da noite, agora mais carregadas e impacientes do que antes:


Cleng! CLEng! CLENg! CLENG! CLENG! CLEN-CLENG-CL-CLENG!CLENG!CLENG!


Edmilson acordou de sobressalto. A criatura parecia furiosa. Investia a barra de ferro contra o portão em uma imagem que mais parecia um ferreiro em meio à uma intensa e última forja. O coração de Edmilson pesou em seu peito. Sentiu o estômago revirar por inteiro, sabendo que aquilo só poderia ser o prenúncio de algo profano. Ao seu lado, Billy latia. Edmilson olhava sem conseguir respirar para a demonstração de ira daquela coisa. E então, em uma última batida, ela parou. Ficou um tempo sem fazer movimento algum, apenas olhando para frente. Até que, com um movimento lento de cabeça, virou-se para Edmilson, olhando diretamente para a câmera. Olhando diretamente para ele. Pela primeira vez, Edmilson encarou aquele rosto de frente. Contemplando-o em toda sua monstruosidade. Aturdido, Edmilson se perdeu na escuridão dos onixes negros que saltavam daquela face aterradora. A antena luminosa balançava de um lado para o outro; as guelras se abriam e fechavam rapidamente, respirando Edmilson com avidez, sentindo-o e drenando-o. Ainda encarando os olhos perdidos do homem, o portão à frente dela se abriu e, sem cerimônia, a criatura entrou na casa, avançando vagarosamente pelo jardim da frente.

Alucinado com o que via, Edmilson se levantou correndo e, dando a volta na cadeira, pegou a carabina da mesa. Os dedos vibravam enquanto ele puxava o ferrolho e certificava-se de que estava tudo certo.

— Deus, tenha piedade de mim! Por favor... Piedade, piedade... — orou enquanto preparava a arma. Dali, parado sob a luz branca da cozinha, começou a ouvir os passos dele vindo em sua direção. — B-Billy, fique comigo, garoto. Nós vamos sair dessa, vamos sim... Nós vamos...

Com Billy ao seu lado e a arma apontada, eles esperaram diante da porta de entrada. Os passos iam ficando cada vez mais fortes, e havia no fundo de todos eles um som de água parecido com “splash, splash, splash” que quase enlouqueceu o resto de sanidade de Edmilson. Os passos se aproximavam. As luzes lá fora piscavam enlouquecidas. Quando os passos pararam, houve um momento de espera, até que, em um golpe único, a casa toda mergulhou em trevas. A luz havia acabado, e, exceto por algumas poucas e fracas luzes brancas de emergência que havia na sala e na escadaria, estava bem escuro. Com a luz, pareceu desaparecer o zumbido das lâmpadas. Ali, o silêncio da espera era quase tão enlouquecedor quanto os passos molhados. Billy rosnava ameaçadoramente. Com um rangido lento, a porta dupla se abriu. A cena que se seguiu foi grotesca. Pela porta entreaberta, o peixe humanoide contorceu-se para dentro, erguendo-se monstruosamente até o teto. Pouco se via além de sombras e vultos, que eram ligeiramente – e quase nada – revelados pelas luzes de emergência. O que Edmilson via era apenas um gigantesco espectro negro e, no topo desse espectro, flutuando quase como se nada houvesse abaixo dela além de trevas, havia a luz amarela da antena, que iluminava um pouco o rosto daquele ser abominável que se aproximava a passos lentos de Edmilson.

— Por Deus — ele gritou em uma voz vacilante. — Demônio! Saia daqui! — E atirou contra a sombra.

A claridade iluminou o alvo, e a imagem que foi trazida à tona foi capaz de perturbar os cantos mais remotos de sua mente. Com um som borbulhante, a criatura cambaleou para frente, arqueando-se na direção de Edmilson. Mais uma vez, ele atirou. Com a luz do disparo, viu aquelas guelras pestilentas respirando em sua procura. Com um ganido, Billy respondeu ao pavor que o assolou e que evocou a força de instintos profundos demais para que fossem rejeitados. Correndo desvairadamente, Billy fugiu pela porta de trás da casa, embrenhando-se na mata que os rodeava. No momento, Edmilson quase não percebeu a fuga de Billy. Estava aterrorizado demais para qualquer coisa. O odor pestilento se impregnara por todo o lugar, misturando-se com o cheiro quente da pólvora em um amálgama denso e sufocante. Com o segundo tiro, a criatura começou a expelir algo pela boca. Da garganta daquilo, algo enorme escalava para fora. A boca denteada abria-se, expandindo-se mais e mais, até que Edmilson achasse que ela se rasgaria por inteiro e se partiria. De dentro dela, uma cabeça humana começou a surgir. Contorcia-se para fora como um verme gordo e entalado. Primeiro a cabeça, depois os ombros, troncos... Até que, com um baque forte e molhado, caiu sobre o assoalho. Abaixo do tronco não havia mais corpo, mas sim uma bizarra e grossa corda sangrenta feita de carne, como se, a partir daquele ponto, o corpo não tivesse se formado ainda. Esse cordão se ligava ao interior da boca do Diabo-Negro. Era um parto demoníaco e a arma oscilou nas mãos de Edmilson nesse momento. O corpo deformado e recém-nascido começou a se mover em sua direção, rastejando em meio a gemidos de dor e sofrimento que emitia. Daquela massa amorfa, uma voz tumular viajou até ele:

— Querido... Querido, estou com fome... — a voz lamentava. Uma voz afogada pelo sangue. — Que frio... Muito frio, querido. E você me abandonou naquele dia... Você foi pescar e me deixou. Frio demais... E eu sentia tanta dor. Como eu gritei por ajuda enquanto você estava fora. Mas era o que você queria, não era? Por isso saiu de casa, para não me ouvir te chamando, não é, querido? Não era isso, Edmilson? Mas tudo bem, estou te chamando agora, porque sinto muito frio mesmo.

— H-H... Helena?! Não! Não... Não pode ser... Não, não, não, não! — Recuou assustado, porque as mãos molhadas daquilo acariciavam a bainha de sua calça. Puxando-o para ela, para aquele odor terrível de mar, sal e desolação. Para o desespero.

Quueriiido, venha. Estou congelando — a voz sussurrava, meio zombeteira e meio angustiada.

Parecendo estar sem forças para continuar e não tendo a coragem necessária para se desvencilhar daquilo que era uma mimetização fria de sua esposa, ele começou a orar como último refúgio de sanidade. À sua frente, a criatura peixe encarava-o letárgica com a boca aberta esparramando um corpo humano disforme pelo chão. As mãos ansiosas e encharcadas de Helena puxavam suas pernas.

— Não... Não! — Ele gritou e, em um frenesi louco, chutou a forma aos seus pés e saiu correndo, tomando o mesmo caminho que Billy fizera.

Atravessou a porta no fundo da cozinha deixando aquele pesadelo para trás. O ar congelante da noite foi revigorante. Sentiu um pouco de vida retornar aos olhos, embora ainda estivesse consumido por um frenesi intenso. Sem tempo para descansar, correu pelo quintal de trás e, com a carabina em mãos, atravessou a cerca que separava sua casa da mata densa.

— Preciso me esconder, preciso me esconder... esconder — ele falava para si mesmo enquanto corria pelo chão de terra cheio de desníveis e buracos escondidos.

Não ouvia nada à suas costas. Nenhum sinal da criatura. Apenas os sons da noite. Grilos, cigarras, as copas das árvores dançando fantasmagóricas lá no alto e o breu. Ali, Edmilson não enxergava quase nada. Tropeçou algumas vezes em raízes grossas que emergiam do chão como uma infestação de serpentes. Em busca de luz, olhou para cima, buscando a Lua e as estrelas por entre as copas. E lá, emoldurada pelas folhas e galhos, a lua se erguia feito um grande olho a vigiá-lo. Edmilson arfava sem parar. A carabina pesava em seu braço e ela fazia com que ele se desequilibrasse a todo momento. Suas pernas doíam e latejavam. Depois de correr sem parar por algum tempo, pensou em Billy e para onde ele teria ido. Sem pensar, começou a gritar:

— Billy! Billy! Onde você tá, garoto?!

Mas o que adiantava perguntar? Nem mesmo ele sabia mais onde estava. Estava totalmente perdido já. A memória de ter corrido para a floresta há alguns minutos era já uma lembrança vaga em sua cabeça. Sem fôlego, sentou-se atrás do tronco de uma árvore e respirou. Agora, sem o som de seus passos sobre a relva, o silêncio era assustador. Retomando um pouco do fôlego, ele olhou por sobre o ombro, para o caminho por onde viera. A princípio, viu apenas a mata se erguendo como um complexo muro. Porém, cerrando um pouco os olhos, viu algo se mexendo ao longe. Bem longe, quase indivisível por trás do denso arvoredo. Era uma luz amarelada, fraca e opaca. Ela dançava no ar como um vaga-lume, indo de um lado para o outro. Um pêndulo florescente. Exceto que Edmilson sabia o que era aquele pêndulo. A criatura viera buscá-lo. Estava esfomeada e viera saciar-se. Esperara por muito tempo naquele portão para deixar sua presa fugir agora.

— Ah, merda... — Edmilson choramingou ajeitando a carabina no peito. Começava assentir frio ali.

Não adiantava fugir, não tinha mais forças para correr. Sentia pontadas na barriga que não o deixariam andar mais do que três metros. Então esperou. Voltou a cabeça e, prendendo a respiração, aguardou em silêncio com as costas colada ao tronco da árvore. A respiração saía fria por entre os dentes e pela boca entreaberta. Por sob os sons das cigarras, Edmilson pensou poder ouvir alguma coisa. Passados alguns segundos, teve certeza. Ouviu o som de passos pesados vindo em sua direção e de algo molhado que se arrastava pesadamente pela terra.

Súbito, um gemido diabólico cortou a noite à sua procura:

— Queriiido... — a voz morta de Helena pairou no ar. — Me ajude! Estou perdida e com frio... Sei que tá aí, Edmilson. Preciso da sua ajuda, não vai me ajudar, querido?

Por trás da árvore, Edmilson concentrou-se para não berrar. Encolheu-se mais um pouco e rezou. Aquele chamado terrível e solitário parecia vir de todos os lados, emergindo de lugar nenhum. Às vezes próximo e às vezes distante, um pedido sussurrado ao longe. Não era sua esposa. Sabia que não. Parecia muito, quase podia se confundir, mas havia algo no fundo daquela voz mimetizada que... que não era humano. Algo que rasgava o véu do familiar e do conhecido. Um som estranho de água, como se ela se afogasse em cada fala.

Rezando em silêncio, Edmilson continuou esperando. Suas mãos juntas tremiam e suavam. Ele pensava em Billy. Queria saber se o cachorro estava bem. Sabia que para Billy tê-lo abandonado é porque devia estar com muito medo ou fora de si. Billy nunca teria feito isso em outras condições... Tinha certeza disso.

Fazendo Edmilson emergir de seus devaneios com um susto, algo frio caiu em sua testa. Abriu os olhos rapidamente. Estava chovendo? Não. À sua frente, por trás das copas, o céu estava limpo. Receoso e com o corpo vibrando, olhou para cima, para o lugar de onde viera o pingo. Quando ergueu a cabeça e seus olhos percorreram o tronco da árvore que se erguia em suas costas, deparou-se com um rosto sardônico a observá-lo. Dois, na verdade. Logo acima dele, o corpo de Helena dependurava-se na árvore de cabeça para baixo, balançando suspensa no ar como uma condenada de uma forca. Ela sorria para ele, fazendo escorrer uma água negra de mar pelos cantos da boca. A língua dentro da boca dela mais parecia uma lagarta viscosa e inchada. E ele pôde perceber que estava amarela. Enojado, Edmilson sentiu um bafo marítimo deslizar para fora daquilo. Um odor hediondo que o fez lembrar dos remédios que a Helena real tomava naqueles dias. Ele a encarou atônito por alguns momentos. Não conseguia nem se mexer. Antes que pudesse gritar e correr, olhou ainda mais para o alto: acima do corpo dela, segurando-a pendurada por meio da corda de carne que saía de sua boca, o Diabo-Negro observava Edmilson com seus olhos de ébano. A antena balançava de um lado para o outro, iluminando aquele rosto demoníaco de peixe que fitava Edmilson. A criatura estava pendurada como uma aranha no alto da árvore. De sua bocarra aberta, uma baba densa escorria em cima de Edmilson. O cheiro era insuportável.




16/01/2007 – Última página do Jornal Diário Caiçara

O Corpo de Bombeiros de Ipojuca, no litoral de SP, faz buscas por um homem que desapareceu de sua casa, na madrugada desta terça-feira (15). Conforme a corporação, Edmilson dos Santos Lopes, de 56 anos teria desaparecido pela madrugada. Moradores alegaram ter escutado barulhos suspeitos durante a noite. Quando as autoridades chegaram ao local, o portão da casa estava aberto, assim como a porta da frente, embora não houvessem sinais de arrombamento. Dentro da residência, grandes marcas de água – que ainda estão sendo investigadas – foram encontradas pelo chão. Além disso, esta manhã o cachorro de Edmilson – que também estava desaparecido – foi encontrado com o pescoço quebrado a apenas alguns metros adentro da mata que cerca as casas da região. Ao que tudo indica, o animal perdido teria caído em um buraco no chão e já estaria morto quando as autoridades chegaram ao local.

20. März 2020 12:18 4 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

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Guilherme Rubido Olá, que bom que conseguiu chegar até aqui. Seja muito bem-vindo. Por favor, tire o tênis e sinta-se em casa. Parece que começou a chover. Consegue escutar? É uma chuva daquelas... Teremos muito tempo até que pare. Sendo assim, escolha um assento e fique confortável. Aqui veremos muitas coisas horríveis, então, prepare-se. Tem café quente na mesa e bolachas no armário de cima (não mexa no de baixo, não vai gostar do que tem lá dentro). Caso goste do que viu, não se esqueça de deixar uma gorjeta (like) ou comentário para o escritor, ele agradece pela sua cooperação. Para o caso contrário, deixe um comentário com sua reclamação, estamos sempre tentando melhorar. Espero que se divirta. :)

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Thayná Garcia Thayná Garcia
Olá, primeiro preciso dizer que fiquei agoniada com o pobrezinho do Billy. Você conseguiu me deixar aflita como se estivesse assistindo a um filme onde o cachorrinho fica em perigo. De verdade me deixou perplexa o jeito como escreve :O Parabéns pelo talento. Achei tudo muito bem descrito, com metáforas nos pontos exatos, um medo genuíno na tensão que você foi criando, cena por cena, paragrafo por paragrafo, só fazia me deixar tensa. Achei o máximo como construiu essa sensação. Digo isso por que sou difícil de ler muita coisa, mas sua história me fez ter vontade de terminar. Não tenho muito o que dizer, fora um errinho ou outro, mas isso é normal. Ficamos tão focados na história que as vezes nos escapas uns erros, mas nenhum foi ruim suficiente para me tirar da história que você contou. Tudo muito limpo e bem organizado, com toques sutis de realidade misturado a de ficção. Me impressionou. Vou te seguir, desejo ler mais histórias de terror como esta. Obrigada por ter escrito :)
October 26, 2020, 22:03

  • Guilherme Rubido Guilherme Rubido
    Olá, Thayná. Tudo bem? Nossa, adorei seu comentário. É sempre difícil saber por onde começar a responder, então sempre tento iniciar agradecendo. Só tenho a agradecer pelo seu comentário e pela review que você deixou. Isso faz uma diferença ENORME. Muito obrigado. Que bom saber que consegui passar um pouco do que queria no texto. A tensão, as metáforas deslizando por trás das cenas, o medo pelo Billy, haha. Coitado. É difícil culpá-lo por ter fugido nessa situação. E que legal que o conto conseguiu te trazer pra fora da realidade por um tempo, sempre acho meio mágico quando isso acontece. Acho que é o que nos faz amar a leitura, não? Você tem razão sobre alguns erros. E é como você disse, é tanto tempo com o mesmo texto que acabamos por nos perder nos próprios vícios e erros. Confesso que esse é um conto que escrevi e revisei meio às pressas. Tenho que pegar algum dia pra sentar e fazer os ajustes necessários. Espero poder vê-la por aqui mais vezes. Tenho outros contos e talvez você goste de alguns deles. Quem sabe. Enfim, eu é que agradeço pela sua leitura, comentário e review. O/ :) November 01, 2020, 20:41
Leonardo Aquino Leonardo Aquino
Olá, passando pra dizer que… wow! / O conto é grande, mas em determinado momento eu realmente me surpreendi por já estar quase no final. Eu não sei se foi proposital, mas as próprias lamparinas solitárias no começo do conto já simulam um pouco o que está por vir (se foi, achei incrível! Haha). / Uma coisa que ficou incrivelmente bem montada foi a sua transição para o passado e depois a volta ao presente. Foi sutil e muito efetiva. Mesclou muito bem com o texto. / No começo os parágrafos longos podem atrapalhar um pouco porque ainda tem pouca coisa acontecendo, mas eles são essenciais conforme a tensão cresce e se tornam uma espera sufocante para a próxima ação. / É muito fácil se simpatizar com o ‘Dmilson e eu queria gritar com o Billy quando ele saiu correndo pela porta, coitado haha. / Ia sugerir só caçar alguns pequenos errinhos que passam quando você se acostuma com o texto, como por exemplo: “Agora não via anda” e “sua esposava já…” acho que tinha mais um, mas perdi. Não atrapalha em nada, mas o conto está tão absurdamente incrível que só apontando esses pequenos deslizes para deixá-lo ainda mais perfeito :) / Enfim, definitivamente quero ler mais coisas suas, vou te seguir por aqui haha. / É isso, obrigado pelo conto! :)
April 11, 2020, 21:45

  • Guilherme Rubido Guilherme Rubido
    Olá, Leonardo! Bom, pra começar, muito obrigado pelo seu comentário e pela review! Eles fazem toda a diferença para mim e me dão motivação pra continuar escrevendo. Obrigado. Agora, vamos mergulhar (haha) no conto. Confesso que tenho uma certa dificuldade em manter meus contos pequenos. Começo a escrever e, quando vou ver, já estão gigantescos. Pode ser que isso seja um problema, mas, enquanto eles estiverem me divertindo e divertindo outras pessoas, eu sinceramente não me importo muito, haha. Realmente, o início pode acabar soando meio arrastado, mas, como você disse, acho que ele é indispensável para o desenrolar da trama. Acho que sem ele - sem que se entenda o peso que o Edmilson carrega, seu passado e sua rotina atual - as coisas que acontecem não teriam o mesmo impacto. O Edmilson é aquele tipo de senhor que gostaríamos de sentar e ouvir ele contar suas histórias por horas, haha. E o que falar do pobre Billy? Apesar da raiva, é difícil julgá-lo. Ele veio sendo corajoso ao longo de toda história e, de repente, fugiu. Vai saber o que ele sentiu... É, às vezes idas ao passado podem ficar confusas ou deslocadas. Que bom que consegui fazer sem deixar o leitor perdido. Esse fragmento de memória é uma das minhas partes favoritas do conto. É ela que conecta tudo. As lamparinas "flutuando ao fundo" são um misto mesmo. Servem para a ambientação da cidadezinha e também como essa representação que você citou. É como se, de alguma forma, as lamparinas fossem memórias mal-resolvidas do Edmilson que, apesar de estarem distantes e escondidas no horizonte, ainda estão lá, brilhando. Ao menos é uma das interpretações. Quanto aos erros, só posso me desculpar. É sempre um desafio peneirar tudo sozinho, algumas coisas acabam passando mesmo. Mas como disse em um outro comentário meu, esses comentários me ajudam nesse desafio pra melhorar o texto, haha. O "vicio" no texto é sempre complicado... Pode deixar que vou corrigir tudo isso o mais rápido possível! E sempre que você encontrar algum erro ou crítica pode comentar sem problemas! Enfim, eu é que agradeço pela sua leitura e fico feliz que o conto tenha conseguido te prender até o final sem você perceber. Espero que, caso você venha a ler outros contos, possa encontrar um pouco de diversão em cada um deles. Espero encontrá-lo mais vezes! o/ April 12, 2020, 19:11
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