wilherdeoliveira Wilher O.

Um médico cardiologista se vê em dúvida sobre as escolhas que fez. No final das contas, será que nós realmente sabemos o que estamos fazendo de nossas vidas?


Kurzgeschichten Alles öffentlich.

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Kurzgeschichte
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Capítulo Único

César Magno Costa. Esse era o meu nome. Uma pessoa como você, seu vizinho, aquela empacotadora do mercado e todas as outras do mundo. Eu sempre tive um sonho. Quando era uma criança, apesar de nunca estar satisfeito, e sempre mudar o rumo das brincadeiras, eu sentia que ser médico era algo definitivo. Na adolescência, namorei muitas meninas; às vezes simultaneamente, mas nunca por muito tempo, pois quando estava com uma delas, sempre desejava estar com outra. Não entendia muito bem o porquê, e, apesar dos constantes apuros, segui adiante.

Me formei em medicina e me especializei, com algum esforço. Sabia que aquilo era o que eu tinha que fazer, e, assim, foi. Trabalhei em meu consultório como cardiologista por dez anos.

O tempo foi passando e mantive em exercício meu ofício. Me sentia bem por ajudar aquelas pessoas, além de ganhar satisfatoriamente por isso. Mas também me sentia exatamente como quando era criança. No fundo, entediado, eu já desejava mudar a brincadeira. Comecei então a me sentir escravo daquela rotina, daquela sala, e até daquelas pessoas.

Passei a beber todos os dias. Não era casado, não devia satisfação a ninguém. Havia encontrado uma forma de relaxar e me sentir mais bem humorado no final da noite. Após o expediente, bebia em casa, em bares ou na casa de amigos, mas, religiosamente, todos os dias eu bebia. Em pouco tempo, me tornei escravo do álcool. Isto me prejudicou no trabalho e também na relação com meus pais e irmã. Decidi então, com a ajuda de um grupo anônimo, largar o hábito, definitivamente.

Iniciei uma rotina de exercícios diários e alimentação regrada. Usava a rede social para mostrar o progresso e, assim, me manter motivado através do feedback positivo. Segui firme por dois anos. Para acelerar o processo, fiz uso de recursos ergogênicos, e o resultado foi rápido e expressivo. Continuava indo ao consultório todos os dias, mas confesso que me “arrastava para a forca”. Passei a atender menos pacientes diariamente, pois passava um bom tempo nas redes sociais no intervalo entre um e outro. Como resultado, minha reputação como bom medico foi se dissolvendo. Eu não me importava muito, até que o custo do meu estilo de vida, que não era lá muito humilde, começou a me cobrar mais empenho profissional.

Certo dia, em uma manhã chuvosa, acordei às quatro da madrugada e agarrei o aparelho celular, ansioso para ver a quantidade de comentários e elogios, referentes a foto que postei antes de dormir. Me senti mal quando percebi que os números não superavam os da imagem anterior. Aquele dia foi péssimo. Então, após perceber que minha relação com o trabalho — ao contrário do que eu imaginava quando comecei a nova rotina —, havia piorado, tomei uma decisão. Refleti muito sobre a dependência psicológica que o ambiente virtual estava me causando, e, novamente, me sentindo escravizado, decidi desinstalar todos os aplicativos sociais que possuía.

Algum tempo depois, minha motivação em manter os exercícios e a alimentação havia desaparecido. Após retomar os velhos hábitos, sentindo novamente o calor aconchegante dos carboidratos contidos em um suculento pedaço de pizza, desenvolvi uma severa compulsão alimentar. Engordei vinte quilos. Conseguia atender apenas um paciente por dia e, devido ao declínio profissional, voltei a morar na casa de meus pais.

Por vezes, não ia trabalhar. Os pobres pacientes esperavam a minha chegada em vão. Não queria sair de casa naqueles dias. Meu desejo era apenas pedir comida e escrever sobre esportes. Havia encontrado uma coisa que novamente me dava prazer. Às vezes, me lembrava de como era a minha rotina com aquela dieta restritiva e, rindo de mim mesmo, me perguntava como eu conseguia ser um escravo daquilo, em virtude apenas da estética.

Certa tarde, após enviar os textos esportivos que escrevia para um amigo, este que trabalhava em um jornal importante, recebi um telefonema me convidando para escrever uma coluna diária na seção de esportes. Eu, apesar de estar muito animado com a ideia, questionei sobre o fato de não ser uma referência no assunto e o quanto isto poderia atrapalhar na aceitação dos leitores do jornal. A voz do outro lado me tranquilizou, afirmando que não haveria problema quanto a isto; e que dependendo do retorno dos leitores, meu trabalho seguiria ou não. Desliguei o telefone entusiasmado com a minha mais nova profissão.

O consultório já fazia parte do meu passado. A rotina de médico era algo que eu ainda sonhava algumas noites, revivendo algumas situações, mas que agora se resumia apenas a lembranças. Certo dia, agora pesando trinta quilos a mais, me senti muito cansado ao cruzar a sala, caminhando até a cozinha rumo a geladeira, na tentativa de ainda encontrar um dos dez confeitos que havia comprado na manhã do dia anterior. Minhas pernas fraquejaram e meu coração disparou; tive que me apoiar em uma das paredes para não cair no chão. Como cardiologista, eu sabia o porquê. Enquanto me recuperava, senti uma tristeza enorme, ao me dar conta de que precisava de uma reeducação alimentar urgente, pois eu agora era um escravo da comida.

Voltei a me alimentar de forma mais correta. Sentia-me triste por não poder mais devorar aquela pizza inteira sozinho, mas com a ajuda da minha família, e do novo trabalho, segui adiante.

Às vezes pensava sobre me casar. Mas o atual estado físico em que meu corpo se encontrava, talvez não me permitisse mais me relacionar com as mulheres “saradas” que sempre me atraíram. Apesar de nunca engatar um namoro sério, até algum tempo atrás, quando eu ainda atuava como médico, saia com várias mulheres diferentes, quase todos os finais de semana. Me sentia agora aprisionado à solidão; exatamente como no passado, mas em relação ao casamento.

Passados dois anos, ao ser cobrado pelo editor do jornal pelo texto que seria publicado na manhã seguinte, me senti frustrado. Pensei que não queria escrever nada naquele dia. Senti que precisava de alguma coisa diferente. Lembrei da minha infância e meu estômago embrulhou. Me dei conta de que, naquele momento, novamente, eu queria mudar a brincadeira...

Escrevia agora desmotivado. O resultado era percebido nas linhas, pelo jornal, pelo editor e também pelos leitores. Fui substituído. Na noite seguinte, meu pai teve um infarto fulminante. Foi a pior noite de minha vida.

Passei um mês em casa, trancado, deitado em minha cama. Não aguentei a tristeza e, no terceiro dia, na busca de me sentir um pouco melhor, voltei a comer de tudo: Pizzas, chocolates, hambúrgueres e confeitos. Na minha cabeça, sentia que havia cometido um enorme erro ao abandonar minha profissão de médico. Imaginava quantas vidas, como a de meu pai, poderia ter ajudado a manter. Novamente me sentia um escravo, das minhas escolhas, de meus prazeres, de minhas fraquezas e de minha própria vida.

E então, eu morri.

E assim como meu pai, por ironia do destino, este cardiologista morreu do coração. Comecei sentindo a respiração pesar, o braço formigou, o suor brotou nas mãos e finalmente a dor... Esta última veio com bastante raiva de mim, decidida a me levar. Justo naquela noite de quarta-feira, enquanto assistia ao futebol, saboreando uma deliciosa fatia de pizza de pepperoni.

Até que foi uma bela morte...

Quando cheguei aqui, esperei um pouco em um lugar escuro. Não conseguia ver nada, até que o primeiro relâmpago clareou tudo. Pude ver, por menos de um segundo, várias silhuetas de pessoas que pareciam estar aguardando algo, exatamente como eu. Consegui também ouvir alguns sussurros, mas ninguém parecia conseguir conversar.

Bem... e eu também falei com Deus. Sim. Ele me disse que eu sou um escravo.

Mas não um escravo das brincadeiras que me entediavam na infância...

Não um escravo das meninas que namorei e nunca consegui me apaixonar...

Ou da medicina e dos pacientes que tratei. Tampouco fui um escravo da minha dieta restritiva e da minha compulsão alimentar... dos meus vícios... do meu corpo... da coluna no jornal...

E então eu percebi... que sempre fui um escravo de mim mesmo. Um escravo de minha própria incapacidade de entender que a vida é feita de momentos curtos, que na maior parte do tempo, estará recheada, como uma grossa borda com catupiri, de responsabilidades tediosas e dificuldades duradouras.

E então, agora, eu estou aqui... esperando...

Não sei se já fazem mil anos, ou dez segundos... Apenas estou aqui, aguardando a oportunidade que ele me concedeu. A de novamente nascer.

Reflito sobre o que aprendi, e me esforço ao máximo para não me sentir novamente um escravo... Desta vez, da morte...



*** Gostou do conto? Me inspire a continuar escrevendo, deixando uma crítica ou clicando no coração. Obrigado amigos. Abraço! ***

22. November 2019 03:45 2 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

Über den Autor

Wilher O. Amante de café e ficção.

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Felipe Moreira Felipe Moreira
Excelente, me fez refletir ate na minha própria vida embora eu ainda seja novo.
February 24, 2020, 21:34

  • Wilher O. Wilher O.
    Obrigado pelo elogio, Felipe. Fico feliz em ter proporcionado a reflexão. February 29, 2020, 16:28
~