wilherdeoliveira Wilher O.

Helena é uma enfermeira de trinta e sete anos que trabalha em um hospital público, dando plantões noturnos de doze horas. É conhecida por ser uma mulher séria e de poucas palavras, mas que também leva seu trabalho muito a sério. A internação de um novo paciente, no quarto vinte e três, mexe com suas emoções, e talvez mude a forma como vê a vida para sempre.


Kurzgeschichten Alles öffentlich.

#vida #morte #amor #hospital #Enfermeira #idoso #pai #filha #mãe #avó #Plantão #trabalho
Kurzgeschichte
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Capítulo Único

Aquela noite de Outono passava lentamente. Exatamente como todas as outras noites do ano, vividas por Helena, dentro daqueles corredores gelados. Ela observava distraída, com seus olhos castanhos e distantes, a parede branca a sua frente, imóvel, enquanto pensava nas milhões de possibilidades que justificariam a origem de seu sobrenome Fernandes. Pensou que poderia ter existido uma família, onde todos os homens e todas as mulheres eram chamados de “Fernandos” e “Fernandas”, ou que talvez algum espanhol louco, apenas tenha exclamado a palavra, ao bater com o joelho em um hidrante, apaixonando-se pela forma como aquilo havia soado. Seus vagos pensamentos são interrompidos por uma das duas enfermeiras que tomavam café ao seu lado, avisando-a de que a água, que enchia o copo descartável que segurava, transbordaria ― o que foi em vão, pois naquele exato momento, Helena sentia o líquido gelado escorrer pelos seus dedos.

― Droga! ― resmungou nervosa, enquanto olhava para trás e balançava a mão molhada, na tentativa de secá-la. Fazia isto ao mesmo tempo em que procurava ao redor, aflita, a chefe das enfermeiras, temendo que “a megera” houvesse visto aquele pequeno descuido.

― Está apaixonada, é? ― brincou uma das enfermeiras, mesmo sabendo da constante cara emburrada e da pouca conversa de Helena.

― Não tenho tempo pra esses besteiras ― disse com uma das sobrancelhas levantada. ― Ao contrário de algumas colegas aqui, eu trabalho duro neste hospital.

― Nooossa! Tá mais bruta que o normal. Cruzes...

― Aproveita então que você é tão trabalhadora, e assume o quarto vinte e três ― diz a outra enfermeira. ― Chegou um idoso ontem muito mal, tadinho. Meu turno já tá acabando. ― em seguida bebeu o último gole de seu café.

― Qual é o quadro? ― perguntou Helena.

― Uma úlcera não tratada que evoluiu para um câncer. O pobrezinho mora sozinho em uma casinha no Bairro Conde Azul. Um vizinho que trouxe ele. Não o via há alguns dias e resolveu entrar na casa pra procurar. Sorte que ainda estava vivo, deitadinho na cama, mas tá muito ruinzinho.

― Já foi medicado? ― indagou novamente Helena.

― Botei no soro e apliquei analgésico. Ordem do Doutor. Coletaram material na endoscopia e já fizeram biópsia de manhã, parece que não tem jeito não.

Helena bebeu a água em dois longos goles e virou-se, deixando as outras duas enfermeiras para trás. Após atravessar o longo corredor ― com seus cabelos loiros e esvoaçantes ―, ela entrou no quarto vinte e três, onde estava o idoso grisalho e moribundo; pegou a prancheta, contendo os dados do paciente, e então olhou para ele, que encontrava-se adormecido.

― Senhor Evaldo Moreira... ― Helena sussurrou o nome do paciente e, após uma breve pausa, encarando-o com condolência, virou-se, deixando o quarto. Permitindo assim que o homem repousasse.

Ao final de seu plantão de doze horas, chegando em casa, às oito da manhã, Helena encontrou sua mãe na cozinha, preparando o café.

― Bom dia, querida. Já vai descansar agora, ou quer comer alguma coisa antes?

― Não estou com fome, mãe. A Vó já acordou?

― Ela tossiu muito ontem à noite, acho que vai custar pra acordar hoje.

― Não esquece a hora do xarope dela. Vou deitar um pouco.

― Não fica sem comer de novo, Helena Maria.

― Odeio quando me chama assim ― Helena resmungou, entortando a boca.

― Você ainda odeia o seu nome? Tá com trinta e sete já, devia “de ter” acostumado.

― Já disse que não odeio o meu nome, mãe! Só falei aquilo, há trezentos anos atrás, porque também queria ter um sobrenome de pai.

― Ai, ai... Esse assunto de novo, minha filha...

― Você quem começou. Aliás, já que estamos falando disso, aproveita que a Vó tá dormindo, e me fala mais do meu pai. Ele morreu de quê mesmo?

― Um negócio lá do coração... ― A mãe de Helena desviou o olhar para a cafeteira, demonstrando claramente não estar à vontade com o rumo que a conversa havia tomado. ― Ih olha, tá pronto! ― a idosa exclamou, caminhando em direção a pia da cozinha.

― Por que é sempre assim? A Vó só fala que meu pai era um vagabundo, e você sempre mudando de assunto. Já sou adulta e trabalho para ajudar a manter a casa. Acho que mereço respostas menos esfarrapadas.

― Minha filha, eu já te falei. Seu pai era um homem complicado. Ele não gostava de trabalhar, bebia e era festeiro. Sua avó detestava ele. Ele não ligava pra gente não, esquece isso.

― Vou dormir... ― resmungou Helena, dando as costa à sua mãe, para, em seguida, entrar no banheiro, batendo a porta.

Depois de tomar uma ducha quente, Helena deitou na cama e fechou os olhos, tentando dormir. Seus pensamentos voltaram àquele idoso, no quarto vinte e três, e novamente sentiu pena do homem, perguntando-se como uma pessoa poderia passar sua velhice daquele jeito, sozinho e abandonado por filhos e netos.

Ás quinze horas e trinta e seis minutos do mesmo dia, após descansar por algumas horas, Helena foi até a geladeira e retirou um pote, que sua mãe deixava todos os dias com o seu almoço. Enquanto esquentava-o no micro-ondas, refletiu sobre a conversa que teve com sua mãe pela manhã.

Na noite seguinte, ao retornar ao hospital, iniciando mais uma jornada de doze horas de plantão, Helena medicou uma criança de sete anos, que havia dado entrada com febre alta naquela tarde. Após terminar o atendimento, ela se deslocou até o quarto vinte e três, para ver como andava aquele senhor, que chegara tão mal, um dia antes. Para sua surpresa, o idoso estava acordado e bem lúcido. Os medicamentos administrados pareciam ter, de fato, causado algum alívio.

― Boa noite, Senhor... Evaldo Moreira. ― Helena checou novamente a ficha do paciente, relembrando o nome que, há pouco, evocou insegura na memória.

― Boa noite, querida. Como vai?

― Bem. O senhor sente alguma dor? disse Helena, séria como de costume.

― Agora não, minha filha. Graças a Deus.

― Vou recomeçar a soroterapia e administrar mais alguns medicamentos que o doutor, que está cuidando do senhor, prescreveu, ok?

― Tá bom, minha filha, obrigado ― o homem falou em um tom sereno e baixo, sempre soando como alguém muito cansado.

O idoso observava Helena atento; seus olhos a seguiam curiosos, enquanto a enfermeira fazia o seu trabalho.

― Qual o seu nome, filha? ― o homem moribundo perguntou, com um sorriso tímido e inocente.

― Helena ― disse seca.

― Era o nome de minha filha ― disse o idoso, com um sorriso emocionado.

― Era? O que houve com ela? ― disse Helena, com os braços levantados, pendurando uma nova embalagem de soro fisiológico no suporte, ao lado do leito.

― Ela morreu na barriga da mãe. ― O homem desviou o olhar, que agora parecia distante, como se embarcasse em um navio que o levara mais de trinta anos no passado.

― Que triste, Senhor Evaldo... E a mãe dela, sua esposa, vive com o senhor?

― Não, querida. Eu sou um velho que vive sozinho. ― O homem virou a cabeça para o outro lado e suspirou lentamente, fechando os olhos em seguida; nitidamente cansado, devido ao esforço exigido pelo simples ato de falar.

Helena virou-se e saiu do quarto, após diminuir um pouco a luz.

Na manhã seguinte, ao chegar em casa, Helena novamente não comeu nada. Sua mãe não estava na cozinha naquele dia, o que não era de costume. Apesar de estranhar o fato, ela apenas tomou banho e deitou, cansada. Novamente, seu pensamento foi de encontro aquele senhor, e ao que ele havia dito sobre ser um velho solitário. Helena sentiu-se triste. Ficou brava, imaginando que tipo de pessoas deixariam uma alma só, bem na reta final de sua vida.

Ao acordar, estranhou não achar na geladeira, o pote com seu almoço. Lembrou que não via sua mãe desde que saíra para trabalhar, e decidiu subir as escadas até seu quarto, para averiguar o porquê. Ao abrir a porta, viu sua mãe deitada, dormindo.

― Mãe ― chamou em voz baixa, para não assustá-la. ― Mãe? ― Helena chamou novamente, desta vez em um tom mais firme, preocupada com a ausência de um retorno.

Sua mãe então abriu os olhos lentamente.

― Oi, minha filha ― disse a idosa, com a voz trêmula e fraca.

― O que houve, mãe? Tá tudo bem? ― disse Helena, levando a mão até a testa de sua mãe, para, em seguida, concluir que ela estava ardendo em febre.

― Estou me sentindo mal, acho que é gripe.

― Nossa! Você está ardendo em febre. Vou pegar um antipirético. ― Helena se apressou e desceu as escadas, voltando em seguida com o medicamento. Antes de entrar no quarto de sua mãe, parou, em frente a porta ao lado e a abriu, conferindo a avó, que estava deitada e dormindo, como de praxe.

― Toma, bebe a água, devagar. ― Helena apoiou com a mão a cabeça da mãe, e a ajudou a engolir a água junto ao comprimido. ― A Vó tá tossindo muito ainda? ― perguntou.

― Você devia ir vê-la. Faz tempo que não entra naquele quarto.

― Eu vou... Você sabe, mãe... Eu e a Vó, nós nunca...

― Eu sei, filha... Mas nós estamos velhas... a qualquer hora, você sabe... Precisamos deixar o passado, no passado.

― Você acabou não me respondendo. Como ela está?

― Está melhor. Daquele jeito, né... dorme quase o dia todo, mas parou de tossir.

― Vou preparar alguma coisa para você comer. Deve estar em jejum desde ontem. ― Helena levanta-se e vira em direção a porta, caminhando apressada.

― Filha! ― exclamou sua mãe, com a tonicidade que sua condição permitia.

― Hum? ― disse Helena, virando-se, já de frente para a porta.

― Eu pensei muito sobre o que você me disse... Acho que tá na hora de te falar sobre o teu pai.

Helena sentiu seus lábios separarem-se levemente, enquanto que, sem piscar, olhou fixamente para sua mãe, que suspira.

...

Algumas horas se passaram... Helena atentamente ouvia, alimentava e medicava sua mãe.

― E foi isso, minha filha... Me perdoa por não ter contado tudo antes. Sua avó sempre foi muito difícil, você sabe... E eu sempre fui boba, de cabeça fraca, insegura... Na época, eu era mais jovem que você, e ela era ainda mais severa; principalmente depois que seu avô morreu. Acho que ela pensou que devia ser mais dura ainda, pra poder aguentar as dificuldades sozinha. Me desculpe...

A mãe de Helena chorou, após contá-la que seu pai, na verdade, fora um músico, que trabalhava em vários bares e clubes, nas madrugadas da cidade, seguindo atrás de seus sonhos, mas que, regularmente, não era bem remunerado. Por esta razão, sua avó não o aceitara; seu pecado era haver escolhido uma profissão difícil, a qual amava.

― Mas então, ele não tá morto?

― Não sei dele, desde que a sua avó descobriu a gravidez, e me fez desmanchar o namoro. Eu disse que tinha perdido o bebê, pra ele não me procurar mais...

― Qual era o nome dele, mãe? Você nunca me disse! disse Helena, com os olhos marejados.

― Minha querida, por favor. Já faz tanto tempo...

― Mãe! Eu mereço saber, pelo menos, o nome do meu pai!

A mãe de Helena tampou os olhos com uma das mãos e chorou ainda mais, relutando em dar a informação que ela pedia.

― Você promete que não vai atrás dele? Se a sua avó souber... Ela já tem muita idade.

― Pelo amor de Deus, mãe! A Vó nem entende mais nada direito, nem sai mais daquela cama. Tá na hora de você se libertar disso!

― Era Carlos, filha ― a mãe de Helena falou em prantos.

― Carlos...

Um turbilhão de emoções invadiu a mente de Helena. Ela imediatamente se lembra do idoso, em estado terminal no hospital, e imagina seu pai desconhecido naquela situação. Talvez por ter a figura daquele homem moribundo, o qual sentiu-se solidária, recentemente inserida em sua memória, acabou por projetá-la na imagem que não tem de seu pai.

― Carlos de que, mãe?

― Cruz...

― Carlos Cruz? Só isso?

― Sim. Foi o que ele me disse. Eu era jovem, minha filha. Conheci ele no clube, cantando e tocando violão. Eu boba, me apaixonei. Nem quis saber muito dele, só me sentia feliz com ele, livre... Daí você sabe, né... gente nova só faz “bobage”.

― E como ele era?

― Loirinho, igual a você.

Helena manteve-se pensativa por alguns minutos, enquanto sua mãe, aos poucos, adormecia.

No dia seguinte, após uma noite mal dormida, Helena decidiu investigar, sem o conhecimento de sua mãe, o paradeiro de seu recém descoberto pai. Ligou para um amigo policial ― cuja a atenção dedicada para com sua mãe, que esteve internada por alguns meses no hospital em que Helena trabalhava, fez nascer uma forte amizade ―, e pediu que ele procurasse algum registro ou informação, referente ao nome de Carlos Cruz. Ficou desapontada, ao receber, alguns dias depois, uma ligação com retorno negativo. Naquele mesmo dia, após iniciar seu plantão, pediu que a amiga da recepção do hospital olhasse nos registros alguma entrada com aquele mesmo nome, mas novamente, não obteve sucesso.

Os dias foram passando e Helena acabou conformando-se com a improbabilidade de encontrar alguma informação relacionada ao paradeiro de seu pai. Seguiu com sua vida, sentindo-se até um pouco mais aliviada, por agora, pelo menos, saber o nome dele; e também pelo fato de sua mãe, finalmente, ter confidenciado toda a verdade a ela.

O senhor, que agora residia no quarto vinte e três, definhava lentamente a cada dia. Helena via-o com empatia, e agora, sempre que podia, passava algum tempo a mais ao seu lado, contando-lhe histórias dos partos que ali testemunhara e também ouvindo alguns casos, de quando Seu Evaldo era jovem, e se gabava de ser um grande conquistador. Era comum agora vê-la sorrindo, coisa que absolutamente ninguém naquele hospital considerava algo trivial.

Certa noite, ao entrar no quarto de Seu Evaldo, Helena se deparou com um homem, em pé, ao lado do idoso, e que segurava-lhe a mão. Curiosa, Helena perguntou, tomando algum cuidado para não parecer muito rude:

― O senhor é parente dele?

― Eu? Ah, não! Sou vizinho. Moro na casa ao lado da dele. Meu pai e ele eram amigos desde a adolescência. Fui eu quem trouxe ele pra cá ― disse o jovem, em um tom orgulhoso, fitando Helena de cima até embaixo.

― Entendi ― disse ela, deixando escapar um pouco de desdém. ― Vamos trocar esse soro, Seu Evaldo?

― Opa! Vou aproveitar e partir. Não quero atrapalhar ― disse o jovem, ajeitando-se.

― Obrigado por me visitar, meu filho.

― Nada, Seu Evaldo. Vou tentar vir mais vezes. Se cuida, hein! ― O jovem soltou lentamente a mão do idoso e caminhou até a porta. Quando estava prestes a sair, ele se virou e apontou para o idoso com as duas mãos, falando em um tom alto e brincalhão:

― Quero ver o velho Carlos Cruz detonando de novo! ― E virou-se, indo embora.

Helena em choque com o que acabara de ouvir, deixou a embalagem de soro fisiológico cair no chão, exclamando em seguida:

― O que ele disse!?

O velho olhou para Helena um pouco assustado com o pulo da moça e, sem entender nada, explicou:

― É uma brincadeira que o pai dele, meu amigo, fazia comigo antes de falecer. Eu usava esse nome quando era jovem. ― disse rindo de si mesmo. ― Eu já lhe disse que era um artista? ― disse o senhor, sorrindo timidamente.

Helena estava paralisada. Por dentro, sua cabeça era um trem desgovernado. Ela tentou se mover e não conseguiu. Seu pescoço queimava, e suas mãos tremiam. Em um gesto rápido e libertador, ela correu desesperada pelos corredores brancos até o banheiro público do hospital, abriu a porta de uma das cabines e a trancou logo em seguida, sentando-se sob a tampa do vaso sanitário. Colocou as mãos sob os olhos, tampando-os e chorou. Ela apenas chorou... Permaneceu assim por vários minutos. Nada mais vinha a sua cabeça, ela simplesmente chorava compulsivamente...

Passado algum tempo, Helena ainda estava parada no mesmo lugar. Ela olhava fixamente para a porta da cabine à sua frente, enquanto sua mão direita estalava todos os dedos de sua antagonista, ambas repousadas em seu colo. Seus olhos vermelhos e inchados, já não escorriam mais líquido algum. Subitamente, ela levantou, abriu a porta da cabine e, com passos decididos, foi até o almoxarifado do hospital.

Helena retornou ao quarto vinte e três, carregando uma nova embalagem de soro fisiológico e um kit para coleta de sangue. Antes de cruzar a porta, ela parou momentaneamente e tomou fôlego, como se fosse saltar de um avião em pleno voo.

― Olá Senhor Evaldo, desculpe sair daquela maneira. Preciso reiniciar a sua soroterapia e o médico pediu que eu fizesse uma coleta de sangue, ok? ― Helena falou sem qualquer pausa, parecendo um robô mal programado.

― Tudo bem, querida. Você está bem? Achei que estivesse passando mal. Veio outra moça aqui, agora pouco, e trocou o soro, mas ela não falou nada de exame.

― Estou bem. ― disse novamente seca, como no passado, quando acabara de conhecer o homem. ― A coleta, sou eu quem vai fazer, ok?

― Tá bom ― disse o idoso, olhando para o outro lado, provavelmente por não suportar ver a cor de seu próprio sangue.

Helena coletou o material sanguíneo e, sem falar absolutamente mais nada, deixou o quarto. Em seguida, foi até a enfermeira-chefe e pediu que a trocasse de setor, alegando ter desenvolvido um elo emocional com o paciente do quarto vinte e três, e que isto estaria afetando a boa execução de seu trabalho. O pedido foi aceito e ela foi transferida.

No dia seguinte, Helena levou a amostra que havia coletado do paciente, junto a uma sua, para um laboratório de análises de DNA. Então, duas semanas depois, em uma tarde chuvosa que havia sido reservada para colocar a leitura em dia, ela recebeu uma ligação.

― Alô? Sim... Sim. ― Um longo silêncio se seguiu, enquanto Helena abaixava lentamente o celular, tirando-o de perto da orelha.

Uma voz quase inaudível, vindo do fone do aparelho, repetia:

― Senhora... Senhora? Dona Helena?

Helena correu, e ainda vestindo o pijama, pôs-se a procurar, em meio a chuva, um táxi. Conseguiu e, minutos depois, entrou no veículo, fazendo com que o motorista franzisse a testa, em um ato de reprovação a água que, com o traje ensopado, depositava no banco traseiro do carro.

― Hospital Público Central, por favor!

― A senhora tá molhando tud... ― Helena interrompeu. ― É uma emergência moço! Eu pago o prejuízo...

O homem então seguiu apressado ao destino solicitado.

Ao entrar no hospital, a equipe toda estranhou os trajes de Helena, questionando-a sobre o que estava acontecendo, mas ela os ignorou e seguiu direto ao seu destino. Por trabalhar há muitos anos no hospital, e ser uma profissional séria e respeitada, nenhum segurança ou membro da equipe impediu-a ou, de alguma forma, obstruiu seu caminho.

De volta finalmente aquele corredor gelado e branco ― o qual havia passado boa parte de seus últimos nove anos ―, parada a apenas alguns metros de distância do quarto vinte e três, Helena respirou fundo, ensaiando rapidamente as palavras que usaria para revelar a seu Evaldo que ela era a sua filha. Tomou coragem, amarrou a cara e mirou a porta, seguindo firme.

Assim que entrou, puxou o ar dos pulmões e... surpreendeu-se ao ver o leito vazio.

― Ahn? Mas...

― Helena! O que está acontecendo? ― disse a enfermeira-chefe, em um tom reprovador, vindo apressada de trás da moça.

― Onde está o Senhor Evaldo? Ele...

― Helena, me acompanhe, por favor. Você está molhando o quarto todo.

― Por favor, Cristina! Me fala!

― Ele faleceu... Hoje, ao meio dia.

― O que...? Não... ― Helena pôs-se a chorar.

― Helena, você pediu afastamento desse setor, dizendo que era por causa deste paciente. Vem hoje aqui de pijamas, molha todo o hospital e agora está aí, chorando... O que está acontecendo?

― Ele... era meu pai... ― Helena levou as duas mãos aos olhos, tampando-os.

― Mas... Meu Deus... E você descobriu isso hoje? Olha... Meu Deus... Ok... Bem... Ele deu um bilhete para a Júlia, pediu que ela entregasse a você, mas como você tinha pedido a mudança, achei que ele estava te incomodando...

― Bilhete? Pra mim? Onde...?

― Pera um minuto, vou falar com a Julia, espero que ela não tenha jogado fora.

Helena ficou parada, ao lado do leito, olhando para os lençóis azuis, enquanto se culpava por ter se afastado de seu pai, nos últimos dias de sua vida.

― Aqui. Tava na gaveta do balcão de atendimento do setor.

Helena abriu o bilhete com as mãos trêmulas, e leu em voz baixa a mensagem deixada pelo idoso.

“Desculpe se eu falei alguma besteira que te chateou ou fui mal educado com você, minha filha. É que um homem velho como eu, sentindo tanta dor, às vezes não faz as coisas direito. Muito obrigado por ter me ajudado e conversado comigo. Eu esperava o dia todo para conversar um pouquinho com você, era a melhor parte do meu dia. Eu te contei que minha filha também se chamava Helena? Eu queria muito ter conhecido ela, e quando converso com você, imagino que você é ela. Desculpa novamente por alguma coisa, fique com Deus.”

Helena não conseguiu dizer nada, apenas pôs-se a chorar em soluços...

A enfermeira-chefe, sentindo-se sensibilizada ― ignorando totalmente a forma como normalmente se comportava diante de situações como aquela, principalmente dentro do setor que chefiava ―, caminhou até Helena e a abraçou, tentando confortá-la.

Após aquela tarde, Helena retomou a postura fria da mulher que costumava ser. Esta que havia sido amolecida por aquele idoso acamado no quarto vinte e três; uma mulher de poucas palavras, sempre séria e comprometida com a profissão. A única coisa que de fato mudou em sua vida, foi que, daquele momento em diante, Helena, quando sozinha, assinava mentalmente seu nome como: Helena Maria Fernandes Moreira.



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14. November 2019 19:22 2 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

Über den Autor

Wilher O. Amante de café e ficção.

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Post!
FN Fer Nanda
Realmente me emocionei e chorei muito
August 13, 2020, 20:46
Thaíse Ramos Thaíse Ramos
Uau! Amei!
November 15, 2019, 01:39
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