Eu observava as pessoas passando de sala em sala. Diversos velórios ocorriam naquele dia no cemitério em que meu pai trabalhava, o que era comum. Estava sentado em um sofá grande, acompanhando de gordas senhoras que choravam a morte de uma falecida amiga.
Achava aquilo curioso, a morte de um ente querido. Todos sabemos que, eventualmente, acabaremos debaixo de algum lençol, para nunca mais acordar. Entretanto, é sempre uma surpresa quando acontece com alguém que conhecemos.
Me lembro de uma frase famosa que se assemelhava ao que eu pensava: “Os limites que dividem a Vida da Morte são, na melhor das hipóteses, sombrios e vagos. Quem dirá onde um termina e onde o outro começa?”
Estava acostumado a visitar o cemitério, já que meu pai, até onde posso me lembrar, sempre trabalhou alí. Podia até dizer que era um local bonito, se não fosse pela atmosfera pesada e triste que as pessoas construíam. As salas para velório eram bem ornamentadas, com lustres chiques e poltronas para os parentes mais velhos dos falecidos, e também havia o hall, onde eu estava agora. Acredito que poderia compará-lo à um hall de hotel: grandes mesas de vidro, poltronas vermelhas com detalhes em dourado que lembravam móveis coloniais, tapetes e mais tapetes que, sinceramente, só acomulavam poeira e atacavam minha rinite.
Meu pai tinha prometido me levar para almoçar no meu restaurante favorito. Amava comida japonesa e não poderia recusar. Por isso, teria que esperar até que todos os funerais marcados para aquele sábado terminassem. Ironicamente, meu pai era o único coveiro trabalhando neste turno.
Resolvi passar pelas salas de velório, na tentativa de espantar o tédio que me consumia. Já eram quase onze horas da manhã, minha barriga roncava e a bateria do meu celular já havia acabado. Eu não tinha levado meu carregador.
Entrei em algumas salas, o mesmo de sempre: caixões abertos, com pessoas de diversas idades, parentes e amigos chorando, mães desmaiando e pessoas que eu já sabia identificar que estavam alí só para marcar presença. Nada daquilo me chamava atenção como deveria, e muitas pessoas me achavam estranho por isso. Eu acreditava que era apenas por ter convivido tanto com a morte que ela já não me era mais desconhecida.
Andei por mais algumas salas e acabei por me manter parado na porta de uma. Havia uma diferença ali: a pessoa a ser velada era um bebê, de no máximo 2 anos.
A mãe, com as mãos agarradas às pequenas mãos do defunto, chorava lágrimas dolorosas, cheias de culpas. O pai estava no canto da sala, abalado, mas contendo-se para mostrar sua força emocional - mas não era isso que havia me chamado atenção. Havia uma mulher ali, parada em frente ao caixão, observando fixamente o pequeno corpo morto.
Era como se ninguém percebesse que ela estava presente.
Encarei ela por alguns minutos até que ela percebesse. Pessoas passavam para dar condolências a família e sequer notavam sua existência. Aquilo não parecia normal, não deveria ser normal.
Ao perceber que eu a encarava, a mulher de longos cabelos negros retribuiu com um olhar penetrante. Não pude deixar de sentir calafrios. Ela saiu pela porta da sala por onde o caixão sairia mais tarde e eu, por impulso, decidi segui-la. Aquilo era a coisa mais curiosa para se fazer naquele lugar.
Ela andava pelo cemitério de forma graciosa, o que poderia fazer qualquer um esquecer do que se tratava. O lugar era muito bem cuidado, diga-se de passagem, não possuía enormes lápides ou estátuas aterrorizantes de santos e anjos. Parecia apenas um jardim, com flores, fontes e algumas placas fixadas na grama, identificando os corpos já enterrados.
Era guiado por ela cada vez mais para o fundo do cemitério. Tentava alcançá-la, mas ela sempre parecia estar mais e mais distante. O que estava acontecendo afinal? Aquilo era algum tipo de pegadinha?
Corri o mais rápido que pude até alcançá-la, podendo finalmente segurar seu pulso fino e pálido. Ao sentir meu toque, ela se virou e me olhou novamente com seu olhar frio e penetrante. Senti o frio subir por minha espinha.
Em poucos segundos meu corpo foi transportado para um lugar escuro, vazio, frio. O silêncio me incomodava. Senti falta das pessoas chorando, das conversas paralelas, das pessoas que marcavam presença, do meu pai que cavava covas para todos aqueles corpos.
“Decesso.”
Eu ouvi, como um sussurro no vento. Passei a andar, na tentativa de encontrar o que emitia o som.
“Libitina.”
A cada passo que eu dava, o som ficava mais alto, entrando em meus ouvidos e em minha mente, me deixando atordoado.
“Exício.”
Pude ver uma luz, como uma saída de uma caverna. Corri para alcançá-la, estava desesperado.
“Morte.”
Finalmente encontrei a mulher que havia visto no velório. Ela sorria para mim, de braços abertos, como uma mãe ao receber um filho. Abracei-a, e tudo se escureceu.
No dia seguinte, uma manchete no jornal: “Filho de coveiro morre ao cair dentro de cova no cemitério Jardim das Rosas.”
A morte sempre foi descrita como um ser negro, apavorante, que arranca nossas vidas e que deve ser temida a todo custo.
Ela não rouba nossas almas, sequer a suga com olhares maliciosos. Ela não é um monstro, nem um vazio qualquer, um ser cósmico ou uma entidade divina; ela é como eu, como você, como nós. Ela se baseia em nossa forma e em todas as outras existentes.
Ela não leva nossas almas ao céu, muito menos ao tão temido inferno, ela apenas leva, sem rumo, sem destino. Ela é como um pássaro ao pousar numa árvore, leve, silencioso. Ela é inevitável, talvez um tanto imperceptível; todos nos encontraremos com ela um dia, essa é a única certeza que nós temos. Mas não a culpe, ela não deve ser odiada, afinal, nem ela mesma sabe o porquê de sua condição, só sabe que deve ser assim, e que sempre foi assim desde o começo.
A morte já viu o começo de grandes amores, já foi responsável por muitos deles, mas também já foi à razão imperdoável para o fim de muitos. A morte, a temida morte. Vivemos esperando que ela nos esqueça, mas uma mãe nunca esquece de seus filhos.
Vielen Dank für das Lesen!
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