papironauta Rodrigo Borges

Dizem que gatos possuem certas percepções. Eles acalentam energias negativas até que se tornem positivas. Mas e se houver uma fonte maligna demais para apenas um gato trabalhar em cima? O sótão de uma casa parece ser um lugar assim, cheio de coisas abandonadas que sussurram por atenção.


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Coisas abandonadas num sótão.



Era época de chuva e de fortes ventos, mas a gata da casa insistia em passar boa parte do seu tempo no sótão. Uma bagunça completa, essa era a região morta da casa; nela repousavam a caixa d’água, alguns materiais de construção inutilizáveis, e móveis antigos herdados pela família - já destroçados e deteriorados -, que ali ficariam por muito mais tempo.


Mas com certeza havia mais coisas ali, elas só não estavam dispostas convincentemente à visão do pai da família quando este subia para consertar alguma peça estragada da tubulação da casa. A caixa d’água ficava bem na entrada do sótão, então o pai não precisava entrar lá, apenas mexer no que tinha para mexer e da própria escada vertical. Entretanto, mesmo que se esforçasse para catalogar os objetos ali dentro, o que um dia o filho caçula já tentou fazer, era impossível. A luz do sol não entrava ali, e talvez nem quisesse entrar.


A gata miava com constância quando lá. O filho mais novo conseguia escutar seus resmungos incessantes. Pensava que era apenas um chamado para acasalamento - seus próprios pais diziam isso -, mas de alguma forma aqueles miados pareciam lamurientos demais. Ele a escutava enquanto jogava, enquanto estudava, enquanto comia, ou até mesmo enquanto cagava ao som de alguma música. A escutava ainda durante uma forte chuva com ventos que faziam todas as árvores do lote farfalharem.


Então, no dia seguinte, em horários sempre aleatórios, a gata dormia por bastante tempo, como se tivesse tido uma noite de bebedeira com algum parceiro que tinha escolhido para acasalar. Mas não era chamado para acasalamento, era? Esse argumento não mais acalentava sua curiosidade. A gata acordava, comia e bebia; a noite caía e mais uma vez ela voltava pro mesmo lugar para continuar seu misterioso trabalho à luz do luar.


Havia também os barulhos. Eles eram estalos, como se brinquedos de plástico fossem jogados por uma criança mimada no chão grosso de concreto; algumas vezes parecia que a gata corria para lá e para cá no telhado de fibrocimento da casa, mas não parecia ser só ela, havia outro. Os pais mais uma vez utilizaram esse ponto para explicar que a gata tinha arrumado um parceiro, apenas isso. Porém, os passos desse outro contra o telhado não pareciam ser de um gato, embora fosse leve também. Mas tinha um padrão diferente, como se não tivesse quatro patas, mas duas, e com longas e grosseiras unhas.


Assim sendo, criou coragem para averiguar o sótão. Foi de dia, mas levou consigo uma lanterna de acampamento que tinha pego no criadinho do pai. Subiu com certa dificuldade a escada vertical; suas pernas eram pequenas em relação ao espaçamento de um degrau ao outro. A primeira coisa com que se deparou ao chegar lá em cima, além, claro, da grande caixa d’água azul perto da entrada, foi a sua gata. Ela tinha suas orelhas voltadas para trás e seus pelos estavam um pouquinho eriçados. Seus olhos verdes viram o garoto, sua boca miou, suas pernas a puseram em movimento em direção à escada, onde desceu com destreza os degraus, deixando um de seus donos sozinho na boca do sótão.


A luz do sol ousava invadir parte daquele cômodo esquecido, deixando à mostra apenas as coisas normais que queriam ser vistas. Mas era o lugar escuro, atrás da caixa redonda e azul, que chamava a atenção do filho caçula. Seus pelos se arrepiaram pela curiosidade contemplativa em explorar um lugar desconhecido, como imã atraía limalha de ferro. Ele olhou e olhou por cima da caixa d’água, mas nada via (temia ver), até que ligou a lanterna. A imagem que se sucedeu no círculo de luz feito pela lanterna foi qual um flash inesperado, como um relâmpago que caía sem que houvesse chuva. A sensação que o abarrotou foi pior do que sentiria se estivesse trancado no banheiro com alguma barata escondida após a primeira tentativa de mata-la. Ela poderia estar em qualquer lugar, até mesmo subindo pelas suas pernas até sua cueca.


A imagem que viu, ou melhor, a coisa, outra coisa em meio a várias outras coisas - mas aquela coisa tinha se mexido -, correu de volta para a escuridão com pressa agitada, derrubando os outros objetos que ali habitavam. O braço que segurava a lanterna não ousou seguir o vulto meio amarelado, porque participava de um corpo em choque, um corpo gélido pela incongruência, um corpo que logo em seguida caiu escada abaixo.


***


O filho caçula não falou com ninguém sobre o que viu; nem mesmo ele sabia ao certo no que tinha que acreditar. Desde o hospital, insistia em contar a mesma versão: escorregou da escada. Mas por que subiu lá? Porque eu estava procurando a gata. E estava tudo bem, não tinha quebrado nada segundo os exames, apenas ralado seus braços e pernas, e despontado um corte no couro cabeludo que não precisou mais de 4 pontos. Estava tudo bem, e então ninguém o pressionou, já tinham toda a verdade que queriam.


Esse filho ficou por muito tempo no quarto, jogando e fazendo tudo para se distrair. Tapava os ouvidos ante aos barulhos no telhado e obteve um nojo irracional da sua gata, mas não sabia explicar o porquê. Seus pais e irmã perguntavam o que havia de errado, ele dizia que era nada, e eles supunham que era apenas um pequeno trauma. De fato, era um trauma, mas um dos grandes.


Os dias se passaram, e tudo o que tinha presenciado não passava de uma sonho duvidoso na sua cabeça, um sonho sem ordem ou noção, um daqueles que, quando você acorda, faz nascer um sorriso perplexo no rosto e que diz: seria muito vergonhoso contar sobre ele para alguém. Então o sonho permaneceu lá, latente e sem atenção, exatamente como as coisas no sótão.


Mas o garoto não se atentou que esse suposto sonho, na verdade, era uma semente de culpa.


Mais um dia tinha se curvado pra noite, e mais uma tempestade se sucedeu. Na casa se encontrava apenas o filho caçula e o pai; a mãe e irmã tinham saído para um evento com tias e primas. O filho caçula lia um livro, e ele estava realmente focado nas linhas que seus olhos percorriam. Sua expressão de prazer aventurado era quase inocente; seus machucados já tinham sarado e os pontos, retirados. Parecia que nada tinha acontecido.


A gata ainda miava lá em cima, mas seus ouvidos aprenderam a ignorar. Entretanto, eles escutaram seu pai emitir um palavrão que a mãe proibia de ser usado dentro de casa. O livro foi repousado em seu colo e seus olhos assistiram o pai sair às pressas do quarto até a porta da frente.


- A caixa d’água está vazando, filho.


- Mas ‘tá chovendo, pai!


O garoto levantou da sua cama e foi até a saleta, onde tinha uma janela que concedia visão para o beco onde tinha a escada que levava ao sótão. O pai apareceu no beco - suas roupas já estavam quase ensopadas pela tempestade – e subiu escada acima. A escada ficava perto da janela, de modo que a última visão que teve de seu pai foi das suas pernas trabalhando com cautela em cada degrau, até desaparecer por completo e só sobrar a presença da sua voz de quando expulsou a gata dali, depois disso, mais nada.


A chuva e o vento estavam muito fortes, motivo que não era possível escutar o adulto mexer na caixa d’água lá em cima. Sem visão dele, nem mesmo podendo escutá-lo, seu filho sentiu um terror começar a se instaurar dentro de si. A gata apareceu na janela, impassível, sentou-se e miou um ou duas vezes até ver o garoto disparar porta afora. Seu pijama rapidamente ficou molhado, e, nesse curto espaço que era a porta da frente até o beco onde ficava a escada, se escutou um barulho, o mesmo que fazia quando um corpo caía com vontade contra o chão.


- Pai?! – o garoto chamou. Ele já estava entrando no beco, viraria à esquerda e veria a escada, mas a recusa do pai em responder seu chamado o fez dar pequenos e receosos passos em direção ao sótão. Um trovão caiu perto demais e gelou sua espinha, mas o frio da água contra seu corpo o fez continuar andando para descobrir logo que seu pai estava em segurança, para então poder entrar em casa e tomar um banho quente.


Mas quando ele virou aquela esquerda, a curva em sua própria casa, uma tomada de direção que mudaria a sua compreensão daquele mundo, uma válvula que mudaria o curso de seu entendimento, ele viu.


Seu pai torto entre os degraus da escada, seu pescoço disposto em uma forma não natural contra a parede, seus olhos vazios e sua boca aberta cuspindo uma língua entre os dentes. O garoto não tinha entendido a priori, o que o fez olhar para cima, para a boca do sótão, onde viu, jurou ter visto, a cabeça de uma coisa que os espiava. Era uma cabeça careca e meio amarelada; a pele parecia enrugada, e os fios brancos que despontavam de um couro cabeludo milenar eram fantasmagóricos demais. Pior foi ver a mão que buscava suporte na parede, uma mão ossuda e com unhas longas e sujas. A imagem rapidamente desapareceu, e barulhos de esbarrões nos móveis decrépitos se sucederam acima do garoto, deixando-o só com o pai morto e sua gata na janela.

1. September 2019 19:59 6 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

Über den Autor

Rodrigo Borges Conto histórias e as vivo. Bebo cerveja e fumo, mas também como legumes e me exercito. Tenho um canal no Youtube (Rodrigo Borges - Papironauta) sobre a escrita, mas você não vai gostar dos vídeos. Também tenho um Instagram (@papironauta) voltado para o mesmo tema.

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Valéria Costa Valéria Costa
Criatividade é dom! Terminei de ler a história toda arrepiada. Ameiiiiiii
September 29, 2019, 16:57
Caroliny Stürmer Caroliny Stürmer
Muito bom mesmo, queria ter lido mais devagar para que não acabasse tão rapidamente! Aliás, é impressão minha ou vc gosta mesmo das baratas?
September 18, 2019, 02:33

  • Rodrigo Borges Rodrigo Borges
    Bom, contanto que eu não as veja andar pela casa, tudo bem. Mas eu acho legal pensar que, assim como os pássaros devem enxergar um montão de coisas lá de cima, que montão de outras coisas as baratas vêem lá embaixo?! Mas esse monstrengo ai do sótão não é a Brincalhona não, só é um dos horrores menos criativos que fazem parte do Residencial Buritis. Ademais, fico feliz que tenha lido e gostado ^^. September 18, 2019, 16:47
Joel Alberto Paz Joel Alberto Paz
epa, preciso ter muitos gatos em minha casa para canalizar toda a energia negativa que sai da boca do meu filho. Eu gosto muito de trocar com alguém que fala português, porque eu estou aprendendo português, eu sou da Venezuela.
September 09, 2019, 15:01
Davi Morais Davi Morais
Credo. Credo credo credo kkkkkkk que negócio cabuloso mano kkkkk tô fora, muito bom.
September 02, 2019, 00:45
~