Foi no sétimo dia de aula que as coisas começaram a ficar estranhas na vida de Laura.
Era uma manhã de quarta-feira e o sol erguia-se cada vez mais orgulhoso no céu azul à medida que o ponteiro se arrastava, vagarosamente, no relógio, aproximando-se do meio-dia.
Àquela hora os falatórios desconexos já haviam irrompido por todos os lados e substituído o discurso monótono da professora. Em poucos segundos a sala de aula foi tomada por um burburinho generalizado de vozes ansiosas com a chegada próxima do intervalo.
Aquele era um dia excepcionalmente quente e desanimador. Mesmo a professora de física -uma mulher que devia ter por volta de seus 47 anos e que ostentava um rosto arranhado por fendas escuras que revelavam o fardo carregado por um professor- desistira de tentar acalmar a sala para prosseguir com a aula. Simplesmente tampou as canetas coloridas e se sentou para aguardar.
Restavam apenas 5 minutos para que o sinal disparasse, anunciando, em um guinchado estridente e prolongado, o horário do intervalo. Como um rebanho, as porteiras se abririam e as escadarias e corredores seriam preenchidas por alunos desesperados – uns com fome, outros ávidos pelo ar livre e alguns ansiosos por uma conversa sobre qualquer coisa mais interessante do que aquilo que haviam deixado para trás – acotovelando-se e correndo enquanto gritavam em direção às portas que os levariam à libertação. Ali no pátio, assim como em uma prisão, a vida parecia retornar aos rostos vazios dos alunos, deslumbrados com a limitada liberdade.
Esgueirando-se na multidão, Laura caminhava só, rumando para o local coberto onde as mesas de plástico branco eram dispostas em várias longas fileiras. Presos às hastes de metal do teto, ventiladores disparavam borrifos de água no local em uma tentativa de refrescar o ambiente.
Laura puxou uma das cadeiras e se sentou. Olhava para a área descoberta que formava um banho de sol ao redor da entrada do ginásio poliesportivo. Só os mais corajosos se aventuravam por ali. Era um forno a céu aberto.
Observava os vários rostos que transitavam entre as fileiras de mesas. A maioria era formada por familiares. Pessoas com quem ela havia estudado no quarto ou quinto ano. Alguns que conhecia porque, embora não houvessem estudado na mesma sala, passaram tempo demais frequentado os mesmos corredores, cantinas e pátios; encontrando-se de vez em quando para uma prova substitutiva ou no mesmo elevador. Na multidão eufórica, Laura encontrou poucos rostos desconhecidos. E, quando os via, tinha certeza de que eram novatos, pois aqueles como ela que passaram tantos anos naquela instituição sabiam reconhecer um andar desacostumado, os olhares rápidos e desolados em busca de algum grupo que os acolhesse e aqueles que permaneceriam sentando-se solitariamente até que algumas pessoas sentissem pena o bastante e se solidarizassem agregando-o à família.
Não era de todo ruim, geralmente esses processos aconteciam rapidamente. As salas abraçavam seus novatos. O problema era que aquele era o segundo ano do Ensino Médio. As matilhas haviam se formado há tempos; as tribos se conheciam bem e aqueles que as compunham já estavam bastante familiarizados uns com os outros. Entrar em uma escola nos últimos três anos era uma tarefa difícil; naquela idade, era fazer o papel de imigrante em um país distante. A história importava demais. E, quando se é jovem e a rotina consiste no bom e velho “acordar cedo, ir para a aula por algumas horas e depois voltar para casa, tendo como única preocupação o receio de perder seu programa favorito na tv”, tudo aquilo que orbita o universo chamado escola importa muito.
Ao longe, Laura viu suas amigas caminhando em sua direção. Carregavam latas de refrigerante, pães de queijo e outros salgados. Laura então ajeitou-se na mesa a fim de esperá-las.
Em uma nova perspectiva, algo lhe chamou a atenção: encolhido feito um animal acuado em um canto escuro, um garoto olhava em sua direção com avidez assustadora. Ela o encarou e, quando seus olhos o encontraram, teve a clara certeza de que era o alvo daqueles olhos vidrados. No meio de toda aquela massa efusiva de pessoas, era para ela que ele olhava. O que mais estranhou naqueles olhos sombrios era a obsessão fria que ali se fazia presente. O mar descorado que flutuava monótono por trás da franja que lhe pendia sobre a testa, deixando seu semblante ainda mais obscuro e nada convidativo. Apesar da distância, Laura viu aquelas pupilas dilatadas tremerem convulsivas sob uma súbita corrente elétrica de excitação. Ele a fitava com olhar vidrado e intimidador, algo que a fazia se empertigar na cadeira sob a sombra de um sentimento imbuído de terrível malícia. No meio de todos, ela se viu despida. Dissecada minuciosamente na aura doentia que o garoto transmitia.
Poucos segundos se passaram desde que ela o avistara e, no momento em que esteve ciente de seu olhar, o garoto abaixou a cabeça em um movimento rápido. Ela continuou observando-o, sentindo o falatório ao seu redor distanciar-se até se tornar uma mistura confusa. Não era o “amor à primeira vista” ou qualquer coisa do tipo que costumam acontecer em algumas histórias, mas... medo. Simples e puro terror. Um pavor repentino que fez seus órgãos gelarem, remexendo-se intensamente na escuridão de seu corpo. Aqueles olhos famintos fizeram-na estremecer desconfortavelmente. Ao seu lado, alguém parecia chamá-la:
— ...ei, ei, Laura?! Que cara estranha é essa? — Uma garota questionava enquanto puxava uma cadeira para se sentar. Outras duas faziam o mesmo.
Laura se virou e, quando tentou falar, a frase que imaginara pareceu entalar na garganta.
— N-Nada, é que... — disse, levantando a mão com a intenção de apontar discretamente para o canto onde vira o garoto. Contudo, seus olhos nada encontraram além de um canto comum onde um faxineiro cabisbaixo arrastava uma vassoura. Tentou encontrar o garoto em meio ao pátio, mas não o achou. À sua frente, suas amigas se entreolhavam com estranheza.
— Eu, hein... — Ana murmurou, dando uma mordida no pão de queijo.
Recuperando-se do choque, Laura falou com uma empolgação fora do comum:
— Nossa! Tô morrendo de fome... Acabei viajando aqui por um momento. Carla, me dá um pedacinho desse mistinho? — Talvez suas amigas não tenham percebido – apesar de achar que não era o caso – o quão esganiçada sua voz soara naquele momento. Havia pavor em suas palavras. E, zombando de si mesma pela tolice de um medo ao qual atribuíra caráter exagerado, ela estremeceu outra vez. Pois, aquilo que sentira era bizarro demais para que não temesse.
***
Desde então, as aparições do garoto foram arrefecendo. Ciente de que suas estranhas vigílias haviam sido descobertas, o garoto pareceu acautelar-se em suas observações. Laura ainda o via se esgueirando em seu encalço, contorcendo-se por frestas e espaços vazios, e sumindo de repente à sua volta. Sentia-se vigiada a todo momento e, toda vez que sentia seus olhos, estremecia em um súbito calafrio.
Certo dia, enquanto comiam sobre as mesas brancas, Ana cutucou-a no ombro e, falando baixo por costume, contou para elas que um garoto estranho estava olhando na direção da mesa em que estavam sentadas. Sem cerimônia, todas se viraram na direção que Ana indicava.
— Nossa... Quem é aquele? Tem uma cara de morto — falou Carla sem rodeios, repuxando o rosto em uma careta de esgar que revelava nojo.
— Parece um maníaco olhando — concordou Ana.
Laura o encarou mais uma vez. E, tal como na primeira vez, sentiu o peso daquele olhar alucinado lhe percorrer o corpo feito dedos ansiosos. Com o rosto escondido pelas sombras, ele a devorava com os olhos, exultando e se regozijando com o que parecia ser a adoração de uma deusa celestial. Com asco, Laura viu que a boca pálida do garoto se contorcia. Remexendo-se sem parar, os lábios surgiam e desapreciam sob os dentes ansiosos que os mordiscavam. Dava a impressão de estar acometido por um transe hipnótico.
Desviando o rosto, ela se virou para as amigas:
— Ele meio que fica me olhando todos os dias... Assustador, né? — Perguntou, evitando demonstrar o medo real que escurecia dentro dela, fazendo com que ela minguasse cada vez mais diante do mundo que a cercava. — Mas ele sempre sai correndo quando eu encaro de volta. Na verdade, o mais bizarro é que ele simplesmente some. Nunca vejo ele correr. Parece mágica...Vai saber.
— É — afirmou Carla. — Inclusive ele já se mandou. Deus me livre.
— Sinistro — completou Ana, a boca cheia de pão de queijo.
***
Os dias se passaram e Laura teve de conviver ciente de que olhos famintos a vigiavam todos os dias. Sabendo que, em meio à multidão, ele estaria escondido em algum lugar, perscrutando os corpos desinteressantes em sua busca. Às vezes, encolhia-se de repente enquanto andava; temendo que estivesse, de alguma forma grotesca, alimentando a imaginação doentia de seu observador secreto. Certa vez, enquanto caminhava, sentiu aqueles olhos de abutre pousarem sobre ela – sentiu. Pois, de fato, percebia quase institivamente quando isso acontecia. Parou no mesmo instante. E, depois de estancar, passou a buscá-lo entre as paredes. Lá o encontrou. Os olhos animalescos estavam dilatados e, com assustadora excitação, faiscavam sem parar. Segundos depois, ele desapareceu. Ela piscou e, feito pó, o garoto se dissipou no ar sem deixar rastros.
Laura descobriu que ele estudava no 2-C. E, salvo em raros casos, poucos eram capazes de dizer mais do que duas palavras sobre o garoto. A maioria terminava em “estranho” ou “bizarro”. Uma garota – amiga de Laura – lhe disse que ele “parece mais um fantasma. Ninguém vê o coitado, e, quando vê, ele parece simplesmente desaparecer. Deve ser um daqueles sujeitos tão envergonhados que, quando se veem encarados, se enterram nas próprias calças ou saem correndo”.
Numa quinta-feira chuvosa, Laura descia as escadas em direção ao laboratório de química. Segurava um jaleco em uma das mãos e um caderno na outra. Estava atrasada. Corria depressa, saltando pelos degraus e virando os corredores. Saiu pela porta do prédio e adentrou o pátio principal. Dali, correu em direção aos corredores abertos que levariam ao outro bloco de prédios. Virando no corredor, Laura avistou um rosto que a encarava na esquina por trás da quina de uma parede. Sentiu aqueles olhos a analisarem com excitação e curiosidade voraz. As pupilas do garoto cintilavam por trás da cabeleira negra, emanando uma pressão perturbada que fez Laura olhar em volta em busca de amparo de algum transeunte. Por um momento, ela achou que até mesmo poderia sentir o cheiro do garoto. Um odor seco e azedo, o cheiro da velhice e do mofo.
Entrecortados pela parede azul, os lábios do garoto se debatiam em um sorriso trêmulo que despencou no mesmo instante em que Laura começou a se aproximar. Estavam a no máximo 5 metros de distância. Era provável que ele tenha se escondido ali porque acreditava que ela passaria reto, seguindo o caminho do corredor até o final. Contudo, esse não foi o caso.
Em um ímpeto de coragem, ela correu em sua direção. Enquanto avançava, viu o rosto desaparecer por trás da parede, mas, com a distância que agora os separava, ele não poderia ir muito longe.
Quando dobrou o corredor, o lugar estava vazio. Mais uma vez o garoto havia sumido sem deixar resquícios de sua presença. Desaparecera emulando uma aparição fajuta de filme de terror. Dissipara-se no ar como fumaça.
Sua mente fervilhava em busca de alguma justificativa para o fenômeno inexplicável. Corria os olhos para cada canto onde ele pudesse ter se escondido. Entretanto, não havia local algum. As paredes do corredor percorriam lisas até o final.
Isso tá ficando estranho demais até pra um filme, tentou pensar nisso de forma cômica, mas não conseguiu. Estava tremendo de medo e achava que mais um tempo em pé poderia fazê-la desmaiar. Não, não tá ficando estranho, pensou, tendo certeza disso. E estava certa, porque as coisas começaram a desandar desde o primeiro momento em que sentira os olhos sobre ela. Quando conhecera o medo.
***
Quando seu ânimo começou a despencar em um estado de aceitação e inércia, suas amigas, percebendo a situação, tentaram convencê-la a falar com alguém. A diretora ou algum inspetor. Mas, quando ela negou dizendo “que aquilo não era demais, de qualquer forma, não vão fazer nada”, Ana e Carla a arrastaram até a sala onde a vice-diretora ficava. Encorajada, Laura contou-lhe tudo que andara acontecendo e como estava assustada. Que as saídas de casa se tornaram um inferno e todo pedestre se tornava um inimigo para ela na rua. Que agora seus olhos sempre estavam voltados para os pés e que a qualquer sinal de que alguém a encarava ela desviava o rosto. Surpreendeu-se pelo peso que sentiu ao proferir aquelas palavras diante das amigas e da mulher. Por um momento ou outro, hesitou, e até mesmo tentou suavizar a história pensando que poderia estar exagerando e que aquilo não passava de um mal-entendido. Com esforço, conteve as lágrimas que ameaçaram escorrer. Quando terminou, suas mãos tremiam e uma nuvem densa parecia crescer dentro dela, sufocando-a como se todo seu corpo pesasse.
Depois disso, a mulher por trás da mesa disse que tomaria providências agora mesmo e que, caso algo viesse a acontecer novamente, Laura deveria contatá-la sem medo. Segundo ela, a escola não admitiria que alunos fossem intimidados ali dentro.
Contudo, tal como uma tempestade rápida de verão, o garoto simplesmente desapareceu. Aparecia com cada vez menos frequência até que parou de ir à escola. Ao que Laura sabia, o garoto havia sido contatado e alertado sobre a situação relatada. Talvez ele tivesse recebido uma suspensão que Laura desconhecia ou então estava envergonhado demais para aparecer.
De qualquer modo, ele nunca mais retornaria ao colégio.
Vielen Dank für das Lesen!
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