guilhermerubido Guilherme Rubido

É estranho imaginar que tipos de caminhos e correntes marítimas um peixe comum pode ter percorrido. É, certamente, ainda mais estranho imaginar o que pode acontecer quando alguém ingere a carne estranha de algum desses peixes em um simples restaurante, trazendo para dentro do corpo algo desconhecido que, com o tempo, pode tomar forma.


Horror Alles öffentlich.

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Visitante Indesejado

Por trás da janela e atravessando a rua, ouvia-se o constante chacoalhar das potentes ondas escuras e oleosas debatendo-se contra a orla de areia dura e acinzentada da praia. O mar estava agitado, balançando-se com uma fúria colérica. Em dias como esse, o nível do mar se elevava, trazendo consigo ondas de destruição incontrolável. As águas negras se arrastavam, cobrindo a areia da praia até que, aos poucos, os dedos caudalosos se tornassem mais ousados e começassem a ir mais longe, deslizando pelo asfalta das ruas e chocando-se com as muretas baixas que separavam a praia das calçadas, até que, com o tempo, as partissem com suas poderosas investidas.

Apesar de tudo, não era dos piores dias. Quando o mar queria, ninguém conseguia controlá-lo. E, em dias mais agitados, as ruas transbordavam, fazendo garagens submergirem, animais e pessoas se perderem em bueiros que, com a força da drenagem, tornavam-se grandes redemoinhos, e carros estacionados virarem pequenas ilhotas metálicas ao longo das ruas agora tornadas rios.

Vitor encarava o espetáculo por trás do vidro. No horizonte, a uma rua de distância, o mar se abria como um pano negro, separando a cidade portuária em que Vitor vivia da cidade vizinha. As balsas que faziam a travessia entre as duas ilhas haviam parado de transitar para aguardar a tempestade diminuir. Alguns navios vagavam lentamente como sombras colossais. Ambas as margens eram cobertas por pequenos cais, píeres, ancoradouros e depósitos. Em alguns pontos, placas de metal se abriam por sobre a água para que as balsas pudessem aportar.

Vitor sempre pensou na quantidade de material e combustível que eram despejados por ali. Talvez isso explicasse a cor do mar e a oleosidade inerente da água. Nele, era comum ver algumas bolhas de cor estranha e uma espuma branca grudenta pairando por sobre superfície escura. Lembrava-se de estremecer um pouco quando era menor e tinha que pegar alguma balsa para atravessar. Imaginava-se caindo na água suja. A espuma branca se prendendo ao seu corpo e o puxando para baixo, levando-o para o mundo que se escondia por baixo do manto negro que era o mar, onde grandes estruturas de metal antigo e enferrujado, carcaças de navios abatidos, balsas esquecidas e sabe-se lá mais o que, formariam a imagem de uma cidade fantasma submersa e soterrada, desolada no silêncio marítimo.

Dentro do restaurante, havia no ar um constante tilintar de copos batendo-se uns contra os outros em tom de comemoração. Vozes arrastadas e estridentes de jovens bêbados, soando em uníssono, por vezes em cantoria e por vezes em conversa, alastrava-se pelo pequeno restaurante japonês localizado em frente à praia, dando ao ambiente um ar caótico e exagerado que geralmente advém da junção do homem com bebidas alcoólicas.

Grandes janelas de vidro circundavam as paredes do restaurante em um semicírculo que dava ao local a aparência de um submarino. Na cidade, uma chuva caía debilmente. Os pingos escorriam e deslizavam pelos vidros embaçados em uma enorme rede de dispersos pontos cristalinos que tornavam o mundo lá fora um grande borrão colorido.

Vitor, à mesa, observava seus amigos extasiados divertirem-se. Riam e cantavam, e, frequentemente, sem que terminassem uma única estrofe da música cantada, partiam para a próxima. Como uma velha jukebox, reproduziam músicas antigas e românticas.

Aqueles que decidiam não seguir a orquestra falavam mais alto para tentar serem ouvidos. Alguns gesticulavam em movimentos exagerados e desengonçados, enquanto outros, comicamente, tentavam dançar.

Uma jaula com cinco macacos, todos no cio, teria parecido menos animalesca do que um bando de adolescentes bêbados. Ao menos era o que Vitor pensava. Ainda assim, os compreendia: estavam felizes por terem completado mais um semestre da faculdade e, assim, irradiavam alegria. A tensão das noites de estudo precisava ser eliminada de alguma forma.

Estava totalmente sóbrio e, por este motivo, repreendia-se por ter aceitado ir em um evento como aquele. Que que eu vim fazer aqui?, pensava quieto em seu lugar. Era sempre assim; nunca conseguia negar os pedidos de: "Ah, cara, para de ser chato! Vai ser legal!". Tentava se esquivar, mas sempre falhava em fugir das monótonas insistências. Não que fizesse tanto esforço. Gostava de ser convidado, era só depois que se arrependia. E, como em um grande déjà vu, tudo sempre se repetia. Via todos ao seu redor perdendo, aos poucos, em virtude da quantia um tanto quanto excessiva que ingeriam de álcool, a sanidade que antes possuíam. Como Elric, precisavam de suas Stormbringers para renovar as energias e, assim, serem capazes de feitos que, antes, eram impossíveis.

O que mais o incomodava no local era o cheiro e, obviamente, a comida. Odiava peixe. Na verdade, era nojo o que sentia. Detestava-os mais do que qualquer bebida. A mera imagem de um peixe já lhe causava asco e fazia seu estômago revirar.

Sua sorte era que, na cultura japonesa – ao menos a que conhecia pelos restaurantes – os peixes viam em fatias. Assim, naquela noite, Vitor não foi premiado com a visão de um viscoso peixe deitado sobre uma bandeja prateada cheia de batatas e legumes, como sua família costumava servir nas festas. O peixe com a barriga aberta sobre a bandeja, humilhado pela situação pela qual está passando, olha para você – que está prestes a banquetear-se – e faz a pergunta que nós nos fazemos de vez em quando: "Por quê? Acho que a situação é desagradável para nós dois, não?" Você ri desconfortável com a situação do derrotado peixe e segue sua vida.

O que mais o incomodava era, principalmente, aqueles olhos negros arregalados e estúpidos. Pareciam gelatinosos e artificiais e causavam-lhe sensações ruins. Não que sentisse pena, apenas se sentia incomodado.

Santos é uma cidade litorânea e, quando Vitor tinha por volta de nove anos e já sabendo nadar, entrou pela primeira vez sozinho no mar. Já havia entrado outras vezes, mas sempre acompanhado dos pais. Agora estava sozinho, sem sua mãe em seu encalço dizendo “Aí, que água gelada!” ou seu pai com seus “Só até aqui, Vitor. Ali já é muito fundo”.

Havia feito aulas de natação por um tempo. Sonhava com o dia em que poderia entrar no imenso mar e nadar livremente, libertando-se do limitado espaço da piscina de água quente do clube. Antes do dia esperado, sua mãe o advertira sobre o cuidado que teria que tomar quando entrasse nas águas escuras: "Não desafie o mar, Vitor! Ele é traiçoeiro, te afoga rapidinho. Se eu souber que você ficou brincando tentando desafiar o perigo vou garantir que seu pai não te leve pra praia por um bom tempo, tá me ouvindo? "

Mas ele desafiou. Havia combinado com seus pais que os avisaria para que eles ficassem de olho nele quando fosse nadar. Contudo, dizendo a mãe que iria comprar um sorvete – e de fato comprou – ele se distanciou até um local em que não poderia ser visto por eles e enfrentou sozinho o desconhecido.

Ali, parado no limiar entre o mundo terrestre e a entrada do misterioso universo marítimo, a frase de sua mãe retumbava em sua cabeça enquanto a água caliginosa e densa percorria a areia dura de cor cinza até seus pés, gelando como mãos fantasmagóricas seus calcanhares de criança. Dali, podia ver seus pais, um pouco distantes, sentados em cadeiras de praia, amparados por um grande guarda-sol vermelho e amarelo com o símbolo de uma cerveja estampado. Ficou imóvel por um tempo. Encarava a profusão de água que avançava com uma potência surpreendente em pequenas ondas espumantes que engoliam tudo à sua frente e, depois, retornavam; voltavam para o lugar de onde foram enviadas por Aegir. Levavam consigo o lixo, as conchas e tudo o mais que se esconde de nossos olhos debaixo da areia negra. Coisas que talvez seriam arrastadas e transportadas para as mais profundas e intocadas crateras marítimas, inconcebíveis ao ser humano mesmo em seus sonhos mais excêntricos; ou, até mesmo, viajariam pelos mais remotos mares, intocados pela oceanografia e pela biologia marinha – esta quê, apenas em raras ocasiões, possui resquícios ou mesmo uma centelha do que há ou havia de vivo sob a água inexplorada – e nunca mais veriam a superfície e o toque do sol novamente.

Tomando coragem, avançou lentamente em direção ao mar imponente que se estendia por toda sua visão. Sua pequenez diante do prodigioso e obscuro monstro da natureza o assustou. Um frágil e pequeno corpo de criança indo de encontro com a imensidão. Sentia-se sozinho. O mar se arrastava em pequenas ondas até suas pernas, envolvendo-as como se suplicasse que Vitor viesse ao seu encontro. Engoliu em seco e começou a sentir a água fria em seus pés novamente. Dessa vez, não recuou. Não iria voltar choramingando para os seus pais. O desafio o incitava a continuar.

A água estava extremamente gelada. Nem mesmo o sol era capaz de invadir aquela parede de água que agora batia gélida contra o seu peito nu. Arfava e mexia-se muito por conta do frio. As pontas de seus pés batiam contra a areia pegajosa e mole. Imaginou peixes, tubarões e toda sorte de animais marinhos encostando em suas pernas que, agora, já não possuíam mais apoio. Essa ideia o fez agitar os dois gravetos submersos na água, como se tentasse espantar qualquer coisa que viesse até ele. Tentou avançar mais rápido. Algo grudou em sua perna e, antes que percebesse que se tratava de uma sacola de supermercado, Vitor estremeceu, debatendo-se na tentativa de fugir daquilo. Isso o levou mais para o fundo. Cada vez mais, sem que percebesse, as águas foram-no levando. Conduzindo-o em uma dança de ritmo lento, até que, aos poucos, ele estivesse totalmente em seus braços.

Quando deu por si, viu que já havia se distanciado bastante da margem. Bem mais do que imaginava que havia nadado. Seus pais eram agora apenas pontinhos distantes de baixo de um borrão vermelho. As vozes alegres e entusiasmadas dos banhistas eram agora apenas ruídos indiscerníveis. A falta delas fez o ambiente se tornar desolador e silencioso. Ali, apenas o som das ondas realizando seus ciclos de formação e o som ruidoso da água podia ser ouvido.

Seus pés não encostavam em nada, e isso era igualmente assustador. Imaginou-os se mexendo solitariamente lá em baixo, flutuando no escuro. Sentia-se excitado por finalmente ter saído da pequena piscina do clube onde fizera suas aulas. Estava agora em um lugar muito maior. Mas não conseguia reprimir o medo que sentia sozinho em meio a toda aquela vastidão. Sua imaginação teceu, naqueles poucos minutos, imagens de todo tipo de criaturas marinhas que poderiam estar espreitando-o de lá do fundo. Olhando-o de onde a luz não alcança com olhos opacos e negros. Olhos que não transmitiam nada além do vazio bestial que existia dentro deles. Lembrou-se das aulas de ciências no colégio e sua mente logo voltou-se para as fotos de tubarões e lulas gigantes que havia estampado nos livros. Pensou também nos dinossauros que vira em um vídeo no YouTube. Imaginou um gigantesco Mosassauro nadando vagarosamente no fundo sob suas pernas.

Vitor demorou para perceber que as ondas tinham se intensificado. Seu corpo – que antes subia e descia, boiando delicadamente – era agora arrastado e puxado cada vez mais para o fundo. Tinha de se esforçar para evitar que a água não se chocasse com o seu rosto. As ondas estavam altas agora. Aflito, virou-se para a praia e começou a tentar um retorno. Viu que seus pais tinham levantado e estavam na beira procurando-o, apesar de não conseguir ouvir suas vozes.

As ondas batiam contra suas costas e o suspendiam um pouco. Teve que se esforçar para nadar, atendo-se para não se afogar com a água que vinha por trás. A praia parecia nunca se aproximar. Estava muito mais longe do que achava e, toda vez que alguma onda voltava, puxava-o mais para o fundo, fazendo-o ficar preso no mesmo lugar. Com um burburinho frenético, uma onda enorme arrastou-se por trás dele e o afundou inesperadamente. Ficou submerso por um tempo. O som era agora abafado e distorcido. A água do mar entrou em sua boca em um jato único. Sentiu o gosto forte e amargo do sal marinho e da sujeira do mar descendo por sua garganta. Os olhos abertos arderam no mesmo instante, atacados pelo sal da água.

Voltou para a superfície, cego pelo sal que queimava seus olhos, e tentou retomar o fôlego. Esfregou os olhos vigorosamente na tentativa de aliviar a dor. Conseguiu abri-los novamente, mas sua visão estava borrada. Estava desesperado. Não sabia o que fazer. Uma outra onda veio e, de novo, ele submergiu e emergiu. A agitação incessante da água que vinha sem parar não o deixava respirar. Assim, passou do desespero para o completo pânico. Tentou gritar pedindo ajuda de sua mãe, mas sua voz soou vaga e distante naquele lugar, dissipando-se no ar logo depois de ser emitida. O grito permitiu que um pouco de água salgada entrasse pela sua boca novamente. E ele teve consciência de quão pegajosa era a água à sua volta.

Os últimos momentos dos quais Vitor se lembra desse dia são os da última onda que o assolou. A onda vinha enorme, produzindo barulho suficiente para que Vitor tivesse tempo de vê-la chegando. A imagem era portentosa. A frase de sua mãe voltou no mesmo instante, dizendo: "Não desafie o mar, Vitor". Ali, Vitor compreendeu o que ela queria dizer. Não teve reação. Apenas aguardou, de costas, a inabalável parede d'água que vinha até ele. O impacto foi violento. Vitor afundou e girou, totalmente desorientado e envolto pela água escura. Seus olhos estavam abertos, mas ele não via nada; a onda impetuosa possuía tamanha força que fizera seus olhos se arregalarem com o choque. Ardiam muito, mas Vitor não conseguiu se importar com isso no momento. Tentou se recuperar, mas não sabia onde estava. A água entrava e descia pela sua garganta sem parar, rasgando-a com seu gosto salgado. Começava a perder o fôlego, quando o nefasto momento ocorreu.

Como que por vontade do cosmos, um cadáver de peixe viajou pelo turbilhão de ondas e foi parar, transportado pelas águas, na boca aberta de Vitor, alojando-se lá dentro como uma espiga de milho gosmenta. As escamas e barbatanas cortaram um pouco sua boca. Tudo isso aconteceu em alguns segundos. E, ao mesmo tempo em que a criatura adentrava, deslizando por sua boca, Vitor emergia, sem fôlego, para a claridade do mundo. Viu, com os olhos vermelhos da ardência, o escorregadio animal dançar para fora de sua boca. O peixe cinza escuro caiu sobre a água e, inerte, boiou orbitando o corpo de Vitor. O olho do animal, exposto como um glóbulo negro e molhado, olhava para o céu, estático. Sentiu uma náusea e repugnância colossal. Queria cuspir; vomitar; limpar sua boca que agora estava imunda pelo nojento bicho que passara por ela. Mais forte do que o gosto da água, era o gosto do peixe em sua boca. Um gosto de morte e podridão que o faziam estremecer. E, antes que pudesse pensar em mais alguma coisa, uma nova onda o atingiu.

O impacto o desnorteou e o que se sucedeu Vitor lembra muito pouco. Nunca soube como fizera para chegar à praia. Quando, já fora d'água, ficou de pé sobre a areia novamente, estava atônito. Tremia enquanto olhava para o chão fixamente, sem saber o que fazer. Uma voz distante e chorosa despertou-o do transe, trazendo-o de volta à realidade. Era sua mãe. Corria agitada, chorando em sua direção. Vitor olhou apático para os lados e percebeu que estava um pouco distante do lugar da praia pelo qual entrara naquele pesadelo terrível.

Que inferno, pensou Vitor, vendo que um de seus amigos vinha cambaleando em sua direção. O copo balançava em uma das mãos fazendo o líquido alaranjado que estava lá dentro derramar-se pelo chão. O garoto cambaleante chegou e sentou-se deslizando ao lado de Vitor. A bebida derramou-se mais uma vez, caindo dessa vez na manga do casaco de Vitor. Suspirou tentando manter a calma. O jovem bêbado olhou para ele com os olhos meio fechados e disse com voz arrastada:

— Opa, cara, foi mal aí! Deixa que eu limpo pra você.

Estabanado, pegou um maço de papel de cima da mesa e, derrubando um pouco mais de bebida no processo, começou a limpar a manga molhada.

Vitor recuou tentando não parecer incomodado:

— Tá tudo bem, cara, deixa que eu limpo. Você queria dizer alguma coisa, Igor?

Igor olhou-o parecendo não entender a situação, deu mais um gole e falou:

— Não te vi comer nada ainda, cara. Que que foi, não gosta de comida japonesa? Come alguma coisa aí! — Terminou de falar e gritou para uma garçonete que passava: — Moça, traz uma rodada de sashimi pro meu amigo aqui!

Vitor, embaraçado com a situação, respondeu:

— Foi mal, é que eu não curto muito comer peixe. Eu comi Yakissoba. Tô de boa.

— Ah, deixa disso! — Falou Igor, parecendo inconformado com a situação. — Cê tem que experimentar o peixe daqui. Para de ser chato, cara.

A garçonete voltou trazendo uma pequena bandeja. Colocou-o na frente de Vitor e, com a mesma rapidez que veio, ela se foi. Vitor encarou o prato: quatro fatias de salmão dispostas solitárias no prato branco. Sentiu seu estômago se embrulhar. O cheiro daquilo já lhe causava um mal-estar. Fazia-o lembrar de seu afogamento. Igor, ao seu lado, já separava os hashis.

Tentou explicar que não queria comer o maldito peixe, mas nada adiantava. Igor nem o escutava; continuava apenas insistindo. Cansado, Vitor decidiu experimentar uma fatia. Afinal, aquilo foi há muito tempo, não?, pensou um pouco, Uma fatia não vai me matar. Quem sabe eu até goste. Só um e aí e eu volto pra casa.

Respirou fundo e, com rapidez, levou o pedaço de salmão à boca. O gosto explodiu em seu paladar, fazendo todas as lembranças retornaram em um turbilhão. Sentiu o gosto do sal marinho; lembrou-se da água amarga e suja entrando e jorrando por sua garganta aberta. E, principalmente, o gosto do peixe. O gosto horrível do cadáver do peixe. Sabia que aquilo tudo era psicológico. Mas, ainda assim, sentia-os tão vivos quanto no dia.

O cheiro forte do peixe, misturado com seu gosto, quase o fizeram vomitar. Lembrou-se das ondas se formando no horizonte e deslizando, uma a uma, em sua direção, prontas para afogá-lo.

De olhos fechados, absorvendo toda a situação, uma imagem se projetou na escuridão de sua mente: uma cabeça gosmenta e fedida de peixe. A mandíbula inferior do animal projetando-se proeminentemente, revelando uma fileira de pequenos dentes pútridos e desgastados, apesar de extremamente afiados. Na cabeça, sulcos e buracos com sangue seco percorriam as escamas como feridas. As escamas carcomidas e sem brilho. Secas. Por último, os olhos que tanto detestava: aquosos e amarelados, com uma grande pupila negra e dilatada no centro, produzindo um estático olhar letárgico. Neles, refletia-se toda a bestialidade animalesca que movia aquele pequeno ser aquático desprovido de qualquer razão.

A carne gordurosa e macia do salmão desmanchou-se, alastrando-se por toda sua boca até que desaparecesse por completo, deixando apenas seu gosto como lembrança de que estivera ali. Vitor sentiu vontade de vomitar e expurgar de seu corpo aquilo que havia comido. Seu amigo olhava surpreso para ele. Tentou suavizar a cara de nojo que fazia com uma brincadeira, mas seu rosto devia estar branco e horrível:

— Preciso ir ao banheiro urgentemente. Já volto aí. mas é horrível! — Disse com um sorriso amarelo estampado no rosto.

—Preciso ir ao banheiro urgentemente. Já volto aí.

Levantou-se da cadeira e foi em direção ao banheiro, deixando Igor – que, naquele momento, quase dormia sentado – sozinho na mesa.

Trancou a porta atrás de si e foi para o vaso vomitar. Diferente do que pensava, aquilo não ajudou muito. O vômito pareceu trazer o gosto do peixe à sua boca novamente. Olhou para a água e viu, solitário e pequeno, um pedaço de carne boiando na água. O enjoo ficou mais forte. Correu para a pia e, abrindo a torneira, deixou a água fria escorrer em sua boca, na tentativa de tirar o gosto daquilo. Tinha de voltar para casa. Secou a boca e o rosto molhados com papel e esgueirou-se para fora do banheiro. Passou no caixa, pagou sua conta e, sem se despedir de ninguém, deixou o restaurante para encontrar a noite fria e carregada pela chuva que agora caia com maior intensidade.

***

O caminho de volta para casa foi sofrido. Sua barriga balançava pesadamente, ronronando de tempos em tempos como um grande gato gordo. Sentia um enjoo leve se avolumar aos poucos enquanto caminhava. Já no fim do caminho, o enjoo passou de uma brisa serena para uma tempestade. Assim, respeitando a urgência, suas passadas se tornaram uma corrida desengonçada. Teve sorte de a rua estar vazia. Em cidades maiores, haveria pedestres e carros para todos os lados a essa hora, prontos para ver um adolescente correndo com a mão à barriga e um semblante sofrido estampado. Em seu trote, deixou o pequeno mercadinho apagado do bairro para trás. Às suas costas, o letreiro em forma de carrinho de compras brilhava com um enorme “Compre Bem” escrito. Vitor virou na primeira esquina até uma rua onde os prédios diminuíam de quantidade e davam lugar para as casas e sobrados. Sobrea o asfalto, um toldo verde formado pelas copas das árvores se erguia, as folhas e galhos tampando os postes de luz. Seguiu alguns passos e finalmente chegou à frente do muro de cor alaranjada de sua casa. Não conseguiria aguentar muito mais. Algo dançava em sua garganta, louco para sair.

Destrancou o portão de casa tentando não fazer barulho. A porta se arrastou pelo piso com um guinchado agudo. Não se importou com aquilo. Passou pelo quintal que levava à porta principal e a abriu. Lá dentro, o lugar estava apagado e sem barulho algum. Seus pais já deviam estar dormindo há um tempo. Raramente ficavam acordados até mais tarde. Correu direto para o banheiro que ficava no primeiro andar.

Quase caiu quando se abaixou sobre a privada e uma forte tontura fez o mundo rodar de repente. Desejou fortemente que ninguém o ouvisse. Afinal, o que pensariam? O filho voltando para casa bêbado e vomitando no andar de baixo. Sentiu uma pontada de vergonha por isso, ainda que soubesse que a história era diferente. Sempre fora um puritano em relação às bebidas, e seus pais compartilhavam da ideia. Ali, jogado sobre a privada, via-se humilhado.

As sensações que sentira no restaurante estavam muito piores agora. Vitor sabia que muitas delas eram fruto de seu psicológico pregando-lhe peças. Seu cérebro evocava os gostos e textura de um peixe muito mais horrível do que aquele inocente salmão rosa que comera. A imagem da cabeça putrefeita e ferida do peixe saltava como uma aparição no escuro de sua mente; e ele, inutilmente, tentava afastá-la. Era certo que sua imaginação tinha parte nisso. Mas também estava ciente de que havia algo de muito real naquilo tudo. Algo que ultrapassava o simples efeito placebo. Além do enjoo e da vontade pungente que sentia de vomitar, uma série de pontadas e uma dor de barriga aguda também se faziam presentes. Um refluxo intenso fazia-o arrotar incessantemente e, toda vez que o fazia, o gosto marinho irrompia em sua boca em um amalgama indissociável, trazendo consigo o sal, a carne, as profundezas, e as algas que crescem na escuridão.

Foi até a cozinha e ingeriu todo tipo de coisa que poderia ajudar a tirar-lhe o gosto fulgurante que estava impregnado em sua boca. Abriu a geladeira e tomou as coisas que teriam os sabores mais fortes. Pegou uma garrafa verde de suco de uva concentrado e bebeu-a quase inteira; tomou também o resto de café que havia na garrafa térmica – agora um pouco frio – e escovou os dentes pelo menos três vezes. Nada funcionava. O gosto infiltrara-se de forma permanente. Apesar das comidas e bebidas ajudarem momentaneamente, o gosto ruim se sobrepunha a todas elas e, com o tempo, emergia novamente à posição dominante.

Quando desistiu das tentativas na cozinha, se jogou no sofá da sala e tentou cochilar. Seu sono foi picotado, e, de minuto a minuto, seu corpo o acordava e ele tinha de se levantar para ir ao banheiro. Passou a noite inteira com idas constantes ao vaso sanitário. Desistindo de dormir, finalmente se rendeu, decidindo assistir alguma coisa. Ligou a televisão e, com o controle na mão, começou a percorrer os canais da tevê a cabo. Fazia tempo que não parava para ver alguma coisa. Quando era criança, sabia o número dos canais e até mesmo suas programações. Agora, quase sete anos depois, os programas eram estranhos para ele. Achava os desenhos animados toscos e idiotas. Ainda assim, sentado à noite no sofá enquanto a sala era iluminada pela luz emitida pela televisão, Vitor sentiu uma nostalgia melancólica. Uma saudade dos tempos passados, quando ele e seu irmão passavam as noites acordados escondidos dos pais, brigando em sussurros sem parar pelo controle da TV neste mesmo sofá. Agora Bruno estava longe, estudando em uma faculdade renomada do país. E esses dias em que podiam de divertir sem se preocupar com nada tinham acabado.

Com esses pensamentos, acabou dormindo um sono irrequieto e cheio de pesadelos.

Acordou no meio da noite de um pesadelo onde se afogava. Esquadrinhou a sala onde dormira, aliviado por não estar se afogando de verdade. Com a luz forte da televisão sobre seus olhos e com a visão oscilando, tirou o celular do bolso e viu as horas na tela: 3h27. Não consegui dormir muito, pensou. Sonolento, olhou para ver o que estava passando. Era o Discovery Channel. Que conveniente, pensou, era tudo que eu precisava agora. Na tela, a câmera do programa percorria o embaçado fundo do mar. Flutuando por cima de jardins de corais e entre cardumes de peixes. Os mais diversos tipos deles se apresentavam à câmera. Suas cores brilhavam em meio ao fundo turvo e obscuro do oceano. Ao fundo da imagem, uma lula viajava desolada em um nadar vagaroso. Estou bem melhor agora, ironizou, desligando a televisão.

A sala imergiu na completa escuridão e ele dormiu novamente.

***

Era o terceiro dia de sofrimento desde que ingerira aquela pequena fatia de salmão e nada havia melhorado. Pelo contrário, as coisas apenas se intensificaram.

No segundo dia, começou a sentir contrações pelo corpo e, às vezes, algumas fisgadas e repuxões na barriga faziam-no gemer de dor. A cólica o assomava durante o dia inteiro, acirrando cada vez mais. Cogitou a ideia de estar com pedra nos rins. Sabendo que aquilo já estava indo longe demais, decidiu ir ao médico. Sua mãe o acompanhou até o consultório. A consulta foi rápida, e Vitor voltou de mãos vazias. O médico apenas repetira que aquilo não passava de uma virose leve e que Vitor deveria tomar alguns remédios até que as náuseas passassem.

Antes de voltar para casa, pararam em uma farmácia e comprar os remédios que o médico pediu. Vitor os tomou, mas eles de nada serviram. Ele percebeu que a água morna do banho ajudava a diminuir as náuseas e contrações. Desesperado, encheu a banheira e entrou na água. Como em um milagre, seu corpo pareceu descansar. A dor passou e até mesmo as ondas de tonturas pararam. Com o corpo submerso, sua barriga parou de roncar. Aquilo era um alívio. Um sopro de vida em seu tormento.

Assim, durante sábado e domingo, Vitor repetiu esse processo diversas vezes. No sábado, deslumbrado com a descoberta que trazia tamanho conforto, ele encheu a banheira e passou boa parte da madrugada lá dentro. Isso se tornou um vício. A água quente amenizava a dor. Deixava sua barriga amortecida e menos ativa. Seu corpo começava a exigir a banheira a todo momento.

Várias vezes ao longo do dia, quando passava pela cozinha, aproveitava para tentar tirar o persistente gosto da boca comendo algumas coisas. Entretanto, os arrotos e soluços pareciam vir mais fortes a cada dia que passava, persistentes na tarefa de fazer Vitor se lembrar do gosto ruim.

Durante a noite, quando dormia, sonhava com a cabeça machucada do peixe. Ouvia o som opressivo do fundo do mar enquanto animais volviam-se e observavam seu corpo que boiava inerte na vasta escuridão. Seus olhos queimavam, mas ele não conseguia fechá-los, e ele acordava gritando aflito.

***

Na noite do terceiro dia seus pais – sem saberem que os problemas que afligiam Vitor eram tão sérios – saíram para comer pizza com uns amigos e só voltariam mais tarde. No quarto, Vitor gemia de dor. Deitado na cama, contorcia-se por baixo dos lençóis. As fisgadas agora se tornaram insuportáveis e ele queria gritar de dor. Em seu íntimo, considerava a ideia de que, talvez, o salmão que comera, não estivesse sozinho.

— Tem alguma merda dentro de mim! — Ele resmungava, delirando febril.Aquele salmão comeu alguma coisa no mar e trouxe pra dentro de mim! Sim! Aagh! — Berrou com a pontada que sentiu no estomago. — Alguma coisa tá crescendo aqui dentro de mim, porra! Tá vivendo aqui! Tem alguém aí?! Mãe?!

Em seu estado atual, tinha a impressão de que pontadas que sentia mais pareciam alguma coisa mordendo enlouquecida sua barriga por dentro. Como se algo vivo roesse seus ossos e órgãos. Chapinhando enquanto beliscava as paredes de sua barriga.

Urrando de dor, estendeu a mão para pegar o celular e ligar para os pais pedindo ajuda. Sem encontrar nada, olhou em volta e viu que o celular estava caído no cão. Tentou se levantar do da cama e as fisgadas irromperam estocando-o por inteiro como facadas. Dobrou-se com a dor, caindo com força sobre o chão. Com o impacto, sentiu o vômito subir implacavelmente. Os arrotos espasmódicos e incontroláveis saíram desenfreados de sua boca. O cheiro de mar subia por suas narinas infestando o quarto em um odor nauseante. Estava atordoado e pontinhos brancos cobriam sua visão ao mesmo tempo em que sentia as facadas em sua barriga.

O pensamento de que algo crescia dentro de sua barriga como um parasita logo se tornou uma convicção. Imaginava a cabeça de peixe viva e crescendo dentro de seu corpo; nutrindo-se dele. A ideia era aterradora.

— Tenho que tirar isso de dentro de mim! Tenho que ti... — repetia com a voz baixa e arrastada. Sua mente era agora uma coisa confusa e vacilante. Bambeava entre a consciência e o completo delírio. Por que essa merda não sai de mim? Sai! Saaaii! Banheiro. Agora. Preci...

Sua barriga retorcia-se agitada, sendo arrastada pelo chão frio. Os movimentos revelaram uma protuberância. Com olhos arregalados, Vitor viu a pequena bola que se formava e se movia ali. Um frenesi tomou conta de seu corpo: Caralho! Eu tenho que tirar essa porra de mim! O silêncio no corredor era apenas quebrado pelo som de sua barriga roncando enquanto Vitor escalava o chão até o banheiro. Quando chegou, envolveu o vaso com os braços.

Atormentado e sem aguentar continuar passando por aquilo, colocou o dedo dentro da garganta e começou a mexer alucinadamente. Os arrotos vieram em um turbilhão, junto com o gosto de sal marinho e peixe. Sua barriga revirava sem parar, produzindo um barulho que ecoava pelo banheiro. Caralho! Caralho! Que porra é essa?!, gritava em sua cabeça enquanto o dedo indicador girava molhado em sua goela.

Finalmente, o vômito veio. Primeiro em pequenas golfadas de cor cinza esverdeada, extremamente salgadas. O líquido se derramou sobre o piso. Não demorou muito para o resto vir. Tudo que havia dentro de Vitor saiu em um jorro de pedaços acinzentados com gosto de mar. O gosto de peixe desabrochou, vindo de sua garganta até o céu da boca. O sal era insuportável, tão forte que fez lágrimas descerem. Algo maior subia por sua garganta com dificuldade, debatendo-se como uma bola por um cano apertado. De soslaio, olhando de cima para a ponta de seu nariz, Vitor pôde ver o que saia junto com o líquido espesso que advinha de sua boca.

Por entre tudo aquilo, uma criatura deslizante vinha retorcendo-se em meio ao líquido que agora adquirira a cor de petróleo. O nauseabundo organismo debatia-se em sua boca fazendo o líquido negro derramar-se pelos lados, caindo em suas roupas e mãos. Meu deus do céu! Isso tava dentro de mim! Tava dentro de mim, porra!, sua mente berrava alarmada. O animal aquático – ou seja lá o que aquilo fosse – desvencilhou-se da boca e caiu no chão produzindo um som abafado. O ser tinha uma aparência cilíndrica e hedionda; quase deformada. Sobre uma poça, ele se debateu-se por alguns segundos como se tentasse respirar desesperadamente e parou. O nefasto animal, que parecia uma mistura amorfa de peixe com órgãos humanos, emitia um cheiro de mar e podridão que dominaram o ambiente, deixando o local inabitável. Pedaços de escamas opacas e prateadas se dispersavam pelo chão, refletindo a luz como óleo. Junto do peixe, dispunham-se o que pareciam ser suas tripas, além de outras coisas inomináveis. As entranhas lodosas e avermelhadas da criatura davam um tom carmesim de sangue ao líquido negro que se derramara pelo lugar.

Inerte no chão, compondo uma degenerada cena, os olhos brilhantes e úmidos da cria blasfema e desmemoriada de Poseidon abriram-se em meio a massa disforme que boiava sobre o negror que se tornara aquela água. Com uma fagulha de consciência, os olhos arregalados viraram-se para Vitor e o encararam.

19. Juni 2019 05:06 0 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

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Guilherme Rubido Olá, que bom que conseguiu chegar até aqui. Seja muito bem-vindo. Por favor, tire o tênis e sinta-se em casa. Parece que começou a chover. Consegue escutar? É uma chuva daquelas... Teremos muito tempo até que pare. Sendo assim, escolha um assento e fique confortável. Aqui veremos muitas coisas horríveis, então, prepare-se. Tem café quente na mesa e bolachas no armário de cima (não mexa no de baixo, não vai gostar do que tem lá dentro). Caso goste do que viu, não se esqueça de deixar uma gorjeta (like) ou comentário para o escritor, ele agradece pela sua cooperação. Para o caso contrário, deixe um comentário com sua reclamação, estamos sempre tentando melhorar. Espero que se divirta. :)

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