Dongkyuck recebe um beijo na testa dia após dia.
Jeno e Jaemin são cobertos por uma manta encardida.
Lá fora, a Lua brilha intensamente para um planeta sem vida.
Dentro de Minhyung, a escuridão encontra sua moradia.
۞
Minhyung faz mais força que o normal para erguer o alçapão de fundo que os protege de toda a podridão da sociedade. O seu corpo, carente de refeições completas há um número incalculável de dias, já não suporta nem sequer o seu próprio peso; o garoto, ainda assim, carrega toda a carga do mundo em suas costas.
É um alívio para os seus braços descer a tampa pesada do abrigo, mas todos os seus músculos se tensionam ao pegar o taco de baseball — posto sempre ali, encostado na parede — e respirar fundo. Não importa o quão fechado seja a pequena garagem daquela casa, o cheiro fétido dos corpos mortos e apodrecidos ainda penetrava por meio do vão abaixo do portão.
Minhyung nunca se acostuma.
Desde que o governo coreano deixou vazar informações sobre experimentos em seres humanos, tudo se transformou em um caos. Descobriu-se o lixão humano, os indivíduos com mutações aprisionados em jaulas, a quantidade absurda de capital desviado para os milhares de testes nocivos. Tudo saiu do controle dos magnatas e, desde então, já não era mais seguro andar na rua — a menos que queira se deliciar com a sensação de ossos putrefatos quebrando sob os próprios pés e apreciar o cheiro ferroso de sangue.
Minhyung nunca se acostuma. Sendo o mais velho, com um coração puro de líder, sente-se na obrigação de cuidar dos mais novos, mas só ele sabe o quão árduo é ser o porto seguro de três garotos desamparados enquanto não consegue ser o próprio pilar. As evasões à noite para procurar por vestimentas, comida e medicamentos corroem o resquício de esperança que guarda em seu coração — inalar o odor de morte faz com que seu espírito morra um pouco a cada dia.
Quando ele abre o pequeno portão de ferro, com os olhos pressionados tamanha a angustia, não consegue refrear a ânsia de vômito que oxida todo o seu destemor; os seus pelos eriçados se tornam amostras gritantes dos seus medos e do seu nojo. O que era antes a casa do brilhante Jisung, onde todos se reuniam aos finais de semana, agora é depósito de alguns corpos que eles não tiveram estômago o suficiente para recolher.
Semana passada eles não estavam tão podres.
Mas Minhyung não pode ter medo, pois, se não for agora, as coisas podem ficar piores do que já estão — e passar fome, sede e esperar o próprio organismo combater enfermidades já não é mais uma opção. Então, com o resquício de esperança em seu peito e uma mochila velha nas costas, o garoto firma o taco de baseball nas suas duas mãos, encosta o portão devagar e se esgueira rente à cerca, agradecendo silenciosamente às árvores por fazerem sombra e ela possa caminhar camuflado diante o negrume das noites da Coreia do Sul; eles são rápidos em farejar vida humana.
O alvo essa noite é uma mercearia na esquina, que estava tomada por eles antes; perdem a capacidade de raciocinar como um ser humano, andam apenas em busca de carne para se alimentar. Quando ele dobrou a esquina, arrepiado da cabeça aos pés, as pupilas nunca tão dilatadas, ele só pôde respirar de alívio ao encontrar o minimercado completamente vazio e, principalmente, seguro. Definitivamente é um dia de sorte.
Não demora mais de vinte passos pequenos e silenciosos para que Minhyung esteja frente a frente com a porta de vidro; mesmo que seja um ato quase inútil, ele a fecha e segura o taco apenas com uma mão, enquanto o seu olhar percorre todo o pequeno estabelecimento. Precisa ser objetivo, rápido e silencioso, mas a suas mãos começam a tremer. Não pode ficar nervoso, não agora.
Primeiro, ele dá preferência aos enlatados e olha rapidamente a data de validade; põe a mochila no chão e mantém uma mão firme na sua única arma de defesa, enquanto a outra pega o que julga ser o suficiente de comida. Arrasta a bolsa para a outra seção e pega algumas frutas e legumes que podem ser comidos crus; reserva um bolso grande somente para garrafas de água e sucos. O armário atrás do balcão, que Minhyung sabia guardar medicamentos, logo é aberto, sendo limpo rapidamente. A última seção é a de produtos de higiene, em que pega apenas algumas pastas de dente, escovas e sabonetes.
Nem todos os dias eram dias de sorte.
Mas, enquanto ainda está abaixado fechando a mochila, o garoto vê claramente um vulto e todos os músculos do seu corpo se tensionam novamente. Astuto, fazendo mínimo de barulho, traz o taco de baseball para si e anda agachado até a proximidade da saída. Não vê mais nada, mas os seus batimentos cada vez mais acelerados não o deixam relaxar. A sua intenção nunca falha.
Levanta-se, reunindo toda a coragem que um cara de dezenove anos pode ter, e segura o bastão, o corpo firme no chão e a audição mais atenta que nunca. Mas, quando vê novamente o contorno de um corpo menor que o seu e cabelos esverdeados passar diante de seus olhos e o olhar com sede de sangue, toda a sua intrepidez é substituída por lágrimas.
Zhong Chenle.
— Calma aí, garotão. — O riso de nervoso quebra o silêncio aterrorizante, juntamente com o barulho da porta de vidro se abrindo. Às vezes, Minhyung é deveras impulsivo. Ele não gosta do sabor que as lágrimas têm. — Não se lembra de mim?
Da silhueta coberta pela penumbra não vem nada além de uma respiração ofegante e barulhos estranhos saindo daquilo que já foi uma boca. Minhyung não pode enxergar muito, mas o tom verde dos fios de cabelo são inconfundíveis; no entanto, os olhos vermelhos como sangue e os ferimentos abertos e petrificados o causam náusea.
— Ei, Chenle, sou eu, Lee Minhyung, você não se lembra? — Nenhuma resposta, apenas olhos fixos nos seus. Medo. — O seu Mark! O Mark do violão, das noites de freestyle, que comprava sorvete para você e o Jisung. Qual é, garotão? Tô com saudades! Eu, Jeno, Jaemin e Donghyuck vivemos falando sobre vocês, estamos com saudades...
Mas Minhyung não abaixa a sua guarda; o taco nunca esteve tão firme em suas mãos. E, ao sentir a respiração descompassada mais perto do que deveria daquele que um dia já foi seu amigo, ele infla o peito de ar e reúne toda a valentia que ainda guarda em seu peito. Depois de tanto tempo, não pode simplesmente ceder a sua vida à saudade de um cadáver.
Então, quando sente a carne podre lhe tocar o braço com a premência de um desmorto com fome, o garoto não hesita em pôr toda a sua força em seus braços e acertá-lo em cheio na face com o bastão, sentindo o sangue fétido respingar por todo o seu rosto e pedaços de carne petrificada esvoaçarem. Ao ver o corpo caído no chão, Minhyung sente pânico, tristeza, vontade de chorar, mas ele não pode desabar agora.
Corre o máximo que consegue; fez mais barulho que deveria batendo-no na frente da mercearia — desmortos são astutos. Quando olha para trás, após apenas poucos segundos, há mais de cinco deles correndo atrás de si, atraídos pelo seu cheiro e seus movimentos bruscos; eles são rápidos, mas desengonçados. Minhyung precisa despistá-los, pois não quer mais podridão no quintal do falecido Jisung.
Decide pular o muro da primeira casa da esquina, o corpo ardendo em resposta ao seu cansaço e ao peso da mochila em suas costas, mas ele encontra em seus meninos a força para continuar. Então, com lágrimas adornando seus olhos e um sorriso melancólico no rosto, ele pula e corre mais quintais que consegue contar, respirando aliviado quando não há mais ninguém atrás de si e salta a cerca da casa em que se abriga.
Seu estômago dá voltas quando ele sente o cheiro do que restou dos corpos se misturar com a grama do quintal e tudo se mescla com as lembranças de Chenle tomado pela podridão, mas a única coisa que pode fazer é ignorar o fato de que ele foi covarde demais para não tê-los tirado da área antes de se decomporem e que não pode mais mudar o destino que seus amigos levaram; mais do que nunca, ele quer chorar.
Quando levanta a tampa de chumbo do alçapão, tudo que vê é escuridão, mas a silhueta de Donghyuck sentado no colchão velho é inconfundível; Jaemin e Jeno parecem estar em sono profundo. Mesmo que talvez o mais novo não possa ver, Minhyung sorri como um meio de dizer silencionamente que está tudo bem.
— Mark… — o garoto sussurra, como se pudesse chorar a qualquer momento. E talvez chore, mas não quer acordar ninguém, ou preocupar. — onde que você estava? Eu fiquei tão preocupado, Mark. — Ele vê os respingos de sangue escuro no rosto e nas mãos do amigo, que até tenta conversar sobre o que aconteceu, mas não há palavras para descrever o quão assustado estava. — Vem cá.
E Donhyuck o pega pela mão, entrelaçando seus dedos aos dele sem se importar com os pingos de sangue ferroso já secos em sua pele, e Minhyung finalmente se sente em casa, com o coração aconchegado e as lágrimas secando. Quando ele é levado para o outro “cômodo” do esconderijo, ele se permite respirar fundo novamente e sorrir abertamente para o Lee mais novo, que o retribui apenas com um crispar de lábios.
— Não me olha assim… — Minhyung chia, tão baixo que Donghyuck quase não consegue escutá-lo. — Eu encontrei o Chenle, acredita?
A essa altura, os dois já estão sentados no chão de cimento, um de frente para o outro, enquanto o mais novo puxa um balde de água da chuva para mais perto de si e procura por um pano, disfarçando o aperto no peito que se torna cada vez maior; a mochila com suprimentos é posta de lado, e o mais velho retira a sua camisa.
— Como assim? — Donghyuck pergunta com a sobrancelha arqueada e os olhos fixos nos do amigo, que apenas desvia o olhar e encara o chão. — Mark…
— Eu fui buscar coisas para a gente — Olha para a bolsa ao seu lado — e, já na saída, acabei que encontrei Chenle, mas ele estava morto, Hyuck, morto. A pele dele estava com uma cor estranha, seu sangue fedia e seus olhos estavam vermelhos. Eu senti tanta vontade de chorar, Hyuck...
Minhyung sente as próprias lágrimas limparem o sangue de seu rosto que o Lee mais novo ainda não ensaboou; a imagem dos fios esverdeados não sai da sua cabeça, e isso lhe dói tanto.
— Eu só o reconheci porque o seu cabelo era verde, e ainda estava do jeitinho que ele cortou... Faz pouco tempo, né, Hyuck? — É uma pergunta retórica, mas Mark o olha como se não fosse; ele apenas concorda, sentindo a garganta fechar pelo choro contido. — Ele me olhou como se quisesse me devorar inteirinho, até os meus ossos, e eu tive a confirmação de que isso era verdade quando os olhos dele brilharam de um jeito estranho e ele veio para cima de mim. Não teve jeito, eu bati forte nele com o bastão e ele caiu, voando sangue e pedaços da sua pele podre por toda a parte. Eu me senti tão vazio, Hyuck, mas tão desesperado… Achei que iria desabar ali mesmo e sucumbir à saudade dos nossos amigos, mas eu não poderia deixar vocês… Você, que é tão precioso para mim.
Quando Minhyung termina de falar, com os olhos cheios de lágrima e as mãos tremendo, Donghyuck já o ensaboou todo com um pano e limpou com um outro que achou pelo canto; está cheirando a erva-doce.
— Eles fazem tanta falta, Hyuck… — choraminga como uma criança, apertando as próprias coxas em uma tentativa falha de parar de tremer; as lágrimas são inevitáveis. — Eu queria voltar a me reunir com todo mundo aqui na casa do Jisung, mas agora tem um monte de corpos largados no quintal e Jisung já é um deles, andando por aí por trás de carne fresca ou jogado no chão todo podre e despedaçado. Por que as coisas são assim, Hyuck?
E Donghyuck não consegue responder, muito menos conter as lágrimas presas há tantos minutos — tantas semanas. Com o corpo trêmulo e os olhos embaçados de choro, ele traz Minhyung para perto em um abraço e se recorda dos dias em que os abraços não eram acompanhados por dor e saudades. O canadense cheira a sabonete novo, mas o coreano sente cheiro de casa.
— Eu também sinto falta dos nossos garotos, Mark, mas uma hora vai ficar tudo bem, tá bom? Eu prometo — É a única coisa que consegue responder, seguido de muitos beijos no ombro alheio.
Sem mais trocarem uma palavra, eles retornam para os colchões e Donhyuck o segura pela mão para que eles deitem em um mesmo colchão; quer protegê-lo, cuidá-lo além daquela máscara madura e forte que ele exterioriza. Minhyung não o nega, prontamente se deitando e sentindo o peso do corpo alheio lhe afundar, rodeando sua cintura com os braços e recebendo beijinhos de gratidão no ombro tensionado.
— Você trabalhou duro hoje, Mark, pode descansar. — Sorri, selando os lábios na nuca do mais velho e o apertando ainda mais em um abraço caloroso. Tem certeza que ele sorri, e então o seu coração se aquece. — Sou muito agradecido por te ter na minha vida, sabe, e tenho certeza que Jeno e Jaemin também. Nós amamos você.
— Eu também amo vocês, Hyuck — murmura, a língua já enrolada tamanho o cansaço, mas o sorriso tão grande quanto antes. — Eu amo você, muito.
E, sob os beijinhos doces e o abraço aconchegante de Donghyuck, Minhyung adormece protegido, como se nada pudesse magoá-lo e ou machucá-lo enquanto estivesse ali.
— Eu também amo você, Mark.
۞
Minhyung recebe um beijo na testa no fim do dia.
Jeno e Jaemin ainda estão cobertos por uma manta encardida.
Lá fora, a Lua brilha intensamente para um planeta sem vida.
Mas, dentro de Minhyung, o amor encontra sua moradia.
Vielen Dank für das Lesen!
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