No primeiro domingo do ano, o Sr. Derville desceu as escadas e encontrou um cadáver na sala de estar. Dentre todas as esquisitices da vida marciana, a cláusula dos domos confederados, a insistência dos nativos em sorrir e fingir a inexorável inexistência da IA soberana sentada no simbólico trono terráqueo, as sucessivas peculiaridades da Elisa, aquela, definitivamente, foi a pior. O idoso continuou observando, hipnotizado pela própria descrença.
Um barulho no segundo andar o despertou.
— Deus do céu... — Deu meia-volta. Das escadas ao quarto, nem vira o caminho até bater a porta atrás de si.
Lá, a genoide cuidadora arrumava a cama.
— Elisa... — ele balbuciou, tremendo. — Deus do céu... Elisa!
— Perdão, Sr. Dervile? — ela perguntou, com a comum expressão sem emoções, a mesma que acolhera o Sr. Derville há cerca de dois anos quando os filhos o largaram no planeta vermelho.
— Meu Deus... — Foi a resposta. — O que diabos é aquilo?
— Sr. Derville, qual o problema?
— Na sala, diabos! — gritou, saltando da poltrona. Porém, a fúria se esvaiu. Ele voltou ao assento, tremendo e impossibilitando qualquer resposta verossímil.
Sem maiores explicações, a ginoide saiu do quarto. Provavelmente, para sala. Ou não. Ele tinha suas dúvidas. Elisa era uma ginoide autônoma capaz de decidir as próprias ações e, como o Sr. Derville já declarara certa vez a seguradora, ela se mostrava insatisfeita com a função de cuidadora.
— Já basta as quedas de energia, os fantasmas holográficos, os ruídos à noite... — ele murmurava. — Agora um cadáver?!
Pouco depois, a cuidadora retornou.
— Você viu?
— Sim, tem um cadáver na sala.
— E?
— Não é meu. Os meus ficam guardados no porão. — E a imparcial expressão da ginóide se configurou num singelo sorriso.
— Ah! Maldita hora em que pedi uma bem humorada. Não compreende a situação?
— Perdão...
O idoso, tremendo, levantou da poltrona.
— A situação está péssima. Nunca houve relatos de um assassinato em marte desde o arrebentamento. Como vou contatar a patrulha e dizer: "eu não sei como, mas tem um corpo em avançado estado de decomposição na minha sala. Você poderia mandar alguém vir buscá-lo, por favor?".
— O senhor o matou?
— Não!
— Então? O senhor não tem culpa. Alguém invadiu a casa e o largou aqui.
— Isso! A porta foi arrombada?
A ginoide balançou a cabeça de um lado ao outro.
— Hackearam o sistema de segurança?
Ela repetiu o gesto.
— Então, como? Como?!
Desta vez, ela ergueu os ombros.
— Por que não me deixou descer?
— Por que deveria? O seu trabalho é aqui no meu quarto.
Na verdade, sentia medo dela e de alguma brincadeira sem sentido, embora a programação da ginóide jamais admitisse algo do gênero.
— Devo ligar para a concessionária e pedir que alguém venha me buscar?
O idoso enrugou a testa.
— O senhor precisará de mim depois da execução — ela fez o gesto de aspas com os dedos —, no céu?
O Sr. Derville baixou a cabeça.
— Estou perdido — ele disse, tapando o rosto com as mãos. — Perdido! Serei preso e executado. Deus!
— Senhor, seja racional. A polícia investigará e concluirá que o senhor não o assassinou.
— Sim, vai sim não é mesmo?
— Sim, talvez. — A ginoide ponderou. — Porém, concluirá que senhor permitiu a entrada do assassino e a ocultação da vítima, e, como se arrependeu, afinal a decomposição segue em estado avançado e não há como negar sua presença no recinto, o senhor decidiu fingir sua inocência, em uma certa manhã, tentando, porventura, iludir a polícia com uma farsa elaborada, na qual até a própria ginóide, que fora proibida de descer as escadas há três semanas, está envolvida.
— Agora você compreende meu receio.
— Sim. Neste caso, a ocultação de cadáver é plausível.
— Eu sei disso. Mas... Mas por que eu faria isso?
— Dinheiro.
— Sim, faria por dinheiro. Seria a conclusão dos patrulheiros. Estou sem uma unidade sobrando. Mas, mas... O que devo fazer?
— Esconder o corpo no porão e fingir que isso nunca aconteceu. — O idoso ergueu a cabeça. — Eu jogo o corpo no porão, o senhor deleta a minha memória e o assunto é dado como encerrado.
— O que?! De agora em diante viverei com um cadáver na minha casa? Você tem ideia do tamanho dessa sandice?
— Sim.
— Jamais! Haverá outro jeito.
— É o único jeito. Entre um infinito de possibilidades, calculadas e recalculadas, não há outra ideia vagamente aceitável.
O idoso baixou a cabeça e só ergueu para ver a ginoide saindo, provavelmente foi esconder o cadáver. Provavelmente. Ou não.
Ele tinha suas dúvidas.
Novamente, a ginoide retornou ao quarto.
— Já guardou?
— Não. — Ela sentou na cama, e ela nunca sentava na cama. — Perdi alguns minutos procurando ele, e não o encontrei.
— Pro... Procurando?
— Correto, procurando.
O idoso encarou toda a inexpressão da ginóide.
— Ele desapareceu.
— Deus do céu...
— Não — Elisa corrigiu. — O cadáver.
E riu.
Um comprimido e um copo com água aplacaram o susto, e o Sr. Derville também riu. Afinal, recordou-se quem era o cadáver.
Vielen Dank für das Lesen!
Que final arrebatador! Elaborei muitas teorias, mas certamente nenhuma delas seria tão genial quanto o enredo que, aliás, é muito bem desenvolvido. Foi uma leitura que proporcionou muitas sensações.
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