amanda-kraft1664221938 Amanda Kraft

Dizem que para abalar uma amizade basta a presença de uma mulher. O que você faria se seu melhor amigo desejasse a garota pelo qual você está apaixonado? Afogaria esse amor em prol de uma amizade sincera ou lutaria por ela? Algumas decisões trazem sérias consequências.


Übernatürliches Geistergeschichten Nur für über 18-Jährige.

#50774 #crime #castigo #sobrenatural # #fantasma
Kurzgeschichte
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Confissão


Talvez sejam essas minhas últimas palavras transcritas em papel, onde a sanidade ainda se encontra arraigada em mim. Sinto-a dando ares de que irá embora assim que o vir cara a cara e o terror dominar minha mente conspurcada. Sei que logo ele virá e não há nada que possa fazer além de me redimir, confessando solenemente meus pecados. Espero-o chegar ao sopro da brisa que logo se transformará em um vendaval, tal quais minhas próprias emoções conflitantes. As nuvens encobrem as estrelas e o uivo irritante do vento insiste sua entrada pela fresta da janela.

Deito-me, mas não posso dormir. As sombras no quarto incomodam e ferem meus olhos enfermiços. Tenho o ímpeto de acender a luz, mas minha mão paralisa debaixo das cobertas. O medo habita nas sombras e nos segredos asselvajado de nossos atos. Sinto inveja do sono solto de Luiza ao meu lado. Temo que ao abrir os olhos ele esteja ali, inchado e molhado, aos pés da cama. Foi difícil segurar o grito quando o vi pela primeira vez, encarando-me com olhos apertados e furiosos, depois de um cochilo, quando a dor resolveu me deixar. Meu purgatório vil e amargo.

Venho tomando os medicamentos prescritos às escondidas. Sei que são paliativos contra o mal que me aflige, pois sinto a cada dia que passa as células do meu corpo se multiplicarem desordenadamente. Sei o que cresce dentro de mim, mas não tenho medo desse mal que me corrói as entranhas. Tenho mais medo do inimigo que rasteja na sombra amarga. Medo do meu castigo e do que fará comigo, pois tenho certeza de que conhece meu tormento e fará uso dele para que me arrependa do que lhe fiz. O negrume da tumba fria, que me envolve cada vez que fecho os olhos, faz-me sentir sua presença, seu cheiro pútrido. Às vezes penso que esse cheiro é tão meu quanto dele e que o grande C foi imposto por mim mesmo. Remorso? Não sei.

Tive uma boa vida com minha adorada Luiza. A visão de sua face plácida e singela cegou-me de sobremaneira assim que pus os olhos nela. O amor me arrebatou tirando-me o ar, fazendo-me afogar em sua beleza e virtude. Não tenho coragem de contar-lhe meu desvalido. Fi-la pensar que meu mal é só uma doença boba e que os medicamentos na mesa de cabeceira logo irão restaurar minha saúde. Sei que lerá minha confissão e saberá o que fiz para tê-la ao meu lado. Não sei se terei o seu perdão. Espero que o nosso amor e tudo o que derramei aos seus pés, nesses anos todos de devoção, possam aplacar o ódio que terá de mim. Fi-lo por amá-la mais que a mim mesmo.

O vento aumenta, trazendo as vozes dos mortos com ele. Ouço os primeiros pingos de chuva fustigar o telhado e aguço os ouvidos. Por um instante prendo a respiração desejando que tudo acabe logo. Dói-me ficar sem minha amada, entretanto devo me conformar que vivi entre os anjos nesse breve período de compartilhamento mútuo. Alguém está subindo a escada. Meu coração acelera e me ensurdece.

Os passos são abafados e parecem molhados. Bem sei que estão molhados. O rastro poderá ser visto no tapete que cobre os degraus, se eu tiver coragem de levantar e fechar a porta. Talvez ele não consiga passar por ela se eu der o impulso necessário e cerrá-la para sempre. Apenas um pesadelo que não terá fim. O coração me vem à boca pensando-o que se mostrará frio, plúmbeo. Seus olhos estarão opacos e sem vida na pele carcomida pela boca faminta de inúmeros peixes. O inchaço deve tê-la deixada deslocada dos ossos. Talvez caiam feito postas ao chão quando ele vier me observar aos pés da cama. Desejo que a morte me leve antes de ter que olhar mais uma vez para aquele rosto faminto.

Fomos amigos. Formávamos um trio inseparável até que a menina de longas madeixas claras sucumbiu aos encantos de Flávio. Luiza, minha doce Luiza se apaixonou por ele. Não o culpo já que não podia ser diferente. Ele era o rapaz gentil, amável e cativante de quem todos gostavam. O meu amigo que mais prezava nessa vida. Não minto ao dizer que o admirava e amava como a um irmão e que, por inúmeras vezes, desejei ser como ele, entretanto, nossa natureza é o que é. Não se pode ser algo diferente sem parecer falso.

No dia em que se deu a tragédia, Flávio esperava pelo findar da tarde com a ansiedade aflorada. Seus pais viajariam e ele a levaria para sua casa naquela noite. Confidenciou-me que queria dar um passo a mais na relação dos dois, sem saber que me causava imensa dor. Viu nela o que nunca vira nas outras. E houveram muitas, caídas aos seus pés, cuja maioria era elegantemente deixada de lado. Sofriam em meus braços na busca de consolo, o que fazia meu coração fervilhar de ciúme e de temor.

Algo morreu dentro de mim naquela tarde quando soube de sua intenção. Luiza seria dele naquela noite, avolumando a mágoa que eu teimava esconder até então, pelo amor que sentia por ele. Entretanto não pude controlá-la, e confesso que a deixei fluir, no desatino de uma mente árdua que compactua com o diabo. Deixei-a se avolumar enquanto arquitetava sua desgraça. Sua crescente ansiedade pelo cair da noite foi aplacada no convite que lhe fiz, para pescarmos durante a tarde. Ele adorou a ideia. O lugar estava quase vazio, exceto por um casal de idosos sentados languidamente com uma vara na mão, observando o rio. Nenhum peixe mordeu a isca, o que era previsto pela quantidade de chuva dos dias anteriores.

Decidi nadar, sendo exímio na atividade, suplantando-o pelo menos nisso. Flávio seguiu-me dando braçadas largas. Chegou até mim, rindo e espirrando água, feliz como um garoto, o que aumentou ainda mais o ciúme cego e faminto que me escravizava. Estava feliz. O velho gritou que a correnteza estava forte. Sabia-o bem, já que passara a noite reprisando a cena em minha mente angustiada. Segui adiante, aprofundando-me nas águas turvas, sabendo que ele me seguiria. A cãibra veio repentinamente e ele parou, para minha sorte. Gritou para que eu o ajudasse. Voltei-me para ele e esperei alguns segundos, observando-o.

Flavio afundou. Nadei ferozmente até ele que emergia, desesperado, com uma mão para cima. Agarrei seu braço. Ele sorriu, aliviado, agarrando-se a mim. Encarei-o e o ciúme aflorou mais uma vez, de forma tão intensa, dominando-me completamente. Ele soube ao ler meus olhos e, num ímpeto de puro entendimento, soltou-se de mim, confuso. Afundou novamente, resignado. Fingi procurá-lo enquanto gritava por ajuda, mantendo-o submerso.

Era tarde demais para voltar atrás. Retornei à margem, enlouquecido. Não foi fingimento o meu desespero. Entre pensar e agir há uma imensa linha, que acaba se tornando tênue quando os sentimentos afloram vingativos e cruéis, ao deixar que o próprio diabo se aposse de você. E naquele momento se apossou de mim e não pude lutar. Não quis. Ele se foi e após uma semana seu corpo foi encontrado.

Luiza sofreu. Eu também. Expliquei-lhe inúmeras vezes que não me foi possível salvá-lo. Preferia até que tivesse sido eu em seu lugar. Ela pedia para eu não repetir tais palavras que só a faziam sofrer ainda mais. Deus sabia o que fazia. Se aconteceu do jeito que descrevi era porque Deus permitiu que assim o fosse, sem saber que fui Deus naquele momento. Era-me difícil vê-la com olhos marejados, sentindo a saudade corroê-la. Corroía a mim também, de certa forma, mas o desejo de ficar com minha adorada suplantava a saudade.

Aguentei calado e humilde, enquanto Luiza discorria a falta que ele faria nas horas em que estava acostumado a aparecer em sua casa, ou do aperto de seus braços na poltrona de um cinema, onde seus beijos a faziam esquecer-se do filme. Mas fui forte durante seu luto. Mostrei-lhe que Flavio havia partido, mas eu estava ali, segurando sua mão, e ficaria para sempre se ela assim permitisse. Com o passar do tempo o esqueceu. Não de todo. Mas o suficiente para eu conquistá-la e me casar com ela.

Contudo, agora é hora de pagar por meus pecados e sei que uma simples confissão nessas folhas em branco não o deterá. A chuva fustiga a casa em meio aos trovões que varrem o céu e mesmo assim o sinto. Seus passos morrem na porta do quarto, pesados. A escuridão do corredor o encobre enquanto meus olhos se prendem na porta que abre de mansinho, alumiada pelo clarão dos raios vingativos. Engulo em seco ao notar os dedos inchados apontando, acusatoriamente, para mim.

Minha respiração acelera e sinto o grito morrer na garganta vazia. Aproxima-se de mim, encarando-me com olhos mortos e cheios de ódio. A visão é terrível. O rosto, antes delgado e belo, está redondo. Falta parte da bochecha. Os lábios não existem mais, deixando à mostra dentes esverdeados. Os cabelos parecem boiar num lago sem fim. Aponta para a mesa de cabeceira com dedos grossos e pendentes. Lágrimas inundam meu rosto, de desespero e arrependimento.

Está escolhendo por mim. Minhas mãos tremem ao abrir o frasco de remédios enquanto vou tomando um a um, sem conseguir desgrudar os olhos dele. O cheiro que exala quase me faz engasgar. Ele espera, pacientemente, olhando ainda apaixonado para Luiza, que dorme feito um anjo de candura, envolta numa mortalha de silêncio e paz. Sinto o sono começar a turvar minha mente, debruçado sobre as folhas amarfanhadas. Não há mais medo, pois já aceitei meu destino. Em breve estaremos juntos.

20. Februar 2023 22:53 8 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

Über den Autor

Amanda Kraft Participo com mais de cem contos em diversas antologias de várias editoras. Livros lançados: Somente eu sei a verdade; Traição; Uma Segunda Chance; A Noiva da Neblina e o Segredo de Lara pela buenovela.com e também contos e livros inéditos na Amazon kindle.

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Marcelo Farnési Marcelo Farnési
Logo de início, meu espírito se retraiu. Sabia que o que viria a seguir já não tinha volta. Já não tinha saída, a não ser enfrentar aquilo que rejeitava: e foi tudo de bom! Assim como tudo que você se propõe a fazer. Imersão e conteúdo! Parabéns por mais este belo conto, Amanda!
June 01, 2023, 16:38

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Mto obrigada, Marcelo. Ter um conto apreciado por vc é tudo mais do que bom. Gratidão, meu amigo! June 01, 2023, 16:58
Luiz Carlo's Luiz Carlo's
De fato o ciúme, a inveja e o despeito são terrivelmente abomináveis, histórias assim existem milhares no mundo. Está aí um grande exemplo do que pode levar um sentimento possessivo. Parabéns por mais este primoroso trabalho. A sua escrita é uma formosura. Um grande abraço... 🙏🏽 🤗 🌹
May 30, 2023, 08:23

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Esse ciúme que cega é perigo e parece estar em todo o lugar. Um texto ficcional mas tb um alerta. Mto obrigada, meu amigo. May 30, 2023, 20:57
LF LEIDE FREITAS
Um conto poderoso que mostra o quanto o ciúme descontrolado pode provocar tragédias, as cenas descritas me levaram a visualizar as cenas e como tudo aconteceu. Parabéns!
March 14, 2023, 17:24

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Muito obrigada pelas palavras, amiga. Que bom ter um comentário seu. Fiquei feliz. May 30, 2023, 20:58
Norberto Silva Norberto Silva
Uou! Um conto forte e pesado sobre como o cipume descontrolado pode enlouquecer uma mente que, até então, poderia ser considerada sã. A narrativa, como sempre é imersiva e envolvente, fazendo a gente ver e reviver com o protagonista os passos do terrívem homicídio e como ele mesmo não escapou ileso de tal ato, até quando o sobrenatural surgiu e foi num crescente até esse final. meus mais sinceros parabéns moça! mandou muito bem!
February 21, 2023, 02:27

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    É sempre uma alegria ler seus comentários. Mto obrigada por estar sempre presente. February 21, 2023, 10:42
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