williancoutinho Willian Coutinho

Santos e Demônios, ambos estão fora do padrão, não pertencem ao mundo dos humanos. Seu ciclo tem de ser cumprido. É por isso que um Especialista faz seu trabalho, mandando eles para seus devidos lugares.


Horror Geistergeschichten Nicht für Kinder unter 13 Jahren. © Todos os direitos reservados

#378 #santos #371 #sobrenatural #mistério
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Dr. Fernando


Dolorosamente o sertão havia castigado aquele pequeno povoado. Enfrentavam uma grande leva de provações, como o padre local dizia. Palavras essas que animavam e garantiam esperança ao povo. Um dia tudo iria terminar, as chuvas chegariam dos céus como comportas se abrindo. As criações engordariam e a colheita farta viria.

Mas as promessas nunca chegaram.

Com o tempo algumas famílias mais corajosas abandonaram suas casas em busca de uma vida melhor. Os que ficaram plantavam e colhiam aos poucos, abençoados com chuvas fora de hora, mas insuficientes para encher os açudes. Quando a comida passou a faltar, as chuvas não desceram mais e o número de doentes cresceu, um Especialista foi chamado.

No meio das ondas de calor que subiam da terra rachada, a silhueta de um homem surgiu. Aparentava dançar como uma serpente, ziguezagueando com os feixes de calor. A figura mais nítida ajustou o chapéu, o único item que lhe trazia frescor, diferente do terno que cobria os braços e pernas, criando uma bolha de ar quente sob a pele. Na mão esquerda carregava uma maleta, feita de couro, tingida com a escuridão.

Entrou no povoado e seguiu adiante. A cidade parecia morta, mas os barulhinhos de madeira rangendo denunciavam os curiosos. Olhou para eles, discretamente, ajustando os óculos. Podia ver os globos oculares se revirando pelas frestas das janelas e de qualquer buraco nas paredes. Acompanhavam o caminhar do forasteiro.

Em certo momento, uma brisa quente agitou suas roupas. Afinou os olhos pela poeira e quase precisou tampar as narinas. O vento trouxe consigo um cheiro de animal morto. Podia imaginar as larvas se mexendo no sangue coalhado. Pelo limiar do chapéu a visão caçou a fonte do mau cheiro, mas quando o vento passou, ele também sumiu.

Na procura pelo odor diferente viu a varanda das casas completamente desertas. Os comércios estavam fechados, com tábuas pregadas na frente das portas. Todos pareciam ter se trancado em casa para cuidar dos doentes ou por medo do homem desconhecido. Passou pela rua principal, seguindo caminho para a saída da vila. Andou até chegar na última casa, um pouco afastada da cidadezinha.

Era uma construção simples, de madeira. A cerca de lascas com diferentes tamanhos delimitava a propriedade. A casa estava numa situação muito pior do que as outras do vilarejo. Se o homem não soubesse que havia pessoas morando ali, diria que estava abandonada há séculos. Passou os olhos pelo mato seco dentro do quintal e contou os buracos na cerca de madeira. Pensava em quantos meses fazia desde a última vez que derrubaram aquele capim dourado.

Sorriu ao entender de onde vinha o cheiro pútrido. A casa inteira exalava o odor de alguém em decomposição.

Antes de entrar, virou para o farfalhar de asas. Pôde ver dois corvos pousarem nos galhos secos da única árvore da região, do outro lado da estrada, em frente à casa.

— Morte, morte. — diz um corvo.

— Eu vejo morte. — continua o outro.

Ainda mantendo o foco nos dois, a mão direita calmamente subiu até o coldre interno do paletó. Puxou de lá uma pistola. O braço esticado apontava a mira no formato de cruz para eles

— Morte, morte.

— Eu vejo morte, bem atrás de você.

Antes de puxar o gatilho, ele sorri com o canto do rosto.

— Senhor, posso ajudar?

Ele guardou a 1911 no coldre do peito, antes de dar o tiro. Se virou para a dona da voz, massageando o lugar com um sorriso estranho.

— Eu admito, é realmente uma má ideia usar um terno nesse calor.

Ao ouvir a voz, a senhora semicerrou os olhos.

— Ah, é você Dr. Fernando? Pode entrar, a gente tava esperando o senhor.

O homem trajado cordialmente levantou o barbante que segurava o portão fechado. Subiu um pouco a aba do chapéu para observar os corvos na árvore. Fechou o portão com a cordinha suja e caminhou até a varanda. Ajustou de volta o chapéu cobrindo a linha dos olhos. Os dois pássaros não estavam mais lá.

Devagar subiu os três degraus de madeira até a varanda.

— Não precisa tirar os calçados, pode entrar.

Fernando apenas bateu os pés no tapete de retalhos e retirou o chapéu, segurando de frente ao peito. A porta aberta exalava ainda mais o cheiro insuportável. Acostumado com a situação, pediu licença para entrar. A senhora balançou a cabeça. O sorriso mostrou todos os dentes, tão horrendos que era melhor ela não ter feito isso.

Fernando revirou a casa com os olhos. Estava tão suja quanto o lado de fora. Pela análise do homem, diria que mais. Ao ver ele caçar pelos lados, a senhora pensou que procurava por um lugar para guardar o chapéu.

— Ah, pode colocar aqui — puxou a cadeira.

— Obrigado. — descansou ele na quina da madeira. — E onde é o quarto dela?

— Ah, é por aqui.

Caminharam até o local onde a filha doente estava.

Na sala, um senhor de camisa e cueca coçava o saco, deitado no sofá enquanto assistia à TV. Dr. Fernando cruzou para o quarto da filha, mas pôde ver a televisão fora do ar. Com a mão direita abriu a cortina de miçangas. As bolinhas coloridas paravam antes de encostar o chão. Todo filho ganhava uma dessas. Uma tradição local para afastar maus espíritos.

— Você não vai entrar? — Fernando disse por cima dos ombros.

A senhora pareceu sair de um transe.

— Ah, eu posso? — com a mesma mão ela abriu a cortina. — Achei que o senhor ia querer ficar sozinho com ela.

Ele ignorou e puxou um banquinho que estava do lado da cama, sentou e apoiou a maleta em outro. Com dois “clics” abriu a pasta negra. Pegou um estetoscópio e guardou envolta do pescoço. A adolescente suava enquanto dormia. Fernando olhou para a senhora, buscando confirmação, sem dizer uma palavra.

— Pode acordar ela, doutor. — balançou os dedos no ar.

O homem pegou a mão da garota, quente como uma brasa.

— Tô preocupada, ela já está assim tem quase um mês. Já demos todos os remédios naturais que as benzedeiras passaram e nada.

— Entendo. — disse, com olhos rondando o quarto. — Dona Margarete, você pode pegar um copo pra mim? — perguntou, de costas para ela.

— Com água?

— Não, sem mesmo.

A mãe saiu do quarto, com passos um tanto lentos, ignorando a certa urgência. O ruído de fundo da televisão fora do ar pareceu chiar mais alto quando a menina acordou. Fernando virou o ouvido para a porta. Da sala o marido soltou um palavrão.

— Shh… shh… tá tudo bem. — voltou a cabeça para a menina, que arregalava os olhos, fitando cada lugar aleatório do quarto. — Ei, a sua mãe já vai voltar e o seu pai tá na sala.

Incessantemente ela balançou a cabeça, negando.

— Vai ficar tudo bem, vou te dar um remédio que vai cortar a sua febre — levantou os olhos por cima dos óculos. — mas eu preciso que você confie em mim. — a entonação mais séria acalmou um pouco a garota, fazendo-a pensar no que ele realmente queria dizer.

A voz distante e arrastada entrou no quarto a cada passo preguiçoso da senhora.

— Ah, tem acontecido coisas tão estranhas pela vizinhança, doutô Fernando.

— É?

— Sim… é planta morrendo, criança ficando doente, bichos sumindo. Aqui em casa também — deixou uma pequena mesa ao lado do homem. Em cima dela repousou um copo de alumínio. — O padre Cícero disse que isso é o inimigo tentando afastar a gente da presença de Deus.

Fernando encarou o copo por alguns segundos antes de responder. Podia contar várias borras de sujeira.

— Padre Cícero é? — enfiou a mão esquerda no bolso interno do paletó. Puxou de lá um cantil fino e largo, prateado. — Eu vi várias cruzes pela casa, a senhora vai à igreja?

Ela enxugava as mãos em um pano de prato mofado. Subiu o braço e descansou o pano no ombro. Vendo a garota tentar se sentar, fechou as sobrancelhas para ela.

— Claro, todos os domingos. — mudou de expressão, tornando-se leve e amável. — Sou devota de São Pedro. Nesses tempos difíceis ele protegeu a minha casa e minha filha depois que meu marido morreu.

Fernando despejava um líquido transparente no copo. Parou de encher quando ela falou de São Pedro. Pensou melhor e despejou toda a bebida do cantil.

— Antes de começarmos — arregaçou as mangas. — desde quando a menina está doente mesmo?

A senhora permanecia estática, um pouco atrás das costas do convidado.

— Tem quase um mês, doutô.

A figura masculina se levantou, ainda de costas para a senhora. Levou o copo junto. A falta de sintonia da televisão voltou a soar mais alto.

— Se eu me lembro bem, o padre Cícero morreu tem três meses. — sem suspeitas, ele enrolava tiras de gaze nos punhos. — Então essa cidade não tem mais uma autoridade espiritual. — terminando de enfaixar as mãos, jogou metade do líquido nelas. O crescente medo fazia a jovem virar os olhos constantemente para o médico e para a mãe.

Margarete abriu sorriso com os dentes imundos.

— Sim.

— E São Pedro é conhecido como o protetor das viúvas, não é?

A risada estranha preencheu o quarto, estava na mesma altura dos chuviscos da TV. Com medo da mãe, a jovem tampou a boca com as mãos.

— Hihihihihi, você é muito esperto.

O chiado constante da televisão sumiu. Fernando virou de repente, jogando o resto da água benta na cara da senhora. Continuou investindo e a derrubou com os ombros. Margarete caiu de lado segurando o rosto em chamas. Como ele esperava, o marido barrigudo já estava na porta. O Especialista precisou de três passos para preparar um soco. O velho sujo apenas levantou uma mão. As miçangas da cortina serpentearam pelo punho de Fernando, se enrolando até o tronco.

As cordinhas foram capazes de conter a investida furiosa. O pai espremeu os olhinhos felizes, mostrando os dentes pontiagudos. Permaneceu assim até ver a face alegre do exorcista. Percebeu tarde que o homem de terno havia lhe tocado. Desceu os olhos para o formigamento no braço direito. Gotas de água sagrada pingavam dele. Tentou retirar os dedos travados na carne com a outra mão, mas assim que encostou ela quase pegou fogo. Com ódio resolveu enforcar o homem, que já estava se mexendo.

Fernando grudou no estetoscópio, puxando do pescoço. Com força, apertava as partes de metal que iam à orelha, pressionando como um alicate. A borracha que revestia o equipamento se esticou, revelando a verdadeira forma do objeto: um chicote. Balançou algumas vezes no ar para a campânula desprender da extremidade. A peça usada para captar o som caiu no chão, com a ponta do chicote cantando no ar. Olhou para trás e uma braçada foi suficiente para capturar a mãe pelo pescoço. A corda deu várias voltas nele, impedindo a mulher de chegar perto da filha.

As miçangas controladas pelo marido não largavam o tronco do caçador, outras se enrolavam subindo para o pescoço. Mas o exorcista também não soltava a mão, travada no antebraço do demônio. As faixas molhadas com água benta queimavam a pele, contudo não eram suficientes para expulsá-lo, assim como a esposa.

Emaranhado na cortina, em pé com apenas uma perna, segurava os dois demônios. Logo começou a expulsão.

Regna terrae, cantate deo, psállite dómino, tribuite virtutem deo Exorcizamus te.

As mãos enfaixadas se acenderam. A que segurava o pai começou a queimá-lo ainda mais. O chicote foi revestido pelo fogo, que caminhou até o pescoço da mãe da menina.

Omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis incursio infernalis adversarii, omnis legio, omnis congregatio et secta diabólica.

Precisou de mais força para segurar os dois, que se debatiam, urrando pela dor. Cravou as unhas na carne podre do homem e precisou enrolar uma volta do chicote na outra mão.

— In nomine et virtute Domini Nostri Jesu Christi!

Com o grito se esvaindo, a senhora caiu de costas, sendo puxada pelo chicote. Seu marido bateu os joelhos no chão. A boca havia travado com os maxilares abertos. Toda a carne podre secou e ele despencou de lado. Fernando foi solto das cordas e também caiu, mas se apoiou com mãos e joelhos.

— Ma — a voz embargada hesitou. — mamãe?

Fernando tragava o ar compassadamente se segurando no chão. Virou o rosto para a menina sentada na cama.

— Ela vendeu a alma a troco de trazer aquele homem de volta.

— Pai… — olhou para o corpo pútrido. — ele tinha morrido no começo do mês… Um dia a mãe sumiu e só voltou de noite com ele. Eu não… — as mãos juntaram de frente ao peito. — eu não sabia reagir. O cheiro dele quase me fez vomitar, mas minha mãe parecia tão feliz…

— Naquele dia já não era mais ela. — se levantou cansado.

Pegou a caneca de alumínio entre ele e o corpo estirado. Pôs na mesa, juntou as duas mãos cobertas pelas faixas e as espremeu bem, fazendo gotas encherem um quarto do recipiente.

— Então ela…

O exorcista segurou o copo e ajustou os óculos

— Ela morreu.

Jogou a água com a frase. Molhou todo o rosto da garota. Ela apenas limpou a água. A expressão questionava o motivo.

— Você está limpa. Só precisa engordar um pouco. — enrolou o estetoscópio e guardou os itens restantes na maleta sob a supervisão do olhar cansado da menina.

— Você consegue andar? — ela fez que sim. — Ótimo — dois “clics” da maleta e ele se levantou. — Meu trabalho aqui terminou. É bem provável que a cidade prospere agora, esses eram os únicos demônios aqui.

Se retirou devagar, deixando a menina atônita.

— Ah — parou no meio da cortina, levantando as miçangas com uma mão. — conte às pessoas o que aconteceu e diga que ordenei que arrumem logo um padre. Toda cidade precisa de um.

Virou e partiu.

Assim que a porta se fechou, a garota desceu os olhos para a campânula no chão. Fernando havia esquecido uma peça do estetoscópio. Ela pegou o item e correu para a varanda. Não viu ninguém. Segurou o objeto circular de frente ao peito, atravessando o portão, olhava para todos os lados. Não viu mais o doutor Fernando.


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21. August 2022 14:24 2 Bericht Einbetten Follow einer Story
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M T M T
Rapaz, eu sabia que algo tava errado quando mencionou a televisão e depois tive certeza nos dentes! Muito bom! Fez um bom trabalho!
September 07, 2022, 17:22

  • Willian Coutinho Willian Coutinho
    Gosto quando vocês pegam esses detalhes heheh September 07, 2022, 18:58
~

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