palasemple Palas

A amizade mais genuína (e também a mais improvável) é, possivelmente, entre a malandra, que sabe todas as regras por trás das regras, e a otária, que confia em todas as regras. Mila e Páris só poderiam construir uma amizade assim - passando uma por cima da outra.


Kinder Alles öffentlich.

#crianças #brincadeira-de-criança #trambiqueiro
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Crianças em uma roda

Crianças em uma roda — lógico que não ia dar certo.

Tem essa brincadeira feita para pessoas que estão em viagem, normalmente num carro. Às vezes, tem gente de menos para brincar de acusar os outros de terem roubado pão na casa do João; mas tem gente demais para preencher Revista Coquetel em paz. Nesses casos, a gente brinca de levar coisas em uma mala imaginária.

Essa mala tem dono, que diz o que pode e o que não pode levar. A regra secreta, só o dono sabe. O resto tem que ir falando de coisas que gostaria de levar e, quando todo mundo adivinhar a regra e colocar pelo menos uma coisa na mala, o próximo vira dono dela, com uma nova regra secreta.

É o tipo da coisa que também dá para brincar no recreio, com um grupo pequeno. Mas, quando são crianças em uma roda, a brincadeira sempre é muito mais do que isso.

— Eu vou viajar e, na minha mala, eu vou levar… um pernilongo! — disse Mila, a dona da mala.

— Então eu vou levar uma formiga! — disse Guilherme, o esperto.

— Você pode ir comigo. — disse Mila, a magnânima.

— Eu vou levar uma vespa. — disse Sara, a desinteressada.

— Vai comigo! — disse Mila, a ilustríssima.

— Eu vou viajar e vou levar uma libélula! — disse Páris, a confiante.

— Você não. — disse Mila, a brava.

O critério era esse, não era? Insetos. É para levar um inseto. Como que libélula não é inseto?

— Como não? — perguntou Páris, a indignada.

— Ué, não. Não é a mesma coisa que pernilongo, mosquito e vespa. Célia, você que é a próxima?

— Sou! — disse Célia, a ingênua. — Eu vou levar, deixa eu ver… uma aranha!

— Você vai comigo. — disse Mila.

Aí a Páris se enfezou.

— Não, peraí! Como assim? Não é pra levar um inseto?

Com o que todas as crianças gritaram “aaaah, Páris!”, muito irritadas.

— Era, né? Mas agora você estragou a brincadeira. De novo. Brigada, Páris! — disse Mila, agora ela a indignada.

— Então! Como que libélula não é inseto e aranha é inseto?

— Inseto pica. Libélula não pica e aranha pica. Então é inseto.

O problema da Páris era achar que as pessoas eram burras. Todo mundo ali sabia que não era isso que definia um inseto. E todos, menos Páris, sabiam que o que importava para o jogo não era a definição de inseto: era a definição de inseto para pessoa que fosse a dona da mala naquela rodada.

— Não é isso que é um inseto! — gritou Páris, e, todos sabemos, quem grita perde a razão.

Mila não respondeu de imediato: deixou Páris parar de bufar, o que fez Páris querer bufar para sempre, só para demonstrar o quanto estava irritada. Mas, uma hora, ela cedeu.

— Tudo bem. Na próxima que eu escolher inseto pra levar, eu deixo você levar uma libélula.

Páris não se aguentou, deu um grunhido e saiu pisando duro, abandonando a brincadeira e deixando Mila ganhar, mesmo falando coisa errada e quebrando as regras do jogo.

Tudo que a idiota da Mila fazia era irritante, porque ela fazia tudo errado, sem nunca estar errada. Ela nunca transgredia as regras o suficiente para ser repreendida. Mas era sempre uma transgressão grande o suficiente para deixar Páris irritada, ou pelo menos atônita, ou pelo menos incomodada, porque Páris tinha absoluta certeza de que, se fizesse coisa parecida, os adultos iam ter com ela.

Páris tinha certeza de que se se sentasse de perna cruzada na cadeira no meio da aula, o professor Lourenço ia lhe dar bronca. Páris tinha certeza de que, se comesse a sobremesa antes da comida, um adulto ia sair de sua casa a quinhentos metros de distância da cantina só para lhe alertar dos riscos de não comer na ordem certa. Se Páris chutasse um chinelo para mais perto do outro, para o golzinho ficar menor e ficar mais difícil de sair gol para o outro time, Páris tinha a convicção — as crianças iam todas notar.

Mas com a Mila, não. Quando era a Mila, ninguém nunca dava bronca, ninguém nunca alertava, ninguém nunca notava. E Páris, já naquela idade coçando a testa e assoprando a própria franja como maneira de expressar irritação enquanto pensava nessas coisas, sabia que não era nenhum tipo de injustiça: era que Mila sabia transgredir no tamanho certinho para ninguém ralhar, ninguém ver, ninguém notar.

Por isso, quando Mila finalmente cometeu um crime pesado — furou fila na cantina para pegar o sanduíche mais gostoso, o de calabresa, antes de acabar — Páris sentiu que a hora da providência tinha chegado, e todo esse tempo em que o demoniozinho tinha ficado impune seria compensado. Então ela gritou, triunfante:

— Eeei! Fura-fila! Vai pro fim!

Ao que Mila, como se já esperasse não qualquer um, mas exatamente Páris reclamar, se virou e disse, sorrindo, mas sem olhar direito, como se não devesse explicação nenhuma a ninguém:

— A Célia tava guardando lugar para mim.

Célia estava logo à frente de Mila e, ouvindo seu nome, se virou para ver o que estava acontecendo. Teve que olhar para baixo para entender: a (naquela época) baixinha da Páris vociferando para a (naquela época, mas também em todas as outras) baixinha da Mila. E Célia, que tinha paciência infinita para todas as coisas do mundo, menos pessoas baixinhas vociferando umas com as outras, disse que ah, sim, era isso mesmo.

E nenhuma das outras crianças da fila, nem as que tinham sido cruelmente passadas para trás por Mila, falaram absolutamente nada. Talvez teriam que comer croissant de escarola em vez de sanduíche de calabresa, além de talvez ficarem sem jujubas, e ainda assim lavaram as mãos. Não tinham nada que ver com aquilo, não tinham visto nada.

No que Páris se sentiu no direito, portanto, de ela também furar fila, e saiu correndo para trás de Sara, que estava um pouco mais na frente das outras duas. Só que Páris não era Mila tanto quanto Célia não era Sara, e esta escorraçou a pobre e pequenininha do cabelo tigela para fora da fila. Páris teve mesmo que se contentar com um croissant horrível de escarola (e nenhuma jujuba).

Sem vontade de falar com ninguém, e ainda traumatizada com o que acontecera na brincadeira no recreio, Páris saiu da cantina e foi para um canto qualquer, colocou os pés na água do riachinho e se colocou a beliscar a aberração saudável que tinham lhe dado. Quando finalmente tomou coragem para dar uma mordida de verdade, foi interrompida pela voz que menos queria ouvir naquele momento.

— Ah. — Foi um “ah” ensaiado, de quem finge surpresa ao ver a outra pessoa ali. — Você tá no meu lugar! — ela completou, perfeitamente ciente do absurdo que era dizer isso de uma beira d’água com pelo menos cem metros de extensão e só uma pessoa sentada.

Mas, muito para a surpresa de Mila, Páris realmente se levantou e pediu desculpas. Com a cara amarrada, é lógico, mas mesmo assim.

— Não, não! Peraí! Era brincadeira. Olha, eu ganhei salgado de calabresa. Não quer trocar? Eu gosto mais do de escarola, na verdade.

— Então por que você foi cortar fila? Você podia só ficar no fim da fila que você ia ganhar um que você gosta.

Mila pensou um pouco, pensou um pouco mais. Fechou os olhos, fechou os olhos um pouco menos. Deu um sorriso.

— Se eu fico no fim da fila, eu sou só a menina que gosta de salgado de escarola. Se eu fico no começo, eu sou a menina legal que troca salgado com os outros. O que é que é melhor?

A baixinha do cabelo metade escorrido, metade ondulado se divertiu muito com a expressão de horror que Páris fez, porque sabia que isso ia acontecer. Para jogar sal na ferida, estendeu o salgado de calabresa na direção de Páris, que pensou um pouco, pensou um pouco mais. Fechou os olhos, fechou os olhos um pouco menos. Deu um grunhido.

E trocou a porcaria do salgado de calabresa pelo de escarola, se sentindo completamente suja, dando mordidas enormes e esfomeadas no salgado delicioso que tinha acabado de conseguir. E Páris aprendeu naquele exato momento que, moralmente, uma coisa podia ter gosto de terra mesmo que, fisicamente, tivesse gosto de calabresa.

24. September 2021 17:23 2 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Aghata Lunes Aghata Lunes
Mila é a melhor e mais fofa
September 25, 2021, 18:48

  • Palas Palas
    Mal sabe ela está pra se tornar ainda mais fofa 👁👁 September 25, 2021, 19:19
~

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