Os deuses olharam para o mundo que criaram.
Eram sempre eles que lançavam a semente de todas as coisas e as faziam germinar. Com majestade e indiferença porque eram eternos e o que eles produziam não o era. Por isso, havia aquela típica insolência divina que os tornava grandes por comparação ao resto, minúsculo e desprezível. Que os tornava imensos, sem possibilidade de classificação, medição ou limitação.
Novos humanos. As criaturas mortais eram asquerosas e repulsivas, sujas e pequeninas, cheias de defeitos, cheias de manias, de preconceitos e de pecados. Os deuses criadores, contudo, com todas as suas magníficas qualidades e formidáveis poderes, não os conseguiam fazer de outra maneira, mais perfeitos e mais… duradouros. Nem queriam. Era como um jogo, no fundo. Por vezes, deleitavam-se em fazer os humanos mais perecíveis, mais defeituosos e riam-se da insignificância que eram capazes de gerar.
Outra característica fundamental dos humanos, que os deuses não abdicavam porque essa lhes dava um gozo tremendo, o maior dos divertimentos, era a sua ignorância. Os humanos precisavam de nascer e de morrer ignorantes. Entre esses dois pontos da existência, o princípio e o fim, existia a vida. Nesse curto intervalo de tempo era-lhes concedido a inteligência e o engenho que lhes facultaria, para aqueles que se predispusessem ao desenvolvimento pessoal, se acaso tivessem tempo para além daquele que gastavam a tentar sobreviver naquele punhado de anos que durava um suspiro, a aquisição de algum conhecimento. A compreensão de uma parte minúscula do universo.
Se começassem a tornar-se demasiado inteligentes ou conscientes determinavam o seu extermínio. Quando os homens ameaçavam desvendar os segredos mais profundos do universo, de como funcionava, quais as leis que o regiam, quando se aproximavam da suprema revelação da existência dos deuses, ao ponto de estarem prestes a olhar o divino no seu rosto infinito, eram eliminados.
Então, o ciclo recomeçava porque o mundo precisava de estar em equilíbrio.
Os deuses imortais e os humanos escravos. Uns dependentes dos outros num ciclo perfeitamente balanceado. Os humanos alimentavam os deuses com as suas preces, amavam-nos e respeitavam-nos com uma sinceridade maravilhada. Os deuses, por sua vez, compraziam-se dessa adoração e davam a vida aos humanos. Davam-lhes também a morte. Quando tal acontecia os humanos arrependiam-se porque sabiam que tinham ofendido os deuses e multiplicavam-se em apelos desesperados por misericórdia e compaixão. O arrependimento nunca durava muito, todavia. A destruição era rápida e absoluta.
Os humanos morriam e precisavam de renascer. Um novo ciclo. Os deuses não seriam deuses se não fossem adorados e só os humanos os adoravam. O divino alimentava-se do prosaico e o prosaico, do divino.
Naquela ocasião em que os deuses olhavam para o mundo recém-criado, avaliando-o com um criticismo implacável, sentiam-se despeitados e zangados. Detestavam recomeçar, pois eram incomensuráveis e estendiam-se através do tempo, sem começo, nem término. E aborreciam-se sobremaneira por terem a necessidade de renovar o mundo do Homem periodicamente para que a sua divindade continuasse a ser alimentada e intocável. Era um fastio, um percalço na magnífica engrenagem universal. Dar inícios quando, no fundo, os inícios não seriam necessários se as regras fossem todas cumpridas escrupulosamente. O humano viva e morria para servir. O divino era servido.
Ninguém sabia muito bem o que tinha acontecido, ou porque tinha acontecido. O certo era que os humanos tinham sido outra vez destruídos e o mundo estava prestes a recomeçar, por ordem expressa dos deuses impertinentes que não tinham ficado agradados com alguma ofensa impossível de relevar. O perdão era impossível. O castigo impunha-se, ominoso e esmagador, sem possibilidade de apelo ou de comutação da pena.
Talvez naquela ocasião não tivesse sido a sabedoria adquirida, mas antes algum gesto mais arriscado dos humanos, um desafio ingénuo com consequências gravosas. Alguém que resolvera fazer uma pergunta. A inobservância de um ritual. O sagrado que fora descurado. Um simples olhar inquiridor para o céu. A inquietude de um rebelde. O cansaço da monotonia.
O célebre concílio reunira-se entre trovoadas, furacões, eclipses, explosões e vácuos, uma revolução dos elementos. Fora decidido destruir tudo. Um estalar de dedos. Um piscar de olhos. Uma vontade expressa. Um desejo desdenhoso. Um capricho, porventura…
Os átomos fundiram-se e a explosão nuclear deu-se.
A claridade de um milhão de sóis.
Fim.
Recomeço.
O mundo criado a partir do fogo.
Surgiu um outro cenário que, no fundo, era o mesmo cenário.
Os deuses desdenharam da criação. Estava feito. Recomeçava-se, era tudo.
Havia alguns deles, porém, que aguardavam pelas primeiras celebrações à sua divindade naquela expectativa falha feita de uma ansiedade demasiado… humana. Alguns dos imortais sentiam-se curiosos em relação à nova gente que iria povoar a terra. Conheciam o barro a partir do qual tinham sido moldados, fora o seu sopro quente que lhes insuflara a vida, era pela sua vontade que eles se moviam como se moviam e pensavam como pensavam. No entanto, existia sempre uma margem ínfima que lhes era concedida para que os humanos pudessem escolher, tomar decisões, aceitar um caminho e rejeitar outro, reconhecerem o que podiam ou não aprender, um pouco de curiosidade, outro tanto de ambição, uma pitada de inconformismo, a capacidade de sonhar. Era também essa margem que os deuses não comandavam, a parte arbitrária que podia, ou não, determinar o fastio da destruição e da criação.
Era um jogo, sempre. Os deuses adoravam jogar. Era o seu único passatempo na plenitude da sua existência infinita.
Naquele primeiro dia cru e despido, naquela atmosfera vermelha e vazia, ainda se podia escutar na distância do horizonte, quando o Sol nascia pela primeira vez na madrugada primitiva, os gritos, os uivos de dor e de espanto dos que foram eliminados. Os lamentos dolorosos e indignados, as questões que passavam como uma herança muda de civilização para civilização, de geração para geração, embora jamais os humanos que apareciam depois tivessem alguma vez tido contacto com os humanos que tinham vivido antes. Não existia História, arqueologia ou estudos do passado – porque isso implicava conhecimento e essa era palavra proibida para as pessoas.
Sussurrava-se a melopeia que recordava os mortos anónimos, os defuntos desconhecidos. A pergunta que era dúvida que se inscrevia no seu código genético e que eles não recordariam até que precisassem de a verbalizar, num olhar esgazeado e atónito em direção aos céus, a implorar por misericórdia…
O requiem
Deus nos salve a todos
Será que vamos arder
Dentro do fogo de um milhão de sóis?
Por causa dos pecados da mão
Dos pecados das nossas línguas
Dos pecados dos nossos pais
Dos pecados dos nossos jovens?
A radiação dissipava-se da terra, como o nevoeiro a diluir-se beijado pelos primeiros raios do Sol matutino.
Um novo mundo! Virgem e preparado.
Os deuses criavam quando se aborreciam com o velho, quando se irritavam com o antigo. Estavam moderadamente satisfeitos. Olharam sobranceiros para o mundo. Parecido, igual, monótono. Um gesto de enfado, um fingimento mal disfarçado de aceitação. Humanos servidores, humanos miseráveis, humanos tão inocentes e fracos.
Podia-se recomeçar. Era um novo ciclo.
E vinha a voz de um homem que falava sobre o medo do conhecimento.
E sobre o medo da morte.
Naquele fim em que o brilho era tanto que nada vivia lá dentro – só memórias e ecos.
O brilho
Sabíamos que o mundo nunca mais seria o mesmo.
Algumas pessoas riram-se, algumas pessoas choraram, a maioria estava calada
Lembrei-me de uma citação das escrituras Hindu, o Bhagavad-Gita
Vishnu está a tentar persuadir o Príncipe para que ela cumpra o seu dever
E para impressioná-lo adota a sua forma cheia de braços e diz
Agora transformei-me na Morte, a destruidora de mundos
Acho que todos nós pensámos isso, de uma maneira ou de outra.
(Oppenheimer)
Vielen Dank für das Lesen!
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