Em Elísion, onde as criaturas humanas bem quistas pelos deuses desfrutavam de uma existência inteiramente feliz depois de mortas, uma serpente rastejou pelos jardins até um gazebo de madeira, sombreado por flores multicoloridas. Enroscando-se na perna de um dos bancos de mármore, o corpo reptiliano transmutou-se em humano.
Um homem já idoso, com olhos brilhantes e um leve sorriso nos lábios respirou profundamente o perfume das flores; e o pensamento de que aquele banco de mármore poderia ser ao menos um pouco mais confortável para o seu traseiro passou brevemente pela mente: talvez pudesse sugerir uma pequena reforma a Hades.
Desviando o olhar dos heróis e das heroínas que se divertiam naquele dia ensolarado por Apolo, Cadmo retirou de dentro das vestes compridas um pergaminho, uma pena e um minúsculo pote com tinta negra: fazia alguns meses que sua esposa Harmonia se entregava assiduamente ao trabalho de dobrá-lo na escrita da verdade:
– Não é tu considerado um deus do Alfabeto?
– Ora, amada minha, sabes bem que deus algum sou. Talvez um mero portador da letra e nada mais. Além disso, praticamente todos os homens já esqueceram-se desse detalhe, dificilmente encontra-se algo sobre mim nos mitos e nas lendas que mencione a criação de alfabetos ou de letras...
Cadmo tivera êxito nas esquivas até agora, mas ele via nos olhos de Harmonia que aquela mentira já não poderia persistir: no brilho daquelas janelas, a realidade foi-se colorindo com o passar dos séculos e Harmonia percebera que seu marido não era apenas mais um neto de Poseidon. Ele não desejava criar qualquer empecilho entre ambos, pois então, que melhor maneira de começar aquela missão última do que abrindo o coração para Harmonia?
Ao toque da pena no papel, um arrepio percorreu-o por inteiro e o início de uma gargalhada ribombou no peito de Cadmo. Quanto tempo fazia que ele não tocava numa pena? Pelos Deuses e Deusas, até as Horas exigiam dele que voltasse a escrever! Pois bem, que começasse tua estória...
“As narrativas humanas conhecem-me apenas como um neto de Poseidon e Líbia, filho Agênor e Telêfassa e irmão de Cílix, Fênix e Europa. A notícia sobre nossa existência veio apenas após Europa ser raptada por Zeus e nosso pai exigir de mim e de meus irmãos que fôssemos procurá-la. Infelizmente, como reza a lenda, nunca a encontrei, todavia em seu lugar brotou abaixo de meus pés a conhecida e amada Tebas. O sacrifício da vaca à Atenas, a luta com o dragão na fonte, a semeadura dos seus enormes dentes, a confusão que sem querer criei entre os Spartoi e meu período como servo de Ares – pois que era ele o pai do monstro – são as coisas pelas quais sou lembrado pelos homens do Ocidente em seus cânticos, dicionários e obras literárias.
No entanto, a verdade vai muito além, ela foge no horizonte e quando algum homem, semideus ou deus tenta agarrá-la, ela cai pelas bordas do mundo e Atlas incumbe-se de pegá-la com uma mão e entregá-la a Cronos, para que este a lance a outros tempos, a outros éons, quando diferentes seres abraçam a antiga missão de resgatar a verdade.
Desse detalhe não sabiam, não é mesmo? Mas sim, ao que tudo indica talvez eu não seja apenas neto de Poseidon e filho de Agênor e entregar minha verdade em pergaminho de ouro a vocês talvez não seja o mais inteligente de minha parte: convenhamos, minha existência vem de longe e minha missão, ainda que completa, se mostra como algo que precise ser constantemente lapidado; e também o conhecimento das possíveis penas que caberiam a mim por revelar esse mistério vem de vasta experiência – acham mesmo que sou tolo a ponto de sacrificar minha eternidade maravilhosa com Harmonia nos Campos Elísios? Algumas línguas ferinas diriam até que isso há de ser uma jogada maldosa de Harmonia por estar cansada de compartilhar a eternidade comigo rastejando pela grama, então desejaria ela que eu falhasse na missão, despertando a ira dos deuses. Todavia Harmonia carrega esse nome por um motivo, e guerras e discussões sempre se dissolvem ao redor dela. Impossível a maldade brotar nesse coração afetuoso e louvável: amo minha Amada e isso nada poderá mudar.
Esse amor que vivo agora foi a única coisa que pedi como armadura quando aceitei minha missão entre os humanos na Terra, então logicamente nunca o poria em risco. Perguntam-se agora: Quem é esse a requisitar a missão? Que missão é essa? E o império de minha Razão se resguarda: certas coisas não tenho permissão para falar, muito menos escrever, pois a escrita, diferentemente da fala, é imutável uma vez transportada a algum objeto, seja este pedra, pergaminho, argila, areia... Uma vez que a transposição é feita, algo divino acontece, a palavra torna-se verdadeira e real, portanto.
Vejam como o presente foi dado aos Homens e como estes fazem mal uso dele: a palavra escrita é de imensa responsabilidade da Alma, pois que traz vida à realidade! Oh, sempre que vejo-os manusear as letras de maneira tão ordinária, coisa diária, prefiro desviar a atenção para Aurora e suas cores intensas de insaciável amor (uma pena que Afrodite nunca a tenha perdoado por unir-se a Ares...são tantas as infelicidades desses deuses e titãs, que agradeço demasiadamente não ter me encontrado com muitos deles!).
Percebem um pouco qual é a tal missão que me foi requisitada, então? Não? Talvez eu tenha sido um pouco sutil demais; aprendi essa arte no tempo em que fui servo de Ares: minha experiência com ele ensinou-me que a melhor maneira de se ganhar uma guerra é com a sutileza. E se esta não conseguiu ser captada por seus olhos, isso não é de minha responsabilidade, vejam bem, pois que por mais que eu tente me esquivar de Harmonia, ela já percebera o que eu sou, e um dia perceberão vocês também.
De fato, fui portador de letras e criador de alfabetos, tantos quantos possíveis, de tantas tribos, de tantos continentes. A criação de cada um deles foi a criação de uma vida, que dava origem a tantas outras vidas! Ah, missão grandiosa que faz cantar em meu peito hinos para os Céus de Urano e as Constelações de Nix! Mas a calma me faz calar! Quase que chamo a atenção de uma Musa, coisa perigosa neste momento que pede discrição; não posso me deixar levar pela inspiração de uma delas: como dissera antes, certas coisas não posso revelar a vocês, que não por pequenos detalhes apurados pela lapidação dos alfabetos que criei.
Nunca fui muito bem recebido pelos titãs nem pelos deuses ou deusas do Olimpo. Hades, por exemplo, quando recebeu a notícia de que eu viria com Harmonia para viver em Elísion, dissera que Harmonia era bem-vinda, mas que ele não se responsabilizaria caso Cérbero se livrasse das coleiras e me comesse vivo. Atlas me amaldiçoa sempre que a verdade perseguida cai pelos horizontes do mundo e ele tem que fazer certo malabarismo para pegá-la e entregá-la a Cronos. Cronos, que conhecera superficialmente a razão de minha missão, suporta-me apenas, assim como Atenas, visto que sacrifiquei aquela vaca para ela (isso foi planejado desde o início). Zeus, este é de se questionar... Por conta de Europa, sempre tive uma certa ojeriza por ele, perder uma irmã para um deus tão egóico ainda me pesa na alma e preciso de Harmonia cantando com as Ninfas para me esquecer disso. Poseidon é meu avô, mas nossa relação não passa disso, pois minha missão necessitava apenas da criação de uma árvore genealógica com um fruto divino (qualquer que fosse ele). Já Hermes cultiva por mim um profundo ciúmes por eu ser criador de palavras em certa medida e ele ser apenas um mensageiro dessas. Talvez, pensando com cuidado (e com exceção de Harmonia é claro), Hestia seja a única deusa com quem tenho mais proximidade e por quem sinto mais afeto. Durante minha peregrinação pelo mundo, carregando em solitude a tarefa de originar letras e alfabetos, muitas vezes peguei-me orando para ela, pedindo por um lar, uma lareira, um cantinho; em todos esses momentos Hestia me ouviu e desceu do Olimpo, acendeu uma lareira e recolheu meus lamentos pacientemente. Só muito depois foi que eu soube que Hestia era quem estava por trás do meu noivado com Harmonia e não Zeus (por tempos achei que ele estava tentando se desculpar pelo rapto de Europa, mas aparentemente o ego dele nunca o permitiu pedir perdão por coisa alguma).
No dia do nosso noivado, a deusa me presenteou com essa pena maravilhosa que uso agora para escrever e dissera em ouvido, as palavras cálidas como as chamas que ela carrega no peito: lar é onde mora teu coração, então ame muito e acharás lares em quaisquer lugares.
Sim, Harmonia é meu lar, meu Lar é harmonia. Eu disse que antes de aceitar minha missão e de descer à Terra, pedi por uma armadura: o amor. Essa armadura foi-me dada com muito zelo pela querida Hestia! Não fosse ela, Harmonia não teria entrado em minha vida; não fosse ela, estaria eu nu de proteção, nu de lar.
Hoje, nesses elísios campos consigo desfrutar melhor os percalços por que passei em minha jornada. E os pesares que por ventura eu sinta quando os Homens não lapidam meus alfabetos com a destreza necessária são levados para longe por Éolo a meu casto pedido...”
Cadmo pausou a pena e repousou-a na mesa de mármore, estudando criticamente o pergaminho escrito.
– Será que essa breve biografia será o suficiente para Harmonia?
– Ora, os braços harmônicos de sua esposa recebem qualquer coisa, Cadmo – uma certa irritação era distinta na voz de Hermes, que voava um pouco acima de Cadmo, lendo por trás dos ombros dele.
– Por Hades, Hermes! Já disse inúmeras vezes que não suporto quando as pessoas leem por sobre meus ombros! Leve essas sandálias voadoras pra lá do Rio Flegetonte, vá!
– Tamanha rispidez não é necessária. Estou aqui apenas porque uma certa deusa, que vem a ser sua esposa, me pediu que lhe enviasse uma mensagem.
Cadmo cruzou os braços, ainda suspeito daquilo. Sua experiência lhe dizia para tomar cuidado com deuses gregos.
– Pois bem, que mensagem é essa?
Hermes tirou da sua cinta dourada um pergaminho e abriu-o, limpando a garganta:
– Meu querido esposo Cadmo, se não desejas contar-me tua real estória, problema não há. Que seu coração possa viver livre e leve é o meu máximo desejo, e se assim ele se encontra, então não desejo mais nada. Apenas venha ao meu encontro antes que Aurora vá-se embora, pois que desejo sentir o insaciável amor desses céus de ocaso ao seu lado.
Hermes terminou a leitura em tom monótono, enrolou o pergaminho e fez um estalo com os dedos para que ele evaporasse. Cadmo sempre se perguntou para onde iam os pergaminhos quando o deus fazia isso.
– Se você tiver alguma resposta para ela, fale agora, ou cale-se até meu próximo turno.
Afastando o pensamento bobo sobre o destino dos pergaminhos, Cadmo teve uma ideia que talvez ele considerasse como estúpida e infantil no futuro, mas que agora pareceu-lhe ser um tanto interessante.
– Tenho uma mensagem, mas não uma resposta, Hermes. – Dando uma assoprada na tinta do pergaminho e enrolando-o com cuidado, Cadmo entregou-o para o deus. – A resposta minha darei eu a Harmonia pessoalmente.
Hermes ergueu uma sobrancelha ao ver o pergaminho de Cadmo.
– E para quem é a mensagem?
Cadmo levantou-se da cadeira de mármore, as flores do gazebo pintando ambos em múltiplas cores.
– Para além do Reino de Hades, lá para a Terra, para os Homens vivos, Hermes. Faça cópias disso, letra por letra, palavra por palavra, e se houver necessidade peça ajuda a Apolo para enviar as cópias aos quatro cantos do mundo.
Deixando Hermes estupefato, Cadmo transmutou-se em serpente novamente para encontrar sua amada Harmonia.
O deus observou a serpente arrastar-se rapidamente por entre a relva dourada do poente, depois olhou pensativo para o pergaminho recém-escrito.
– Sei que meus votos me obrigam a desviar os olhos das mensagens que carrego. Todavia, meus dedos coçam por ler o que aqui está!
As diminutas asas das sandálias de Hermes bateram efusivamente, elas estavam com pressa de seguir adiante com a nova tarefa requisitada, ainda mais tendo agora que percorrer os quatro cantos do mundo!
– Ora, acalmem-se suas abobalhadas! Qualquer coisa eu peço ajuda a Apolo...
E os dedos longos e finos de Hermes se aproximaram do cordão dourado do pergaminho, prestes a se desenrolar, quando de repente e diante de si uma luz incandescente relampeja e algumas flores do gazebo começam a pegar fogo.
– Oh, não! Por Zeus! – uma deusa de pequena estatura e cabelos castanhos claros, com olhos vermelhos e túnica cor de creme, rapidamente assopra as flores em chamas e resguarda as demais para não sofrerem qualquer risco.
– Ah, Hestia, até tu?! – Hermes bateu os calcanhares irritado.
A deusa de rosto afável e lábios rosados virou-se para ele, os cantos da boca em óbvio sinal de contrariedade.
– Mirei foi em seus dedos que estavam prestes a cometer um pecado! Oh, tadinhas dessas flores...
– Olha aqui, Hestia...
Mas as asas das sandálias de Hermes bateram furiosa e descontroladamente, fazendo o deus dar duas cambalhotas no ar, gritando impropérios. Ele se esforçou para lutar contra elas e agarrou-se à mesa de mármore, as pernas voando acima dele numa cena um tanto cômica (algumas Ninfas do rio próximo jogavam-lhe olhares e davam risadinhas). Hestia cruzou os braços com certa satisfação e Hermes fulminou-a com seus olhos azuis.
– Olha aqui, sua deusa do fogo, mais dia menos dia eu vou descobrir quem é Cadmo, está me entendendo? Se é que ele é alguém...humano, semideus, deus! – Hermes espichou o pescoço para mais perto dela e baixou o tom de voz, talvez numa vã tentativa de amedrontá-la. – Eu vou descobrir, nem que eu tenha que cair para além do mundo e descer pelas costas de Atlas e...!
Com um estalo de dedos, uma chama alta e alaranjada tomou conta do pergaminho que Hermes agarrava. O deus assustou-se e por um momento achou mesmo que Hestia havia queimado a escrita de Cadmo, mas seu coração se acalmou ao ver que o pergaminho estava intacto, com apenas uma pequena e arredondada mudança.
Hermes aproximou os olhos arregalados.
– Mas o que...
– Isso é o meu selo. Se você quebrá-lo para ler o conteúdo do que quer que esteja aí escrito, o pergaminho tornar-se-á cinzas, as quais voltarão para minhas lindas lareiras, querido Hermes.
O deus das mensagens entreabriu os lábios, subitamente sentindo-se injustiçado. Suas asas agitaram-se novamente, elas precisavam cumprir a tarefa logo, logo! Hermes esbravejou e bateu com seu caduceu na mesa de mármore com tamanha força que um trincado surgiu-lhe no topo.
Hestia ergueu uma fina sobrancelha.
– Eu é que não vou explicar isso a Hades.
Passado o acesso de fúria, Hermes suspirou de ombros caídos, finalmente derrotado (ao menos por enquanto).
– Certo, Hestia, se resolveu por tomar Cadmo como seu protegido, certo! Mas saiba que eu não desistirei por nada nesse mundo! Eu vou descobrir quem é Cadmo! – as asas das sandálias rebuliçaram e Hermes começou a volitar mais alto, para além do gazebo. – Vou terminar essa maldita tarefa logo, antes que essas asas me arranquem as pernas. Que os quatro cantos do mundo recebam esse pergaminho, então.
Vielen Dank für das Lesen!
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