– Ikkiiiiiiiiii! Acorda! – Shun grita descontroladamente enquanto sacode o irmão mais velho, que ainda dorme. – Está quase na hora da minha aula! Faltam só vinte minutos!
– Hummm... você quer dizer que ainda faltam vinte minutos... – resmunga o irmão, sem abrir os olhos. – Está tudo sob controle...
– Sob controle? Eu vou chegar atrasado ao meu primeiro dia de aula na universidade!
– Talvez chegue mesmo, mas é melhor se acostumar porque se quiser continuar indo comigo, todo dia vai ser assim.
Shun, aos dezoito anos de idade, acaba de ser aprovado no vestibular para o curso de Psicologia. Ikki está no terceiro ano de Engenharia Civil e já não aguenta mais a universidade. Sempre vai, mas quase nunca assiste aula. Costuma ficar em uma das lanchonetes do campus, jogando conversa fora ou paquerando as meninas.
– Eu vou chegar atrasado e a culpa é sua! – Shun continua reclamando.
– Larga mão de ser chato, Shun! Hoje é o primeiro dia de aula. Ninguém liga pra nada nesse dia! O pessoal vai só pra se conhecer, sacou?
Depois de alguns minutos, Ikki finalmente sai da cama, lava o rosto, escova os dentes, veste uma roupa escolhida ao acaso e diz para Shun, que esperava no sofá da sala:
– Vamos lá, CDF?
Shun acompanha o irmão. Ao entrar no carro, ele resmunga:
– Eu vou chegar atrasado... humpf... estou profundamente arrependido de ter esperado pra ir com você. Devia ter ido com o Shiryu.
– Se reclamar mais um tantinho assim, eu faço você ir pra aula a pé!
– Ikkiiiiii! – retruca Shun, uma expressão de ira na face.
– O que é? Não tenho medo de cara feia, não – ele diz, antes de ligar o carro e sair cantando pneu.
Desde que saíram do orfanato, Ikki e Shun moram na casa que herdaram da mãe, morta quando eles ainda eram pequenos. Enquanto Ikki não atingia a maioridade, a casa ficou alugada, sob os cuidados de um administrador. Quando ele finalmente fez dezoito anos, mudou-se com o irmão para o confortável sobradinho azul, num bairro tranquilo da cidade, em frente a uma agradável pracinha. Pouco depois, Hyoga e Shiryu, companheiros dos tempos de orfanato, também foram morar com eles. E pouco mais tarde foi a vez de Seiya juntar-se ao grupo.
-S -A -
Ao chegar à universidade, Shun desce do carro correndo.
– Falta só um minuto! Só um! – ele diz, olhando incrédulo para o relógio. Na corrida desabalada até a sala, acaba por esbarrar numa moça, derrubando-a.
– Ah, me desculpe! Me desculpe! Eu não queria... – ele lamenta, ajudando-a a recolher os cadernos.
– Está tudo bem – responde a mocinha, e pega os cadernos que Shun recolhera.
– Você se machucou? – ele pergunta, ajudando-a a se levantar.
– Não, estou bem – ela responde. Shun observa que ela tem um olhar melancólico.
– Para onde está indo? – o rapaz pergunta, atento à expressão da moça. "Parece triste, mas com certeza não foi por conta do esbarrão", ele pensa.
– Vou para a aula do professor Mu – ela diz.
Shun abre um sorriso luminoso.
– Eu também! Que coincidência! Também faz Psicologia?
– Sim...
– Então seremos colegas!
– Parece que sim – diz a mocinha, sorrindo timidamente. Completara dezoito anos há pouco, mas é pequenina e delicada, aparentando ser muito mais nova. Ela veste um conjunto de calça e blusa tipicamente chineses e leva os longos cabelos negros arrumados numa trança. Além de triste, parece assustada, e Shun imagina que talvez seja por causa do nervosismo do primeiro dia na universidade. Ao contrário dos outros calouros, entusiasmados, sorridentes e barulhentos, o olhar de Shunrei carrega tristeza.
Os dois seguem juntos para a sala de aula e chegam lá com dez minutos de atraso, mas o professor ainda não tinha aparecido. Sentam-se na primeira fila, Shunrei na primeira cadeira, Shun logo atrás.
– Esqueci de perguntar o seu nome – Shun diz e ela se volta para trás.
– Shunrei. E o seu?
– Shun – ele abre um enorme sorriso, que ela corresponde com uma risadinha tímida.
– Prazer em conhecê-lo, Shun.
– Igualmente!
Andando tranquilamente, o professor entra na sala e deposita alguns livros sobre a mesa.
– Bom dia, pessoal. Sejam bem-vindos à universidade! – ele diz e escreve o nome no quadro. – Meu nome é Mu. Vou fazer uma chamada rápida para conhecê-los, ok?
– Ele parece legal, não é? – Shun pergunta a Shunrei.
– Sim – ela responde. – Parece tranqüilo. Acho que gostei dele.
– Eu também!
-S -A -
Noutra parte do campus, Ikki entra na sala onde terá aula.
"Aula coisa nenhuma", ele pensa. "Vou responder a chamada e depois me mando para a lanchonete."
– Oi – ele diz com olhar e voz sedutores ao ver a aluna nova que acaba de entrar na sala. – Caloura, não é? Nunca a vi por aqui.
– Não sou caloura – ela responde seca e sem olhar para ele. – Fui transferida para essa universidade. Agora, dá licença. Vou procurar um lugar bem longe de você.
– Que é isso? Fica aqui. Vamos conversar. Por que é tão arredia?
– Não converso com estranhos, muito menos com estranhos de cabelo azul.
– Hum... isso é uma regra um tanto infantil, mas eu gostei de você. Como é o seu nome?
– Não interessa.
– Ah, qual é? Só me diz seu nome.
– Não digo meu nome para chatos – ela responde, e começa a se afastar de Ikki.
– Todas me acham chato no começo. Depois é 'meu amor', 'meu bem', 'meu lindo', meu isso, meu aquilo... e eu nem sou delas!
– Cada vez que você abre a boca, eu o acho ainda mais imbecil.
– Vamos ver até quando vai durar essa hostilidade – Ikki responde sorrindo. Sabe que impressionou a garota. É bonito, inteligente, sexy e sua fama de bad boy aumenta consideravelmente seu charme. Tem uma cicatriz na testa oriunda de um acidente, mas que todos supõem ter sido causada por alguma briga, tamanha a sua fama, injusta, de arruaceiro. Costuma assistir poucas aulas, mas sempre tira as melhores notas. Além disso, gosta de ver como mexe com as mulheres e sempre consegue namorar aquela que deseja. A única que ele ama, entretanto, já está morta há muito tempo.
-S -A -
Mais adiante, noutra sala, Shiryu e Hyoga conversam.
– Eu devia ter estudado para o concurso tanto quanto você – Hyoga diz, fazendo uma careta. – Vacilei legal.
– Devia mesmo! – Shiryu concorda. – Eu me matei de estudar, mas valeu à pena. O trabalho é bom e minha chefe gosta de mim. Além disso, eu não tinha escolha, né, Hyoga? Você tem a pensão de sua mãe, pode ficar só com o estágio. Eu não tenho nada, precisava me virar. O trabalho de office boy já não estava bancando as minhas despesas.
– É. Como boy você ganhava uma merreca.
– Meu celular – ele diz ao sentir o aparelho vibrar. – Oi, Seiya. O que é? Não, não tem carona hoje. Eu vou almoçar no trabalho. Tchau, Seiya.
– Já vi que hoje vou ter que voltar com o Ikki... – lamenta-se Hyoga.
– Pois é. Minha chefe pediu pra eu chegar mais cedo hoje, então vou almoçar lá perto do fórum mesmo.
– Agora com o carro fica todo mundo atrás de você. Putz! Você teve uma sorte, hein?
– E como! Nem acredito que ganhei esse carro no sorteio do shopping! Quando falaram meu nome, eu fiquei sem reação! Um baita carrão assim, de graça!
– Sorte do caramba. Agora só falta você arrumar uma namorada. Quando vai desencalhar?
– Ora, não me venha com essas histórias – Shiryu responde, corando. – Eu tenho outras prioridades na vida.
– Outra prioridades? Shiryu! Você já está com vinte anos e nunca namorou. Vai acabar ficando com fama de gay.
– Pouco me importa o que falam de mim porque quem sabe da minha vida sou eu – ele diz, um tanto irritado. Sempre que insistem no assunto 'namorada' ele se esquiva. Tem certeza de que a garota certa aparecerá a qualquer hora, quando ele menos esperar, e não gosta de ser pressionado.
– Certo, certo. Mas está perdendo os melhores anos da sua vida nessa pilha de estudar e trabalhar que nem louco. Relaxa, cara!
– Eu relaxo do meu jeito, você bem sabe.
– Meditação, Shiryu!? Estou falando de sair de casa com a gente, ir para o barzinho, para a balada! Você nunca sai!
– Qualquer dia eu vou com vocês – promete, tentando encerrar o assunto.
– É, você sempre promete, mas na hora de ir acaba arranjando alguma desculpa para ficar em casa. Do que você tem medo, afinal?
Shiryu fuzila Hyoga com o olhar. Para a sorte do cabeludo, o professor entra na sala.
– O professor chegou, depois conversamos, Hyoga – Shiryu diz, em tom levemente ameaçador.
Shiryu está no segundo ano de Direito e trabalha no Tribunal de Justiça. Foi aprovado em primeiro lugar no concurso assim que fez dezoito anos. Também é o primeiro da turma, é o homem de frente nos trabalhos e, por isso mesmo, sempre sobra para ele, que faz tudo sem reclamar. Foi deixado no orfanato recém-nascido e nada se sabe sobre seus pais. Tem uma beleza exótica, traços delicados, olhos azuis levemente orientais e longos cabelos negros, quase tocando a cintura. Seu andar é altivo e elegante, consequência dos anos de prática de kung fu, e a fala é clara e eloquente, características que fazem com que ele pareça menos reservado do que realmente é.
Hyoga também está no segundo ano de Direito e faz estágio num escritório de advocacia. Chegou ao orfanato aos cinco anos, quando perdeu a mãe num naufrágio. Durante anos, a fundação responsável pelo orfanato tentou encontrar seu pai ou outro parente vivo, mas nunca obteve sucesso. Pouco antes de sair do orfanato, começou a namorar Eiri, uma das monitoras do lugar. Namoram há quase dois anos e durante esse tempo ela tem sido o ponto de equilíbrio para ajudá-lo a superar a dolorosa perda da mãe.
-S -A -
Noutra parte do campus...
– Saori, meu amoooor! – Seiya diz, abraçando a namorada. – Você pode me dar carona na saída?
– Só veio atrás de mim pra pedir carona?
– Nããããao! – ele exclama rindo. – Eu vim porque te amo muito!
– Sei... Eu dou carona pra você, amor. Mas você não devia estar na aula?
– Não consigo achar a sala. Quer me ajudar?
– Querido, estou tão perdida quanto você – ela diz, tirando um aparelho da bolsa e apertando alguns botões. – Mas resolvo isso rapidinho.
– O que é isso? – ele pergunta coçando a cabeça.
– Um GPS – ela responde, afetando um ar de inteligente.
– Gê-pê-o-quê?
– GPS. Global Positioning System. Tem o mapa do campus, já vou saber para onde temos que ir.
– Gente rica arranja cada coisa... – ele diz, intrigado, coçando a cabeça.
– Pronto! Já sei! Me acompanhe!
– Claro, amor! Você é quem manda!
De mãos dadas, eles seguem até a sala de Seiya.
– Me dá um bejinho e entra logo! – ela ordena. – Já está atrasado pelo menos meia hora.
– Tá – ele concorda e a beija. – Te amo. Nos vemos no fim da aula?
– Sim. E eu também te amo. Tchauzinho.
Seiya entra na sala sorridente, como se estivesse chegando na hora certa e cumprimenta a professora.
– Bom dia! – Seiya diz e faz sinal de positivo para ela.
– Bom dia, senhor atrasado. Já começou mal, hein?
– Pô, desculpa aí, prof. Eu não estava conseguindo achar a sala.
– Por hoje passa – ela diz –, mas nos próximos atrasos, você vai levar falta.
– Ixi... – ele diz, e vai sentar no fundo da sala. – E aí, gente boa? Tudo na paz? Meu nome é Seiya.
– Tudo legal – um colega responde. – Me chamo Nachi.
– Como é o nome da profa esquentadinha?
– Acho que é Marin.
– Esquentadinha, mas gostosa pra caramba, né? – o outro rapaz comenta.
– Ô! Só que eu não posso olhar muito. Minha namorada me mata se souber.
– Senhor atrasado, será que pode ficar em silêncio durante a aula? – a professora indaga, em tom de censura.
– Desculpa de novo, profa. É que estou empolgado com esse negócio de universidade.
– Agradeço a empolgação, mas deixe para demonstrá-la no intervalo.
– Sim, senhora – ele diz batendo continência.
Seiya tinha ido para o mesmo orfanato que os amigos, junto com sua irmã, quando a mãe morreu em um acidente. Entretanto, a irmã desaparecera ainda criança e nunca mais fora vista, mesmo com as buscas empreendidas pela polícia e pela fundação de sua namorada, Saori Kido, neta e única herdeira do falecido milionário Mitsumasa Kido, que não por acaso também era fundador do orfanato onde ele e os amigos cresceram. Acaba de ser aprovado no vestibular do curso de Ecoturismo, enquanto a namorada começa o curso de Medicina.
-S -A -
Hyoga, Ikki e Seiya reencontram-se no restaurante universitário na hora do almoço. Os dois veteranos sempre almoçam lá antes de seguirem cada um para seu trabalho e, a partir de agora, contam com a companhia do calouro. Ikki esperava que Shun também aparecesse, mas o rapaz ainda não o fizera. Excepcionalmente, Shiryu não está no grupo hoje, pois fora almoçar perto do trabalho.
– E então, como foi o primeiro dia de aula do calouro de Ecoturismo? – Hyoga pergunta a Seiya, rindo.
– Foi bom demais! Cheguei atrasado, mas tem uma profa é muito gata. Você precisa ver.
– Aposto que chegou atrasado porque se perdeu procurando a sala – Ikki completa, certo de que a resposta será afirmativa.
– É. Só consegui achar porque a Saori tem uma paradinha que localiza os lugares.
– Paradinha que localiza? – Hyoga questiona. – Seria um GPS?
– É, isso mesmo, Hyoga – Seiya confirma, empolgado. – Poxa, muito legal esse troço!
Shun finalmente aparece no restaurante universitário, acompanhado da mocinha em quem esbarrara mais cedo.
– Oi pessoal! Acabei me atrasando para o almoço. Esta é a Shunrei, minha nova amiga. Shunrei, o de cabelo pintado de azul é meu irmão Ikki, o loiro é o Hyoga e o outro é o Seiya. Você não vai conhecer minha namorada essa semana porque ela está viajando e só volta na sexta.
Shunrei assente com um sorriso tímido e cumprimenta os rapazes com um "olá" quase inaudível.
– Cadê o Shiryu? – Shun pergunta, depois de sentar-se com Shunrei.
– Foi almoçar no trabalho hoje – Hyoga explica.
– Ah, que pena. Você não também não vai conhecer o Shiryu hoje. Fica para amanhã. Você vai gostar dele. É um cara muito gente boa.
Ela responde apenas com um menear de cabeça. Depois de almoçar quase em silêncio, limitando-se a responder com monossílabos as poucas perguntas que os rapazes fizeram, ela se despede dos rapazes e vai embora.
-S -A -
Dias depois, numa sexta-feira à noite.
No sobrado, os rapazes estão prontos para sair, exceto Shiryu.
– Tem certeza de que não quer ir? – Seiya indaga, sorrindo para o amigo.
– Sim – Shiryu diz sentado à mesa, com vários livros abertos. – Tenho muita coisa pra estudar. Divirtam-se.
– Ainda estamos nas primeiras semanas de aula e você já vai estudar? – Seiya questiona, incrédulo.
– Claro!
– Vamos lá, Shiryu! Você tem que sair de casa! – dessa vez é Shun quem tenta convencer Shiryu.
– Não adianta insistir, gente.
– Vamos embora logo que esse daí não tem jeito e a noite hoje promete! – Ikki diz.
– Ikki, não se esqueça de que você tem que me deixar na casa da June antes – Shun diz.
– Eita, que esse namoro tá ficando sério!
– Meu namoro é sério! – Shun retruca, irritado. – Mas hoje eu vou só passar lá rapidinho. Ela acabou de chegar da viagem.
– Rapidinho... Sei... – Ikki diz com malícia. – O nome é rapidinha, Shun! E vê se usa camisinha!
– Só vou revê-la e volto pra casa cedo – Shun responde, corando violentamente. Não gostava de falar desses assuntos, ao contrário de Ikki. – Não precisa ir me buscar.
– Ótimo, porque eu não ia buscá-lo mesmo. Hoje eu vou me acabar na night! Quem vai comigo, que me siga!
– Todo mundo, né? Só você e Shiryu têm carro, e ele não vai sair – Seiya diz.
– Ah, é verdade – Ikki diz. – Eu esqueço que vocês são uns ferrados. Hehehe!
Todas as sextas são assim no sobrado. Os rapazes saem e somente Shiryu fica em casa. Ele gosta do silêncio, de estar um pouco sozinho, coisa rara durante a semana, já que divide o quarto com Hyoga. Aproveita esta solidão desejada e prepara um lanche. Depois, senta-se no chão, espalha livros e anotações e volta a se dedicar aos estudos. Pouco depois é interrompido quando a campainha toca. Ele vai atender.
– Pois não? – ele diz, olhando intrigado para a mocinha parada na porta.
– Eu sou Shunrei, amiga do Shun. Ele está? – a menina diz, visivelmente abalada. Tem uma grande marca arroxeada na face esquerda.
– Não, ele saiu, mas disse que hoje voltará cedo. Entre. Pode esperar por ele – Shiryu responde, tentando não olhar muito para a marca.
– Obrigada, Shiryu – ela diz e entra na casa.
– Como sabe meu nome? – Shiryu pergunta, e indica o sofá, onde ela se senta. Ele senta numa poltrona de frente para ela.
– Shun me falou que morava com três amigos e o irmão. Eu conheço os outros, então você só pode ser o Shiryu.
– Ah, sim... Você é da turma do Shun?
– Sou sim. Ficamos amigos desde o primeiro dia de aula, quando nos esbarramos.
– Hum... Shun é uma pessoa adorável. Desculpe a indiscrição, mas o que houve com seu rosto. Conheço esse tipo de machucado e parece uma marca muito recente.
– Ah, não foi nada... – ela diz hesitante e continua, tentando amenizar a situação. – Eu caí de cara no chão. Sou desajeitada mesmo. Não se preocupe.
– Acontece – Shiryu responde. Sabe que ela está mentindo, mas acaba de conhecê-la, não pode esperar que ela lhe conte a verdade, o que quer que seja essa verdade. Pode ser que ela tenha apanhado do pai ou do namorado e será constrangedor se ele mantiver esse assunto. Por isso, ele rapidamente pergunta outra coisa. – Então, você quer ser psicóloga?
– É... acho que levo jeito. Meu avô sempre dizia que eu tenho vocação para ouvir as pessoas. – O olhar dela parece ainda mais triste ao falar do avô.
– É uma profissão bonita, mas muito difícil. Exige dedicação.
– Eu sei... mas acho que estou pronta. Bom, está meio tarde... e o Shun não chegou ainda... melhor ir embora. Estou incomodando. Você está com livros espalhados, provavelmente estava estudando.
– Não está incomodando, imagine! É um prazer conversar com você.
– Acho que devo mesmo ir embora... – ela diz, já se levantando do sofá.
– Bom, se você deseja. De qualquer forma, quando o Shun chegar, avisarei que você esteve aqui, certo?
– Obrigada – ela responde, tentando esboçar um sorriso.
Quando a menina se retira, Shiryu sente-se perturbado. Não consegue mais se concentrar nos estudos porque a imagem dela se repete em sua cabeça. Pensa em seu jeito, em sua voz, seu rosto delicado e ao mesmo tempo tão triste. É isso que ele vê nos olhos dela: tristeza. Uma dor profunda e inexplicável que transparece no rosto.
Meia hora depois, ainda sem conseguir estudar e sentindo-se um pouco sufocado, Shiryu fecha os livros e decide dar uma volta na praça em frente ao sobrado. Lá, ele reencontra a mocinha. Encolhida num dos bancos, ela dorme. Ele a pega no colo cuidadosamente para que não acorde e, ao fazê-lo, sente o perfume dos cabelos dela. Um cheiro que ele jamais sentira na vida, mas que ao mesmo tempo parecia-lhe estranhamente familiar. Entra em casa com ela nos braços, sobe a escada e a deita em sua cama. Depois, puxa um banquinho, senta-se e fica a observá-la, mas logo se envergonha por estar ali, olhando-a insistentemente e vai para a sala.
Algum tempo depois, Ikki chega em casa fazendo estardalhaço. Shiryu está sentado no sofá, no escuro, pensativo.
– Ei! Não tem ninguém nessa casa não? – Ikki brada.
– Ikki! Shhhh! Vai acordar a menina – censura Shiryu.
– Menina? Você bebeu? Aqui moram cinco homens... a não ser... ah, safadinho, trouxe uma gata pra cá, hein? Finalmente! Pensei que você ia manter o celibato eternamente!
– Não é nada disso! É uma amiga do Shun.
– Do Shun? Ah, só pode ser a chinesa branquelinha... mas o que ela está fazendo aqui?
– É uma longa história. Mas vamos conversar em voz baixa, senão vamos acabar acordando-a.
– Hum... cheio de cuidados... ai, ai... E cadê o Shun? Ainda não voltou? Que rapidinha demorada! Me conta aí o que é que tá pegando.
– Bom, a moça veio aqui atrás do Shun. Como ele demorou, ela ficou envergonhada e disse que ia embora. Então, depois eu me senti meio mal e fui lá fora. Foi aí que a encontrei dormindo lá na praça.
– Dormindo na praça? Deve ser maluca.
– Ela não é maluca! – Shiryu a defende, num tom mais incisivo do que o pretendia.
– Como você sabe? Não a conhece!
– Para de falar assim dela, Ikki.
O rapaz de cabelos azuis ri.
– Shiryu, parece que você se encantou pela amiguinha do Shun.
– Não é isso... eu só quero ajudá-la... ela parece tão sofrida.
– Oi, pessoal! Que caras são essas? – diz Shun ao entrar na casa.
– Shun, a Shunrei está aqui – Ikki avisa, olhando para Shiryu com sarcasmo.
– A Shunzinha! Cadê ela? – ele pergunta, assustado com a presença da moça.
– Lá no meu quarto – Shiryu responde.
– No seu quarto? – pergunta Shun, um tanto perplexo. – O que ela faz no seu quarto?
– Ela chegou aqui atrás de você. Como você não estava, ela foi embora. Só que quando eu fui lá fora, encontrei-a dormindo na praça – Shiryu diz, para logo depois sair correndo atrás de Shun que havia saído em disparada para o quarto. Ikki segue os dois. Assim que Shun entra no quarto, a garota acorda.
– Shu... querida... o que houve? – ele pergunta, sentando-se na beirada da cama.
– Ah, Shun, eu não sei o que fazer... – ela murmurou.
– Quer me contar o que houve?
– Eu fui despejada, Shun. Não tenho para onde ir, não tenho nenhum amigo além de você. Então, resolvi vir pedir ajuda.
– Você fez muito bem. Pode ficar aqui conosco. Por que não contou nada pro Shiryu? Por que foi dormir na praça?
– Eu fiquei com vergonha... – ela diz, abaixando o olhar.
– Está tudo bem agora – ele diz, abraçando-a.
– Na verdade, não... Você sabe, eu contei que estava procurando emprego para pagar o aluguel. Como não consegui, o dono me pôs para fora e...
– E o quê?
– Nada... deixa pra lá.
– Agora fala, né, Shu?
– Ele me bateu... porque eu não aceitei pagar o aluguel com alguns favores... favores sexuais. – A última frase sai num sussurro abafado.
– Não acredito! – Shun exclama indignado. – Que monstro! Fique calma.
– Ele também não me deixou pegar minhas coisas. Saí sem nada, nem meus documentos pude pegar.
– Nós vamos dar um jeito nisso – Shun diz, mesmo sem saber como resolveriam o problema. – Está com fome?
– Não, só estou cansada...
– Então volte a dormir, querida. Amanhã daremos um jeito.
– Mas... a cama... do seu amigo...
– Você pode ficar aí, não se preocupe. Shiryu não vai se incomodar.
– Não acho certo, Shun.
– Não se importe com isso. Volte a dormir – Shun diz, saindo do quarto e levando consigo Ikki e Shiryu, que esperavam na porta. – Tadinha da Shu. Ela está passando por tantos problemas...
– Eu achei o olhar dela muito triste – Shiryu diz.
– E é mesmo. Bom, a Shu é órfã, foi criada por um velhinho lá na China, nas montanhas de Rozan. Foi esse homem que a encontrou abandonada na floresta ainda bebê. Quando ele ficou doente, venderam a casa e vieram para cá em busca de tratamento. Mas ele não resistiu à doença e morreu, deixando-a sozinha.
– Nossa! – exclama Shiryu, colocando-se lugar dela e entendendo o porquê daquela tristeza que ela traz no olhar.
– Ainda tem mais. Quando vieram para cá, ela arrumou um emprego e o dinheiro que ganhava é que supria as despesas. Só que nos últimos meses de doença do velhinho, ela acabou perdendo esse trabalho. Por conta disso, atrasou o aluguel e foi despejada hoje.
– Desgraça pouca é bobagem! – Ikki comenta rindo, o que deixa Shun e Shiryu ligeiramente irritados.
– Ainda não terminou – Shun continua.
– Essa garota tem uma zica em cima dela! – Ikki torna a comentar. – Melhor mandar benzer!
– Ikki! – Shiryu e Shun censuram o comentário maldoso.
O Amamiya mais novo continuou contando a história.
– Ela disse que o dono do quartinho queria que ela pagasse o aluguel com favores sexuais. Ela se recusou e acabou levando o soco que deixou aquela marca no rosto.
– Mas isso é um absurdo! Ele não pode fazer isso! – Shiryu exclama, indignado. – Estou chocado com o que esse homem fez com ela.
– Podia ser pior, né? Já pensou se ele ao invés de só bater, ele usa a violência para conseguir o que queria? – Ikki questiona.
– Onde ela morava? Você sabe, Shun? – Shiryu pergunta sério, sem dar atenção à pergunta de Ikki.
– Ah, no subúrbio. Naquele conjunto habitacional que fica perto do estádio de futebol. Acho que é no primeiro bloco, apartamento 02. O dono mora no apartamento vizinho.
– Sei... – diz Shiryu, antes de pegar a chave do carro e sair em disparada.
– O que deu nele? – Shun pergunta, perplexo.
– Ah, nada... só se apaixonou pela sua amiguinha branquelinha – Ikki explica.
Continua...
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